O discurso do capitalismo sobre o "desenvolvimento"
A narrativa capitalista sobre o "desenvolvimento", que se tornou
muito influente em todo o Terceiro Mundo no período neoliberal,
apresenta-se de seguinte forma: (i) o "desenvolvimento"
tem de
consistir no deslocamento da força de trabalho do setor tradicional da
economia (pequena produção), que está superpovoado e
possui baixa produtividade do trabalho e, portanto, constitui um
repositório de pobreza para o setor moderno (capitalista), cuja
produtividade do trabalho é muito maior; (ii) para que este
deslocamento
ocorra, o setor moderno (capitalista) deve ser livre para crescer tão
rapidamente quanto possível, e com este fim devem-se remover todos os
impedimentos à acumulação de capital; e
(iii) mesmo que
durante o crescimento do setor moderno (capitalista) alguns pequenos produtores
sejam deslocados por exemplo, como resultado da aquisição
de terras agrícolas ocupadas por camponeses para a
instalação de indústrias este pode ser considerado
no máximo como um problema transitório e não deveria
merecer muita atenção, dado que toda a força de trabalho
associada à pequena produção acabará finalmente por
ser absorvida pelo setor capitalista. Disto decorre que a
colocação de entraves ao crescimento do setor capitalista,
à guisa de proteção do pequeno produtor, constitui um
passo atrás, que pode ser ditado por considerações
"políticas" ou "populistas", mas é desprovido
de lógica econômica.
Para justificar este discurso, tipicamente faz-se referência à
experiência da Europa Ocidental, onde o setor capitalista surgiu
através de um processo de acumulação primitiva de capital
do qual o exemplo clássico foi o "Movimento das
enclosures"
ocorrido na Inglaterra, quando as terras comunais foram "cercadas"
("enclosed")
por proprietários rurais para impedir que os camponeses as utilizassem
e consequentemente tornar a sua economia inviável. Os pequenos
produtores deslocados, muito embora tenham passado por grande sofrimento
durante o período de transição, acabaram por ser
absorvidos em empregos capitalistas. Esta experiência, argumenta-se,
irá tão-somente se repetir em países do Terceiro Mundo,
como a Índia, onde um processo similar de desenvolvimento capitalista
ocorre neste momento.
O discurso também é justificado através da teoria
econômica elementar: uma vez que a existência de um setor
tradicional e superpovoado de pequena produção mantém os
salários próximos ao nível de subsistência,
não muito acima do rendimento per capita deste setor, mesmo no setor
capitalista, onde o produto por trabalhador é muito maior, o excedente
por unidade de produto no sector capitalista é igualmente muito maior.
Caso o excedente seja investido, para o que é necessário criar
condições favoráveis à acumulação de
capital, então o setor capitalista experimentará um alto
crescimento que necessariamente afastará a força de trabalho do
setor tradicional de pequena produção. E quando essa
migração ocorrer os salários irão se elevar no
setor capitalista, pondo fim à pobreza na economia. Assim, o que as
economias do Terceiro Mundo necessitam para o seu "desenvolvimento"
é criar um clima favorável à acumulação de
capital, para exacerbar os "espíritos animais" dos
capitalistas; isso assegurará o fim da pobreza.
Entretanto, este discurso está fundamentalmente errado. Consideremos,
primeiramente, o argumento teórico. Este poderia estar correto, caso
estivéssemos a falar de um único nível tecnológico
dado, que prevalecesse de forma constante no setor capitalista, de tal forma
que durante o processo de crescimento a produtividade do trabalho permanecesse
constante. (Modelos econômicos teóricos tais como o de Lewis, que
descreve esta transição entre setores, assumem explicitamente que
a produtividade do trabalho no setor capitalista é constante). Contudo,
o capitalismo, em particular se não houver restrições,
introduz continuamente inovações tecnológicas,
e desta forma mantém crescente a produtividade do trabalho.
Assim, para qualquer taxa de crescimento do produto do setor capitalista, a
capacidade de geração de emprego é progressivamente
reduzida. Na verdade, se a produção do setor capitalista cresce,
digamos 8%, e a produtividade do trabalho cresce 7%, o emprego somente pode
crescer 1%; e se ocorre esse crescimento ser menor que a taxa natural de
crescimento da força de trabalho, o que acaba por acontecer é
que, ao invés de retirar mão-de-obra do setor da pequena
produção, o setor capitalista não será capaz de
empregar nem mesmo o crescimento natural da sua própria força de
trabalho. Assim, o argumento teórico simples utilizado para justificar
este discurso não permanece válido a partir do momento em que
percebemos o progresso tecnológico no setor capitalista.
Retornaremos a este ponto mais tarde, mas antes examinemos o argumento
histórico sobre a experiência da Europa ocidental. É
completamente errado sugerir que os pequenos produtores deslocados pelo
capitalismo da Europa Ocidental foram absorvidos no interior do sistema como
trabalhadores. Um vasto contingente deles foi deslocado para as colônias,
semicolônias e dependências, devido à livre
importação de produtos das metrópoles, e permaneceu nesses
territórios, reduzido ali a uma massa pauperizada. De facto, a
"moderna pobreza em massa", que consiste não somente em baixa
produtividade do trabalho, mas acima de tudo na
insegurança econômica
, tem suas origens neste processo de deslocamento, que jamais foi seguido de
qualquer absorção na força de trabalho capitalista, uma
vez que este setor, naquelas economias, permaneceu diminuto por longo tempo.
No entanto, mesmo quando falamos dos deslocados dentro das economias das
metrópoles, vemos que eles também não foram absorvidos por
empregos no capitalismo metropolitano. Eles emigraram, em grande número,
para as regiões de colonização com clima temperado, como o
Canadá, os Estados Unidos, a Austrália, a Nova Zelândia e a
África do Sul, onde expulsaram os habitantes locais de suas terras e
estabeleceram-se eles mesmos como agricultores. Foi essa
emigração, estimada em 50 milhões de pessoas durante o
"longo século XIX" (que terminou na I Guerra Mundial), que
manteve sob controle a reserva de trabalhadores da Europa, que possibilitou o
surgimento de sindicatos bem-sucedidos e a elevação dos
salários à medida que a produtividade do trabalho subia,
reduzindo assim a pobreza. O que esteve na base da experiência europeia
não foi nenhuma tendência inerente ao capitalismo para a
absorção das pessoas por ele deslocadas no contingente de
mão-de-obra, e sim a emigração em larga escala, uma
possibilidade que não mais existe para as populações do
Terceiro Mundo (algo que o drama dos refugiados que hoje chegam à Europa
demonstra amplamente).
Assim, o discurso sobre o "desenvolvimento" propagado pelo
capitalismo não é nem teoricamente, nem historicamente
válido. Mas há mais. Suponhamos que o crescimento do emprego no
setor capitalista fique abaixo da taxa natural de crescimento da força
de trabalho, como sugerido mais acima. Assim, uma vez que as reservas de
trabalho cresceriam, em vez de contrairem-se, os salários reais do setor
capitalista continuariam a se manter ao nível da subsistência; mas
dado que a produtividade do trabalho no setor continuaria a elevar-se (pois
esta é a razão básica pela qual as reservas de trabalho
não se esgotam primeiro), a parte do excedente no setor capitalista
também estaria a se elevar.
Actualmente, aqueles que vivem do excedente numa economia do Terceiro Mundo
tipicamente emulam o estilo de vida que prevalece entre a
população rica da metrópole, o que requer mercadorias
menos intensivas em trabalho do que as mercadorias demandadas pelas massas
trabalhadoras no Terceiro Mundo. Assim, a crescente desigualdade de rendimentos
dentro desta economia causará uma elevação subsequente da
produtividade do trabalho e consequentemente uma nova redução na
capacidade de absorção de mão-de-obra no setor
capitalista. Isto provoca um novo aumento da desigualdade e assim por diante.
Forma-se um círculo vicioso no qual a capacidade do setor capitalista de
fornecer empregos se mantém decrescente ao longo do tempo. Mesmo que a
taxa de crescimento da produção se mantenha alta e inalterada (e
propositadamente abstraímos da argumentação qualquer
problema relativo à deficiência da procura agregada neste setor,
isto é, deliberadamente admitimos a validade da absurda Lei de Say
assumida como verdadeira pela economia burguesa), caso o setor capitalista
não reduza à partida as reservas de trabalho,
nunca poderá fazê-lo.
E o que é mais grave, ao não fazê-lo
ocorre um agravamento na pobreza daquela economia, mesmo em
comparação com o que poderia ter prevalecido em outras
circunstâncias.
Em outras palavras, ao invés de superar a pobreza através do
crescimento efectivo, o capitalismo em economias como a nossa [Índia]
produz crescimento econômico num pólo, possivelmente até
com taxas mais elevadas, e um agravamento da pobreza no outro.
Este agravamento torna-se ainda pior se o crescimento no setor capitalista
simultaneamente causar o deslocamento de pequenos produtores, o que ocorre
quando as terras dos camponeses são tomadas para a
construção de fábricas, estradas e outras obras de
infraestrutura, isto para não mencionar projetos imobiliários ou
campos de golfe.
Isto não significa que não devamos construir fábricas ou
estradas e sim que elas criam um problema
dentro da lógica da trajetória do desenvolvimento capitalista.
A compreensão intuitiva deste facto é o que está por
trás da resistência dos camponeses e de outros segmentos da
população afetados pela desapropriação de suas
terras para os diversos projetos de "desenvolvimento".
Disto se segue que o "desenvolvimento" capitalista, não
importa quão rápido seja, é incapaz de superar a pobreza e
o desemprego em sociedades como a nossa. A necessidade de uma trajetória
alternativa ao capitalismo para o desenvolvimento, que defenda e promova a
pequena produção, elevando seu nível de
organização através de cooperativas e coletivos de
trabalho formados voluntariamente (para o que uma redistribuição
igualitária de terras é uma condição
necessária), que dependa do setor público e deste setor
cooperativo para levar adiante os investimentos e introduzir o progresso
tecnológico (cujo resultado não mais seria a
criação de desemprego) decorre desta razão.
Uma tal alternativa, entretanto, requer uma mudança no caráter de
classe do Estado. Ela exige um Estado baseado na aliança entre os
trabalhadores, incluindo os agrícolas, e os camponeses, e outros
segmentos de pequenos produtores. Contudo, mesmo no período transicional
antes que tal Estado seja alcançado será indispensável
às forças progressistas lutar contra a trajetória de
desenvolvimento capitalista neoliberal, que somente agrava a pobreza na
economia, e fazer reivindicações transicionais
(
transitional demands
) que tragam à luz e fortaleçam esta aliança de classes.
29/Julho/2018
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2018/0729_pd/capitalism’s-discourse-“development”
. Tradução de LL.
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
.
|