O capitalismo e o desenvolvimento do Terceiro Mundo
Aquilo a que hoje chamamos terceiro mundo nem sempre existiu na sua forma
actual. Ele experimentou uma transformação estrutural
específica devido à intrusão do capitalismo metropolitano,
devido ao que alguns economistas, a começar por Andre Gunder Frank,
classificam como "o desenvolvimento do subdesenvolvimento". Na
Índia por exemplo os processos de
"des-industrialização" (importações da
metrópole deslocando produtores artesanais internos) e a "drenagem
de excedente" (o desvio sem qualquer contrapartida de uma parte do
excedente do país através do sistema de tributação
colonial), provocou um enorme aumento na pressão sobre a terra por parte
da população e engendrou a moderna pobreza em massa.
Uma vez que o "subdesenvolvimento" do terceiro mundo foi o resultado
da maneira pelo qual ele foi integrado na economia capitalista mundial, na
época da descolonização acreditava-se geralmente que os
povos desta região só poderiam progredir sob um regime
económico alternativo que os livrasse de tal integração. E
uma vez que o capital metropolitano não iria tolerar isto, e a burguesia
temerosa quanto à ameaça à sua própria
posição devido à sua chegada tardia ao cenário
histórico (razão pela qual ela também fazia causa comum
com os interesse fundiários internos) era incapaz de enfrentar o
capital metropolitano, tal libertação só poderia ser
efectuada através de um estado baseado numa aliança dos
trabalhadores com o campesinato. Este argumento da esquerda exerceu na
época uma considerável influência intelectual; e estes
países eram vistos a procederem tal libertação por etapas
ao longo do tempo rumo ao socialismo. O desenvolvimento do terceiro mundo
não era, portanto, encarado como ocorrendo através da busca de um
caminho capitalista de desenvolvimento; isso só poderia ocorrer
através da busca de uma trajectória alternativa que o levasse ao
socialismo.
Tal entendimento, entretanto, começou a ser desafiado na era neoliberal
com o argumento de que os factores que no passado haviam produzido a
segmentação do mundo não estavam mais operacionais.
Subjacente a esta segmentação, a qual exprimia-se na dicotomia
entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, estava o facto de que o
trabalho destes últimos não era livre para mover-se para os
primeiros e o capital destes, através de movimentos juridicamente livres
para os segundos, por variadas razões relutava em fazê-lo, excepto
para capturar o mercado destes últimos ou apossar-se das
matérias-primas dos mesmos. Por outras palavras, apesar de os
salários destes últimos serem muito mais baixos, o capital dos
primeiros não localizava ali fábricas para atender ao mercado
global, incluindo o metropolitano.
Esta situação, de acordo com este novo argumento, mudou sob a
globalização neoliberal. O capital metropolitano estava agora
desejoso de localizar fábricas no terceiro mundo a fim de explorar seus
salários mais baixos para atender à procura global. De facto, a
relocalização de várias actividades manufactureiras e do
sector de serviços da metrópole em países do terceiro
mundo, especialmente no Leste, Sudeste e Sul da Ásia, sugeriam agora que
mesmo dentro da estrutura do capitalismo mundial estes países poderiam
ainda assim experimentar desenvolvimento económico rápido.
Tal argumento naturalmente era falho, mesmo no momento em que estava a ser
avançado. A mesma ordem neoliberal sob a qual tal difusão de
actividades estava a ocorrer, da metrópole para o terceiro mundo,
também estava a lançar um feroz ataque à pequena
produção e infligia um processo de acumulação
primitiva de capital dentro do terceiro mundo. E, ao mesmo tempo, estava a
gerar empregos tão escassos no terceiro mundo, mesmo quando as taxas de
crescimento do PIB dessas economias eram impressionantes e sem precedentes, que
a pobreza em massa realmente se agravou, ao invés de ser aliviada,
apesar desse crescimento elevado.
Mas agora o capitalismo mundial entrou numa nova fase em que até mesmo
essa difusão, como estava a ocorrer na era neoliberal, está a ser
restringida. Portanto a própria premissa do argumento que via o terceiro
mundo como a desenvolver-se dentro do quadro do capitalismo mundial, ou seja,
mesmo sem desligar-se do quadro do capitalismo mundial através de
controles adequados de comércio e capital, perdeu sua relevância.
O proteccionismo de Trump pretende precisamente restringir tal difusão
da actividade da metrópole para o terceiro mundo, e isto é apenas
um sinalizador do facto de que o regime neoliberal está agora num beco
sem saída.
Trump, deve-se notar, não pretende de modo algum desfazer-se do
neoliberalismo. Ao contrário, ele está a manter o núcleo
da organização neoliberal, a qual é mobilidade global do
capital financeiro. Mas ele está a estabelecer restrições
ao capital americano (e a outros capitais metropolitanos, bem como capitais do
terceiro mundo) a que localizem instalações de
produção dentro do terceiro mundo a fim de atender à
procura americana. E ele está a compensar o capital americano que seria
prejudicado por tais restrições através de
concessões fiscais em grande escala sobre lucros corporativos. As
medidas de Trump, por outras palavras, são calculadas de modo a
não provocar danos ao capital americano; mas elas certamente impediriam
a difusão de actividades da metrópole para o terceiro mundo que
supostamente são o instrumento para inaugurar o desenvolvimento do
terceiro mundo mesmo dentro da estrutura do capitalismo mundial.
As medidas de Trump têm de ser entendidas no contexto da crise que
engolfou o capitalismo mundial no período da globalização
neoliberal. Na raiz desta crise está o facto de que a própria
relocalização de actividades das metrópoles para o
terceiro mundo tem mantido baixos os salários reais nas
metrópoles. Ao mesmo tempo, isto não elevou os salários
reais no terceiro mundo pois a grandes reservas de trabalho nestes, criadas no
período colonial, longe de ficarem esgotadas, estão a crescer
ainda mais. Se bem que o vector dos salários reais na economia mundial
permaneça assim mais ou menos constante, o vector da produtividade do
trabalho aumentou muitíssimo, resultando em um enorme aumento na fatia
de excedente da produção mundial. Isso cria uma tendência
à superprodução na economia mundial, uma vez que a fatia
do consumo do excedente é menor do que a dos salários. Esta
tendência, no entanto, foi mantida sob controle nos EUA devido a dois
booms
baseados em "bolhas", primeiro a bolha das dot.com nos
anos noventa e depois a bolha habitacional no início deste
século.
Com o colapso da bolha habitacional e sem nenhuma nova bolha a
substituí-la, a economia dos EUA, e com ela a economia capitalista
mundial, entrou num período de crise, provocando descontentamento
generalizado em massa e uma ameaça à estabilidade social do
sistema. A classe trabalhadora, já afligida há muito por
salários estagnados, agora tem de enfrentar o fardo agravado do aumento
do desemprego.
A solução de Trump para a crise é a busca daquilo a que
economistas chamam a política do "roubo o meu vizinho"
("beggar-my-neighbour"),
a qual equivale a roubar empregos de outros países, especialmente
países do terceiro mundo, a fim de aumentar o emprego nos EUA. A
estagnação na economia mundial, por outras palavras, não
está a ser superada. Mas dentro desta estagnada economia mundial, os EUA
estão a tentar melhorar sua posição a expensas dos outros.
Embora isso possa melhorar a posição dos EUA por algum tempo,
até que outros comecem a retaliar, ela não supera a crise do
capitalismo mundial. Ao contrário, quando outros retaliarem, esta crise
será agravada ainda mais, o que só confirma o facto de que o
capitalismo neoliberal chegou a um beco sem saída.
Nesta situação desaparecem claramente quaisquer esperanças
de que o terceiro mundo continuasse a ser o beneficiário da
difusão de actividades da metrópole e dessa forma continuasse a
crescer rapidamente dentro do quadro do capitalismo mundial. Este crescimento,
como vimos, foi acompanhado por um agravamento da pobreza em massa e não
do seu alívio. Mas agora até esta trajectória de
desenvolvimento chegou ao fim.
Os países do terceiro mundo terão doravante de adoptar medidas
para desenvolver o seu mercado interno. Daqui em diante, para qualquer
crescimento terão de confiar no mercado interno ao invés do
mercado de exportação, o qual é atingido pela
estagnação económica mundial e pelo proteccionismo dos
EUA. Isto exigirá o crescimento da agricultura camponesa, de maior
igualdade de rendimento interno, de um aumento generalizado nos salários
reais, de uma elevação do salário mínimo e de uma
activação da despesa estatal. Uma vez que tais medidas
enfrentarão a oposição da finança globalizada, a
qual precipitaria uma fuga de capitais e portanto uma crise financeira,
terão de ser postos em vigor controles de capitais. E como isto é
provável que torne muito mais difícil financiar défices de
transacções correntes das balanças de pagamentos,
também terão de ser instituídos controles de
importações.
Contudo, todas estas medidas exigiriam uma mudança na natureza do
Estado, na aliança de classe que o sustenta. Só uma
aliança trabalhadores-campesinato que possa sustentar um estado
[poderá] assistir a uma ultrapassagem da crise e
estagnação para a qual o terceiro mundo está a ser
inexoravelmente empurrado nesta nova situação, a qual assinala o
beco sem saída do capitalismo neoliberal. E uma vez que a
trajectória de desenvolvimento anunciada por um estado apoiado por uma
tal aliança será caracterizada por um movimento rumo ao
socialismo através de etapas, o velho argumento de que o desenvolvimento
do terceiro mundo pode ocorrer só através da busca de um caminho
que conduza ao socialismo readquire uma relevância enfática na
nova situação.
21/Outubro/2018
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2018/1021_pd/capitalism-and-third-world-development
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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