O movimento dos coletes amarelos
Nada mostra a crise do capitalismo neoliberal mais claramente do que o
levantamento popular em França sob a bandeira do movimento "Coletes
amarelos". Milhares estão a congregar-se em Paris nos
fins-de-semana para protestar contra os fardos intoleráveis que lhes
estão a ser impostos em nome da "austeridade" e para pedir que
os recursos sejam obtidos, ao invés, através da
tributação dos ricos. Este movimento começou como um
protesto contra altas do preço do gasóleo mas agora assumiu um
carácter mais geral e está a atrair enorme apoio popular.
Há um esforço em círculos liberais para retratar o
movimento como sendo patrocinado por uma combinação da
extrema-esquerda e da extrema-direita e como um movimento que em
última análise serviria para fortalecer as forças
fascistas. Mas isto é a táctica típica empregue pelos
círculos liberais para recusar reclamações de pessoas que
se manifestam em tais movimentos e para obter apoio para si próprios
invocando o fantasma do fascismo. É verdade que a França tem um
forte movimento fascista, mas não há ligação entre
aquele movimento e a agitação dos Coletes amarelos. E quem se
beneficia politicamente com esta agitação dependerá das
acções das várias formações
políticas; isto não pode ser previsto facilmente. De facto, o
próprio movimento não tem apoiantes políticos e as suas
reivindicações, como a de alívio para o povo e impostos
sobre os ricos, nada têm a ver com a direita. Ao contrário,
são exigências progressistas que decorrem dos grandes apuros para
os quais o neoliberalismo empurrou as massas trabalhadoras.
As raízes destes apuros têm de ser claramente entendidas. Num
período de crise, no qual o produto e o emprego crescem vagarosamente,
assim se comporta o crescimento da receita governamental. Se o défice
orçamental tem de ser controlado, e as regras da União Europeia
determinam que ele não exceda os 3 por cento do PIB, então a
despesa governamental também tem de ser restringida. Isto tem dois
efeitos: primeiro, agrava a crise através de uma nova
restrição da procura agregada; e segundo, uma vez que tal corte
na despesa tipicamente afecta sobretudo despesas sociais, provoca um novo
esmagamento dos trabalhadores pobres.
Os trabalhadores pobres são portanto atingidos de três modos
distintos: primeiro, pela própria crise original; segundo pelo
agravamento da crise devido à resposta do governo através de
cortes na despesas; e terceiro, pela perda directa no padrão de vida que
é causada pelo facto de que o corte habitualmente é na despesa
social. Protestos populares generalizados nestas circunstâncias, como
está a acontecer em Paris, dificilmente são surpreendentes.
O que, pode-se perguntar, aconteceria se o governo não restringisse sua
despesa? Haveria obviamente um aumento na dimensão do défice
orçamental, o qual seria mal recebido pelo capital financeiro e
também violaria as regras da UE. Mas mesmo assumindo que o governo
francês pudesse ignorar estes factores, ele ainda assim enfrentaria um
mais grave contratempo com o aumento do défice orçamental.
Se compararmos duas situações, uma em que o governo apegou-se
rigidamente ao objectivo de 3 por cento de défice orçamental e
outra em que excedeu aquele limite devido a uma recusa do corte nos gastos
governamentais na mesma proporção da queda da receita,
então o défice em conta corrente na balança de pagamentos
nesta última situação será mais elevado do que na
primeira. Isto porque uma parte da procura agregada mais elevada na
última situação teria "escapado" para o exterior
na forma de um défice corrente mais alto. Daí a necessidade que
haveria de maior empréstimo externo para cobrir o défice corrente
mais elevado. Mas precisamente porque o défice orçamental
é maior, o capital financeiro internacional estará pouco desejoso
de conceder maiores empréstimos para sustentar o défice corrente
maior.
Por outras palavras, incidir num défice orçamental maior pode ser
administrável se isto não causar expansão do défice
em conta corrente; mas se o fizer, então o país em causa
enfrentará um problema. O constrangimento quanto a ampliar o
défice orçamental portanto não é algo que decorra
devido a falsas percepções; é realmente um constrangimento
estrutural.
Para ver a natureza deste constrangimento estrutural, vamos imaginar um
cenário alternativo em que a França imponha controles de
importações para assegurar que um défice orçamental
maior não crie um défice corrente maior, isto é, que a
maior procura agregada que é gerada em comparação com uma
situação em que o défice orçamental é
mantido controlado dentro dos 3 por cento do PIB, provoca um aumento totalmente
do produto e do emprego interno e não se traduz em maiores
importações. Num tal caso, não haverá necessidade
de qualquer endividamento externo adicional devido à
superação do objectivo do défice orçamental.
O constrangimento estrutural quanto à ampliação do
défice orçamental decorre portanto do facto de que a procura
agregada gerada por um maior défice orçamental
"transmite-se"
("leaks out")
para o exterior, pelo menos parcialmente. Isto decorre do facto de que sob o
neoliberalismo não é permitido aos países aplicar
controles de importação. Só os EUA fizeram isso até
agora. Nenhum país europeu o fez; na verdade nenhum país europeu
pode fazer isto sem sair da própria UE, a qual nega tal liberdade aos
países membros.
Este é o dilema da França de hoje. Emmanuel Macron, o presidente
francês, foi à televisão para discursar à
nação e anunciou uma série de concessões às
reivindicações dos Coletes amarelos. Estas incluíam o
aumento do salário mínimo e o adiamento alta do preço do
gasóleo. Macron contudo descartou categoricamente qualquer aumento da
tributação dos ricos. Suas medidas anunciadas elevariam portanto
o défice orçamental para além do que a UE permite. Mas
mesmo assumindo que a UE adopta uma visão benevolente da
transgressão do défice orçamental pela França, o
facto de que a França terá de contrair mais empréstimos do
exterior implicaria que isto teria de agradar ao capital financeiro. E isso
exigirá o esmagamento do povo de alguma forma.
Dito de modo diferente, Macron poderia ter tributado os ricos e mantido assim o
objectivo do défice orçamental. Mas ele descartou isso porque
seria inaceitável para o capital financeiro. Ele poderia ter, mesmo
enquanto aumentava o défice orçamental, imposto controles de
importação de modo a que a procura agregada acrescida fosse
atendida através de maior aumento do produto e do emprego internos e
não provocasse um maior défice em conta corrente; mas isso
não é possível sob as regras da UE e, além disso,
seria inaceitável para o capital financeiro. Portanto suas medidas
provocariam um maior défice orçamental e em conta corrente
e se as entradas de capital fossem para financiá-lo, então os
financeiros exigiriam a sua libra de carne na forma de "austeridade",
ou no imediato ou, no máximo, após algum tempo.
Portanto as anunciadas medidas de Macron, se bem que possam ter êxito na
prevenção de quaisquer novos protestos por algum tempo, realmente
equivalem a enganar o povo. Elas significam comprar paz agora para uma
posterior maior carnificina popular.
Em termos reais, se os trabalhadores receberem algum alívio,
então este alívio pode vir ou a expensas dos que ganham o
excedente interno ou de maior produção interna através de
maior procura agregada; ou de recursos emprestados do exterior. Como os ricos
estão a ser poupados, a primeira destas opções é
descartada; e mesmo que ocorra algum aumento na produção interna
devido a esses gastos de socorro, alguns empréstimos externos
também terão de ser incorridos, o que significa que uma
combinação da segunda e da terceira opção
será utilizada para pagar o alívio.
Mas qualquer contracção de empréstimo externo trará
"austeridade" no seu rosto, de modo que em última
análise o fardo do alívio terá de ser arcado por outras
secções do próprio povo trabalhador.
Em suma, as medidas de socorro da Macron são uma medida de
protelação, uma táctica de ludibrio, pela qual alguns
segmentos dos trabalhadores receberão alívio a expensas de outros
segmentos dos trabalhadores. Mas o facto de Macron ter sido forçado a
anunciar tais medidas testemunha a profundidade da ira popular, a qual mesmo os
guardiões do capitalismo neoliberal não podem permitir-se
ignorar. Desde a marcha dos camponeses em Delhi até as
manifestações dos Coletes amarelos em Paris, estamos a
testemunhar uma explosão mundial de ira popular à escala mundial;
mas isso apenas sublinha o facto de que o capitalismo neoliberal atingiu um
beco sem saída completo.
16/Dezembro/2018
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2018/1216_pd/yellow-vest-movement
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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