O obstáculo a um New Deal nos dias de hoje
Aquilo que até agora fora apenas uma sugestão de vários
membros prescientes do establishment capitalista, agora tornou-se
política oficial pelo menos na Grã-Bretanha onde o
primeiro-ministro Boris Johnson anunciou que o seu governo empreenderá o
investimento a fim de estimular a economia, tal como o fez nos EUA F. D.
Roosevelt sob o New Deal na década de 1930. De facto, Johnson referiu-se
especificamente ao New Deal de Roosevelt e manifestou a sua
intenção de aumentar impostos sobre o ricos se necessário.
De modo divertido, ele antecedeu o seu discurso com a observação
de que "Eu não sou um comunista".
É mérito de Johnson ter reconhecido que o capitalismo neoliberal
chegou a um beco sem saída e que o sistema agora precisa da
intervenção do Estado, tão vilipendiada sob o
neoliberalismo, a fim de se reerguer da sua crise actual. Este ponto
básico continua a iludir o governo Modi na Índia, o qual continua
a repetir como um disco riscado os velhos e cansativos clichés acerca de
incentivar os "criadores de riqueza". O problema contudo é que
um New Deal não pode ser simplesmente activado à vontade, mesmo
por Johnson ou qualquer outro líder ocidental.
No tempo do New Deal original não havia capital financeiro globalizado,
só capitais financeiros com base na nação e capitais
financeiros nacionais de Estados-nação que estavam bloqueados
numa feroz rivalidade inter-imperialista. Cada Estado-nação
tinha, portanto, um grau de alavancagem em relação ao
"seu" capital financeiro e podia persuadi-lo quanto à
necessidade de aceitar uma mudança de política, tal como o New
Deal, para a preservação do sistema como um todo.
Mesmo assim, houve uma forte oposição ao New Deal de Roosevelt
por parte do capital financeiro americano, o qual conseguiu após
o êxito inicial das medidas do New Deal em efectuar uma espécie de
recuperação da Depressão forçar a
administração norte-americana a um recuo parcial, razão
pela qual em 1937 os EUA voltaram a cair numa recessão. Foi só o
aumento das despesas com armamento na preparação para a Segunda
Guerra Mundial que finalmente levou os EUA a recuperarem-se das garras da
Grande Depressão. De facto, antes do aumento das despesas com armamento,
se bem que a utilização da capacidade instalada no sector de bens
de consumo nos EUA tivesse recuperado um pouco, no sector de bens de capital a
utilização continuava a permanecer num abismo; a procura por
armamento é que conseguiu ressuscitar este último.
A oposição do capital financeiro a qualquer activismo do Estado
que procure estimular directamente o nível de actividade na economia, ou
seja, que não seja efectuado através das
corporações, permanece tão forte como sempre. O capital
financeiro prefere que o governo conceda às corporações
incentivos de várias formas, tais como a limitação de
direitos trabalhistas ou a concessão de benefícios fiscais, para
investir mais (embora estas medidas se tenham mostrado singularmente
infrutíferas para assim fazê-lo).
Esta posição da finança não é surpreendente,
pois a intervenção directa do Estado para aumentar o nível
de actividade na economia, não importa quão necessária,
mina a legitimidade social dos capitalistas: sugere que a
protecção e a alimentação desta classe particular
não é realmente necessária para a sociedade, pois o seu
trabalho pode ser feito muito melhor pelo Estado e pelo sector público
por ele gerido.
A difamação absoluta do sector público que era comum sob o
neoliberalismo portanto fazia parte da tentativa de reafirmar a hegemonia
ideológica do capital financeiro a qual fora ameaçada pela
tendência do pós-guerra de intervenção directa do
Estado na economia e pela construção de um sector público
na maior parte dos países. É por isso que o discurso de Johnson
sobre o aumento do investimento público é simultaneamente
significativo e indicativo de uma situação desastrosa,
nomeadamente a natureza terminal da crise da ordem neoliberal.
A oposição do capital financeiro a qualquer New Deal que possa
ser tentado hoje, embora não menos feroz, seria no entanto muito mais
eficaz do que foi na década de 1930. Isto porque hoje em dia cada
Estado-nação enfrenta um capital financeiro globalizado, ao
contrário do que acontecia na década de 1930, quando só
tinha de enfrentar o "seu próprio" capital financeiro. A
globalização financeira significa que qualquer Estado que viole
os ditames da finança, tal como ao tentar um New Deal financiado por um
maior défice orçamental ou por impostos sobre os ricos, corre o
risco de uma fuga de capital das suas costas e portanto de uma crise
financeira. Enquanto no período anterior a oposição das
finanças a tais medidas teria assumido essencialmente uma forma
política, agora, assumiria também, adicionalmente, a forma de um
ataque económico sob a forma de fuga de capitais da economia.
Esta fraqueza que um Estado-nação tem para enfrentar a
finança globalizada não surgiria se houvesse um Estado global a
enfrentar a finança global; ou, uma vez que não se vislumbra um
Estado global, o que era necessário era um representante
(surrogate)
do Estado global, sob a forma de acção coordenada por
vários Estados-nação actuando em
concertação, na introdução simultânea de um
New Deal em todas as suas economias. Mas isto, que pelo menos seria um
avanço sobre a actual organização do neoliberalismo,
não está a ser discutido, nem mesmo por intelectuais burgueses
visionários, muito menos por líderes políticos dos
países capitalistas avançados.
O governo de um único país capitalista avançado como a
Grã-Bretanha, ao introduzir um New Deal teria portanto de estar
preparado para tomar medidas contra a fuga de capitais e, assim, de se preparar
para instituir controlos de capital. Mas uma economia como a
Grã-Bretanha, dada a força e as ambições dos seus
interesses financeiros localizados na city de Londres, nunca seria capaz de o
fazer. Qualquer conversa sobre a introdução de um New Deal que
não considere estes requisitos prévios que acredite, em
suma, no que John Maynard Keynes acreditava, nomeadamente que simplesmente
apontar teoricamente o que é necessário para uma economia
ultrapassar a sua crise é o que realmente levaria à
instauração de medidas para ultrapassar a crise é
mera conversa ociosa.
Por importante que seja o reconhecimento de Boris Johnson de que a actual conjuntura
económica que levou o neoliberalismo a um beco sem saída, a sua
crença de que um New Deal para a superação desta
conjuntura possa ser introduzido na Grã-Bretanha carece de
consistência. Ultrapassar a oposição da finança
globalizada a um tal New Deal exigiria a luta de classe, a
mobilização da classe trabalhadora contra a hegemonia da
finança, que um governo conservador da espécie que Boris Johnson
lidera é incapaz de organizar. Mesmo o Partido Trabalhista sob uma
liderança "moderada" é incapaz de organizar a classe
trabalhadora para sair da camisa-de-forças da actual conjuntura. Um
movimento de esquerda sozinho pode tomar a iniciativa para isso, mas, quando o
fizer, o resultado da luta de classes intensificada não pode ser
garantido que permaneça confinado dentro dos limites do sistema
capitalista; a energia necessária para a luta pela saída desta
conjuntura é provável que leve o país, ou na verdade
qualquer outro país que tente uma agenda semelhante, para além
dos limites do capitalismo, rumo ao socialismo.
Deve-se recordar aqui o debate acerca da situação no
princípio do século XX. Dadas as depredações do
capitalismo monopolista, muitos naquele tempo defenderam um regresso ao
capitalismo da livre concorrência. Contra isto Lenine argumentou que se o
capitalismo da livre concorrência havia levado ao monopólio,
então pensar em voltar atrás com o relógio, e retornar
novamente ao capitalismo competitivo era absolutamente irrealista. Era preciso
pensar em avançar em relação ao capitalismo monopolista e
só poderia ser para o socialismo.
O debate sobre a situação actual é algo semelhante. Dado o
beco sem saída do neoliberalismo, prescientes escritores burgueses, e
seguindo-os Boris Johnson, estão a pedir um regresso ao dirigismo do
pós-guerra, do qual o New Deal, embora introduzido antes da guerra, foi
um marco importante. Mas como o próprio neoliberalismo saiu do dirigismo
do pós-guerra, a sua exigência equivale simplesmente a atrasar o
relógio, a voltar a algo cujas contradições haviam
conduzido ao próprio arranjo que nos levou à actual
situação. Atrasar o relógio nunca é a
direcção da história, ao passo que avançar a partir
daqui abre a possibilidade de ir para além do próprio capitalismo.
12/Julho/2020
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2020/0712_pd/hindrance-new-deal-today
Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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