O regime internacional que emerge
As economias do terceiro mundo estão agora a enfrentar uma procura
reduzida para a exportação dos seus bens e serviços devido
a duas razões distintas. Uma é a crise capitalista mundial, a
qual implica uma procura agregada reduzida na economia do mundo e portanto
exportações agregadas reduzidas para todos os países
tomados em conjunto. A outra é o proteccionismo dos EUA, o qual,
reservando para aquele país uma fatia maior do que teria normalmente
deste mercado mundial reduzido, deixa consequentemente menos para os outros.
Uma vez que as importações de vários destes países
do terceiro são de mudança mais morosa, estes países
enfrentam um défice comercial ampliado e, portanto, défices em
conta corrente nos seus balanços de pagamentos, o que é um
resultado combinado da crise capitalista mundial e do proteccionismo
estado-unidense. Como na nova situação os fluxos financeiros para
o terceiro mundo seriam menores do que anteriormente (devido à incerteza
acerca do futuro do regime neoliberal que foi introduzida pelo proteccionismo
estado-unidense e devido também às perspectivas de uma
ascensão na taxas de juro dos EUA), estes países do terceiro
mundo, do qual a Índia é um exemplo primário, terão
de adoptar as suas próprias medidas para ultrapassar estes
défices.
A medida óbvia, e também a mais saudável, para ultrapassar
o défice em conta corrente é a protecção contra
importações através de tarifas e restrições
quantitativas. A protecção é saudável porque ela
não precisa ser inflacionária. Enquanto a imposição
de uma tarifa sobre importações de petróleo eleva o
preço em rupias do petróleo importado e, se
"transmitido", pode causar uma ascensão geral nos
preços, pois o petróleo é um input essencial que entra
directa ou indirectamente em todas as actividades produtivas, a
imposição de uma tarifa semelhante sobre carros importados ou
ouro não tem tal impacto inflacionário geral. Nem carros
importados nem ouro são inputs essenciais para a produção
na maior parte dos sectores. Assim, uma ascensão dos seus preços
não tem impacto inflacionário geral.
Mas se houver um tal impacto inflacionário geral devido a uma tarifa,
então ele afecta o padrão de vida real de um vasto número
de trabalhadores cujos salários monetários estão fixados.
Portanto uma tarifa sobre o petróleo pode afectar adversamente o
padrão de vida dos trabalhadores de um modo que uma tarifa sobre carros
importados ou ouro não o faz, uma vez que estas últimas
não entram no cabaz salarial nem como inputs nem directamente como bens
salariais. As tarifas portanto podem ser concebidas de modo a que reduzam
importações e melhorem a balança comercial sem um
esmagamento inflacionário sobre o povo.
Não se passa o mesmo com outros instrumentos para a melhoria da
balança comercial, razão pela a protecção das
importações é o meio mais saudável de efectuar uma
tal melhoria. Uma depreciação da taxa de câmbio, por
exemplo, eleva o preço de todas as importações, não
apenas de algumas específicas como no caso da protecção
tarifária e, portanto, tem necessariamente um impacto
inflacionário geral que afecta adversamente os trabalhadores.
Naturalmente, uma tarifa, como vimos no exemplo acima do petróleo, pode
ser inflacionária mas não precisa obrigatoriamente de ser. Isto
não é intrínseco à natureza da tarifa do modo como
é intrínseco à depreciação da taxa de
câmbio.
Mas muito embora os próprios Estados Unidos tenham introduzido
protecção tarifária contra várias
importações da China e anteriormente tenham mesmo introduzido
medidas fiscais punitivas contra corporações que deslocalizam
actividades de serviços na Índia, nem os próprios EUA nem
o capital financeiro internacional aprovarão medidas proteccionistas
serem adoptadas por outros países, especialmente por um dos
países do terceiro mundo, uma vez que a própria natureza
discriminatória do proteccionismo, que é sua virtude,
também mostra o vazio da ideologia de "deixar as coisas para o
mercado". Discriminação significa intervenção
discricionária no funcionamento do mercado e, portanto, sublinha a
superioridade da mão visível sobre a "mão
invisível". Estamos portanto a movimentar-nos rumo a um regime de
comércio internacional em que os EUA e uns poucos países
avançados empenhar-se-ão na protecção
tarifária, ao passo que a maior parte das economias do terceiro mundo
(excepto aquelas como a China que têm excedentes de
exportação) terão comércio relativamente mais
livre, com ajustamentos da balança de pagamentos sendo tentados
através de depreciações da taxa de câmbio ou dos
salários internos e da deflação de preços.
Isto é muito semelhante ao que prevaleceu no regime colonial no
século XIX. A colónias como a Índia não era
permitido impor tarifas sobre bens importados da metrópole, basicamente
a Grã-Bretanha, ao passo que a Grã-Bretanha impunha tarifas
pesadas sobre bens indianos até 1846 e mesmo depois de a
Grã-Bretanha ter ido para um regime de livre comércio, economias
continentais como a Grã-Bretanha, e os EUA, continuaram a ter altas
tarifas sobre as suas importações. Em suma, a economia
internacional parece pronta a mover-se de volta a um regime comercial de estilo
colonial, onde um comércio livre de mão única é
imposto aos países do terceiro mundo.
Deve-se notar uma importante implicação disto. Os mecanismos de
ajustamento não-proteccionista para a balança de pagamentos, como
observámos, são necessariamente, intrinsecamente, anti-povo.
Considere-se uma depreciação da taxa de câmbio. Já
vimos que ela tem um impacto inflacionário generalizado. Agora, se os
trabalhadores tiverem êxito em proteger seus padrões de vida reais
contra esta inflação pela obtenção de
salários monetários mais altos (ou rendimentos
monetários), então não há depreciação
real e efectiva da taxa de câmbio. Uma depreciação de 10
por cento da taxa de câmbio poderia resultar num aumento do nível
de preços de menos de 10 por cento e, portanto, provocar uma
depreciação real efectiva da taxa de câmbio, de modo que as
importações se tornassem mais caras no mercado interno em
comparação com o período anterior à
depreciação, e as exportações mais baratas no
mercado internacional, só se os salários monetários
não ascendessem de todo, ou não ascendessem tão
rápido quanto os preços, isto é, só se os
salários reais caíssem.
Exactamente o mesmo se passa, num sentido óbvio, quanto ao outro
instrumento que pode ser utilizado para a melhoria da balança comercial,
o qual é cortar salários monetários enquanto se
mantém a taxa de câmbio constante. A qualquer taxa de câmbio
constante, uma queda de 10 por cento nos salários monetários
provocará uma queda de menos de 10 por cento no nível de
preços (uma vez que um componente dos custos, nomeadamente o dos inputs
importados, teriam permanecido inalterado). Isto significa uma queda nos
salários reais mas uma redução de preços de bens
produzidos internamente quando comparados com bens estrangeiros, tanto no
mercado interno como nos mercados internacionais.
Uma deflação do salário monetário a uma dada taxa
de câmbio, por outras palavras, tem exactamente o mesmo efeito de uma
depreciação da taxa de câmbio a dados salários
monetários. Ambos reduzem salários reais como um meio de melhorar
a competitividade de bens produzidos internamente em relação a
bens estrangeiros. Portanto estas ambas medidas não-proteccionistas para
a melhoria da balança comercial, ao contrário do proteccionismo,
exigem necessariamente uma redução dos salários reais.
Exactamente o mesmo se pode dizer da outra possível medida para melhorar
a balança comercial que é a deflação da procura
interna, onde a ideia é comprimir a procura interna como um meio de
reduzir a factura da importação. Os meios típicos pelos
quais esta deflação é executada é reduzir a despesa
do governo com subsídios e transferir pagamentos para os pobres,
mantendo baixos os salários de empregados do governo, e medidas como
estas, todas as quais mais uma vez reduzem os rendimentos reais dos
trabalhadores.
Portanto o novo regime de comércio internacional é
provável que institucionalize um ataque aos trabalhadores como o meio de
melhorar a balança comercial em países do terceiro mundo. Devido
a isto é provável que testemunhemos ainda maiores esforços
para minar organizações de trabalhadores como sindicatos
através da introdução da chamada "flexibilidade do
mercado de trabalho" ou a completa liberdade para o patronato contratar e
despedir trabalhadores à vontade.
Mas este regime comercial não terá êxito no alívio
da crise do capital mundial, nem tão pouco uma adopção
geral do proteccionismo o fará, apesar das importantes diferenças
entre os dois que observámos acima. Uma tal adopção
generalizada do proteccionismo, ao mesmo tempo em que anula a vantagem que pode
ter dado aos EUA ser o primeiro a adoptar o proteccionismo, criará mais
incerteza entre os capitalistas, amortecendo seu incentivo para investir e,
assim, agravando a crise. Exactamente o mesmo acontecerá se, ao
invés de uma política de "roubar meu vizinho"
("beggar my neighbour")
ser seguida por todos os países proteccionistas, uma política de
"roubar meu vizinho" for seguida através de algumas medidas
proteccionistas e de outras adoptando deflação salarial ou
depreciação da taxa de câmbio. Da mesma forma, a
compressão da procura através de cortes nas despesas internas
também agravaria a crise, reduzindo ainda mais o nível da procura
agregada na economia mundial.
A superação da crise económica mundial exige um aumento da
procura agregada mundial; Cada país a lutar por uma fatia maior de um
dado mercado mundial, não importa que instrumento seja utilizado nesse
combate, não pode aliviar a crise. Na verdade, pode agravá-la por
amortecer o incentivo para investir.
Quanto ao terceiro mundo, o proteccionismo pode ser um instrumento melhor a ser
seguido para a melhoria da balança comercial. Mas para uma melhoria
duradoura no emprego, deve ser acompanhado de medidas para expandir o mercado
interno.
09/Dezembro/2018
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2018/1209_pd/emerging-international-regime
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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