Há uma visão forte em alguns círculos de esquerda,
especialmente em certos círculos da esquerda europeia, de que qualquer
desligamento do capitalismo global leva a um fortalecimento da
reacção interna. Naturalmente, mesmo na Europa isto não
é necessariamente a visão dominante da esquerda. Exemplo:
os
comunistas e outros segmentos da esquerda grega os quais defendem que a
Grécia abandone a Eurozona ao invés de aceitar as medidas de
"austeridade" impostas pela chamada "troika" dos credores
obviamente não aceitam seriamente esta conexão entre o
desligamento de uma instituição supranacional do capital e a
reacção interna; mas ela representa um ponto de vista
significativo. E em vários círculos de esquerda e de liberais
progressistas em países do terceiro mundo como o nosso, especialmente
naqueles círculos que são intelectualmente influenciados por
estes segmentos da esquerda europeia, tal visão prevalece: ela
argumenta
que muito embora a globalização seja prejudicial para as
condições de vida do povo trabalhador em países como o
nosso, tem de ser combatida por meios diferentes dos do desligamento, uma vez
que este só pode promover forças reaccionárias
internas.
O que são estes meios diferentes nunca é deixado claro e a
questão da sua eficácia na defesa dos interesses do povo nunca
é discutida. No entanto, esta visão, de que o desligamento da
globalização, através entre outras coisas da
imposição de controles transfronteiriços sobre fluxos de
capital e de mercadorias, conduz à promoção de
forças reaccionárias internas, detém uma influência
considerável. De facto, no festival de Kochi há alguns anos,
Slavoj Zizek, o conhecido filósofo marxista esloveno, argumentou que
qualquer desligamento da globalização, ao promover o
"nacionalismo" e um recuo para dentro do país do terceiro
mundo que o tente, vai contra uma perspectiva internacionalista, ou no
mínimo cosmopolita, a qual é essencial para manter as
forças reaccionárias internas à distância.
Não pretendo entrar na discussão das possíveis
alternativas para o desligamento. Uma vez que os próprios oponentes do
desligamento não explicam tais alternativas, muito menos argumentam
explicitamente a favor delas, não precisamos entrar nesse
território. Além disso, é lógico que não
havendo movimentos internacionais de camponeses e nem realmente movimentos
internacionais eficazes de trabalhadores, para resistir aos efeitos da
globalização, isto é, uma vez que a nação
permanece como a arena primária da resistência de classe contra os
efeitos da globalização, se tal resistência tiver
êxito em chegar ao poder ela não tem alternativa senão
desligar-se da globalização. No entanto, o que pretendo fazer
não é repetir estes pontos óbvios mas ao invés
disso chamar a atenção para um "paradoxo
aparente" que implica toda esta questão. E este consiste no facto
de que
não é o desligamento da globalização mas sim a
própria globalização que conduz aos fortalecimento de
forças reaccionárias em países como o nosso;
de que não é o "nacionalismo" dirigido contra a
globalização, o qual é uma expressão da hegemonia
do capital financeiro internacional, que promove a reacção por
"olhar de dentro", mas ao invés disso é o
próprio capital financeiro internacional que promove a
reacção como meio de reter sua hegemonia.
PARALELO PERTURBADOR
Aqui há de facto um paralelo perturbador entre a crítica do Banco
Mundial à estratégia de substituição de
importações do período
dirigista,
a qual levou ao desenvolvimento de auto-suficiência significativa em
tecnologia e na capacidade de produzir bens, como sendo a de "olhar para
dentro", portanto errada, e o argumento destes segmentos da esquerda de
que o desligamento da globalização, sendo "olhar para
dentro", é errado porque conduz à reacção
interna. Dizer isto não é difamar estes segmentos de esquerda,
mas simplesmente sublinhar dois pontos: primeiro, "olhar para
dentro"
e "olhar para fora" não são expressões de
classe; utilizá-las sem levar em conta o contexto de classe pode
portanto camuflar aspectos cruciais da realidade social. Segundo, na medida em
que estas expressões são utilizadas
apesar da consciência da realidade social,
uma vez que "olhar para fora" significa necessariamente forjar
laços fortes com um mundo dominado pelo imperialismo, aqueles segmentos
da esquerda que desaprovam uma trajectória de "olhar para
dentro" estão a subestimar os efeitos deletérios da
dominação imperialista.
Eles assim o fazem por duas possíveis razões: ou porque
não reconhecem de todo a presença do
imperialismo
como um fenómeno (embora possa reconhecer "o império"
como uma entidade empírica, ou reconhecer e condenas "aventuras
imperialistas" individuais tal como no Iraque onde os países
avançados estavam de olho nos recursos petrolíferos), ou porque,
baseando-se nos escritos de Marx sobre a Índia no princípio da
década de 1850, vêem um "lado positivo" na
exposição do "terceiro mundo" às principais
potências capitalistas. Se bem que este "lado positivo" possa
ter sido
historicamente
pertinente, ele não tem relevância uma vez que os povos do
terceiro mundo levantaram-se em revoltas anti-imperialistas a fim de impor a
descolonização. (De facto, pretender um "lado positivo"
para o imperialismo
depois
de se ter verificado a descolonização equivale a negar o papel
histórico positivo da própria descolonização).
Uma vez que aceitamos a natureza permanente do imperialismo e vemos a actual
globalização como uma expressão do mesmo, embora
naturalmente num contexto mudado, o desligamento da globalização
num mundo onde resistência e lutas são organizadas nacionalmente
torna-se um ítem necessário na agenda.
E também constitui o meio para ultrapassar, ao invés de abrir
caminho, a reacção interna.
Isto é óbvio no nosso próprio contexto. A luta
anti-colonial na Índia activou o povo e mobilizou-o em torno de uma
agenda que incluía entre outras coisas uma pessoa-um voto, certos
direitos fundamentais para todo cidadão, igualdade diante da lei sem
consideração de casta, religião e género e
separação da religião do Estado, toda esta agenda
representou uma ruptura drástica em relação à
desigualdade social praticados durante milénios. Grande parte desta
agenda está hoje ameaçada, em perigo de ser minada
de facto
pelas forças comunais que ocupam as principais posições
no Estado, com a ajuda da oligarquia corporativo-financeira que está
alinhada com o capital financeiro internacional. Estas forças comunais,
vale a pena recordar,
estiveram completamente arredadas da luta anti-colonial,
nem um único dos seus ícones e líderes esteve alguma vez
nela envolvido (e Savarkar, que esteve envolvido a princípio, dela
dissociou-se depois de apresentar uma "desculpa" aos governantes
coloniais).
Dito de modo diferente, a "modernidade" no sentido da ultrapassagem
da herança de milénios de desigualdade institucionalizada e o
entendimento da noção de uma fraternidade de
"cidadãos" iguais, embora representando por si mesma mais o
ideal do que os projectos da ordem burguesa, não pode ser
alcançada nem através de uma ligação ao
imperialismo, nem sob a égide da burguesia interna que forja esta
ligação com o imperialismo e com a sua agência principal na
era da globalização, isto é, o capital financeiro
internacional. O progresso rumo à própria "modernidade"
é uma tarefa delegada à esquerda em sociedades como a nossa. Por
isso ela tem de lutar contra a hegemonia do capital financeiro internacional e,
portanto,
pelo
desligamento de uma ordem por ele dominada.
O "capital financeiro", enfatizou Lenine, quer sempre a
"dominação". Por isto ele deve dividir o povo, promover
o comunalismo, minar a activação política do povo e
subverter todas as tendências para a realização de uma
"fraternidade de cidadãos iguais", a qual é o declarado
ideal
da democracia. A luta contra o capital financeiro é necessariamente
inclusiva,
ao passo que a hegemonia do mesmo é necessariamente acompanhada pela
imposição do divisionismo, pelo farejar das linhas de fractura da
sociedade pré existente a fim de exacerbá-las.
Mas então, pode-se perguntar, como explicar a abundância de
movimentos fundamentalistas e reaccionários que encontramos nestes dias
por todo o terceiro mundo, os quais posicionam-se em absoluto contraste com o
humanismo aparentemente professado e pregado pelos países capitalistas
avançados (aos quais designamos como potências imperialistas) que
posteriormente aparecem como oásis de "modernidade" e
tolerância dentro de um oceano de fanatismo e intolerância?
Subjacente a este fenómeno está um facto de considerável
importância, nomeadamente a destruição sistemática
pelas próprias potências imperialistas do surto progressista que
representou a luta anti-colonial no terceiro mundo, da "modernidade"
que a luta anti-colonial representou.
IMPERIALISMO, PAI DOS FANÁTICOS
Todas as arenas principais do fundamentalismo islâmico de hoje são
lugares que estiveram outrora na vanguarda de lutas progressistas do terceiro
mundo e cada uma de tais lutas foi destruída pelo imperialismo. O regime
democrático laico de Mossadegh no Irão, apoiado pelo Partido
Tudeh, foi derrubado, com a ajuda do ayatola Kashani, porque ousou nacionalizar
o petróleo. O partido Baath de Saddam Hussein foi ajudado pelo
imperialismo a derrubar o regime progressista do general Kassem no Iraque, o
qual fora apoiado pelos comunistas; e posteriormente o próprio regime de
Saddam Hussein que pelo menos era laico foi derrubado, mais uma vez pelo
imperialismo, o qual deliberadamente promoveu a divisão xiitas-sunitas a
fim de fortalecer sua posição. O regime do presidente Sukarno, na
Indonésia, o qual tinha o apoio dos comunistas, foi derrubado pelo
imperialismo num sangrento golpe militar de Suharto, ao qual se seguiu um
massacre que matou meio milhão de comunistas, e hoje o fundamentalismo
faz sentir sua presença na Indonésia. O Sudão, outro lugar
onde forças fundamentalistas estão a levantar a cabeça,
tinha o maior Partido Comunista da África, mas um golpe de Nimieri
apoiado pelo imperialismo tomou o poder e o líder comunista, camarada
Mahjoub, foi executado. E é claro que no Afeganistão foi o
imperialismo que promoveu a
jihad
contra o regime apoiado pela União Soviética e que
desovou o Taliban e a Al Qaeda.
Em suma, o imperialismo, que por toda a parte aparece como o benigno defensor de
"valores humanos" contra os fanáticos fundamentalistas,
é ele próprio o pai dos fanáticos. Ele sistematicamente
destruiu todos os regimes progressistas, laicos e nacionalistas no terceiro
mundo, enquanto promovia directamente os fanáticos fundamentalistas ou
deixava o cenário vazio preparado para eles.
Isto não quer dizer que os regimes laicos nacionalistas do terceiro
mundo não tivessem as suas próprias falhas, fraqueza e
contradições. Sabemos na Índia do compromisso com o
latifundismo
(landlordism)
em que entrou o governo pós independência, compromisso esse que
esvaziou a viabilidade do regime económico
dirigista.
Histórias semelhantes podem ser repetidas a partir de outros contextos.
Mas o ponto básico é isto: nunca foi permitido aos
países
do terceiro mundo resolverem suas próprias contradições e
antagonismo de classe. O imperialismo, inevitavelmente, entrou por toda a
parte; interveio por toda a parte e o resultado da sua
intervenção foi o fortalecimento por toda a parte das
forças da reacção. Portanto, ver a reacção
como o produto de uma estratégia de "olhar para dentro", e uma
ultrapassagem da reacção como ficando facilitada pela
ligação ao imperialismo, é ignorar um ponto crucial acerca
da realidade contemporânea.
30/Agosto/2015
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2015/0830_pd/de-linking-and-domestic-reaction
.
Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.