A Turquia passa a ser o centro do Novo Grande Jogo
por Pepe Escobar
Quando se trata de semear e lucrar com a divisão, a
Turquia de Erdogan é a campeã.
Sob o nome delicioso Lei de combate aos adversários da América
por meio de sanções
(Countering America's Adversaries Through Sanctions Act, CAATSA),
a administração Trump impôs sanções a Ancara
por ousar comprar sistemas de defesa russos S-400 com mísseis terra-ar.
As sanções se concentraram na agência de compras de defesa
da Turquia, a SSB.
A resposta do ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Mevlut
Cavusoglu, foi rápida: Ancara não recuará e
está, de facto, a considerar como responder.
Os caniches europeus inevitavelmente tiveram que acompanhar. Portanto,
após o proverbial e interminável debate em Bruxelas, eles
estabeleceram sanções "limitadas" acrescentando
uma lista adicional para uma cimeira em Março de 2021. Contudo, tais
sanções na verdade centram-se em indivíduos ainda
não identificados envolvidos em perfurações offshore em
Chipre e na Grécia. Eles nada têm a ver com os S-400s.
Aquilo com que a UE se saiu é, na verdade, um regime de
sanções de direitos humanos muito ambicioso e global, modelado de
acordo com a Lei Magnitsky dos Estados Unidos. Isso implica a
proibição de viagens e o congelamento de bens de pessoas
consideradas unilateralmente como responsáveis por genocídio,
tortura, execuções extrajudiciais e crimes contra a humanidade.
A Turquia, neste caso, é apenas uma cobaia. A UE sempre hesita
fortemente quando se trata de sancionar um membro da NATO. O que os eurocratas
em Bruxelas realmente querem é uma ferramenta extra poderosa para
assediar sobretudo a China e a Rússia.
Nossos jihadistas, desculpe, "rebeldes moderados"
O fascinante é que Ancara, sob o comando de Erdogan, parece sempre
ostentar uma espécie de atitude desenvolta.
Veja-se a situação aparentemente insolúvel no
caldeirão Idlib, no noroeste da Síria. Os chefões da
Jabhat al-Nusra também conhecido coma al-Qaeda na Síria
estão agora envolvidos em negociações
"secretas" com gangs armadas apoiadas pela Turquia, tais como a Ahrar
al-Sharqiya, bem em frente das autoridades turcas. O objectivo: aumentar o
número de jihadistas concentrados em certas áreas-chave. O
resultado final: um grande número deles virá de Jabhat al-Nusra.
Portanto Ancara, para todos os efeitos práticos, permanece totalmente
por trás dos jihadistas radicais no noroeste da Síria
disfarçados sob o nome "inocente" de Hayat Tahrir al-Sham.
Ancara não tem absolutamente nenhum interesse em permitir que tais
pessoas desaparecessem. Moscovo, é claro, está plenamente
consciente destas travessuras, mas os astutos estrategas do Kremlin e do
Ministério da Defesa por enquanto preferem deixar as coisas andarem,
assumindo que o processo Astana compartilhado pela Rússia, Irão e
Turquia possa ser algo frutífero.
Erdogan, ao mesmo tempo, com habilidade dá a impressão de que
está totalmente empenhado em girar para Moscovo. Ele está
entusiasmado pelo facto de o "seu colega russo Vladimir Putin" apoiar
a ideia inicialmente apresentada pelo Azerbaijão de uma
plataforma de segurança regional unindo Rússia, Turquia,
Irão, Azerbaijão, Geórgia e Arménia. Erdogan disse
mesmo que, se Yerevan fizer parte desse mecanismo, "uma nova página
pode ser aberta" nas relações até agora
intratáveis entre a Turquia e a Arménia.
É claro que ajudará o facto de que, mesmo sob a
proeminência de Putin, Erdogan terá um assento importante na mesa
desta suposta organização de segurança.
O Grande Quadro é ainda mais fascinante porque esboça
vários aspectos da estratégia de equilíbrio da
Eurásia de Putin, a qual envolve como actores principais a
Rússia, China, Irão, Turquia e Paquistão.
Às vésperas do primeiro aniversário do assassinato do
General Soleimani, Teerão está longe de intimidado e
"isolado". Para todos os efeitos práticos, está de modo lento
mas seguro a forçar os EUA a abandonar o Iraque. As
ligações diplomáticas e militares do Irão com o
Iraque, Síria e Líbano permanecem sólidas.
E com menos tropas americanas no Afeganistão, o facto é que o
Irão pela primeira vez desde a era "eixo do mal" estará
menos cercado pelo Pentágono. Tanto a Rússia quanto a China
os principais nós da integração da Eurásia
apoiam o Irão totalmente.
É claro que o rial iraniano entrou em colapso em relação
ao dólar americano e a receita do petróleo caiu de mais de US$100
mil milhões por ano para algo em torno dos US$7 mil milhões. Mas
as exportações não petrolíferas estão bem
acima dos US$30 mil milhões/ano.
Tudo está prestes a mudar para melhor. O Irão está a
construir um oleoduto ultra-estratégico da parte oriental do Golfo
Pérsico até o porto de Jask, no Golfo de Omã
contornando o Estreito de Ormuz e pronto para exportar até 1
milhão de barris de petróleo por dia. A China será o
principal cliente.
O presidente Rouhani disse que o oleoduto estará pronto no Verão
de 2021, acrescentando que o Irão planeia vender mais de 2,3
milhões de barris de petróleo por dia no ano que vem com
ou sem as sanções dos EUA aliviadas por Biden-Harris.
Observe o Anel de Ouro
O Irão está bem ligado à Turquia a oeste e à
Ásia Central a leste. Um elemento extra importante no tabuleiro de
xadrez é a entrada de comboios de carga ligando directamente a Turquia
à China através da Ásia Central contornando a
Rússia.
No início deste mês, o primeiro comboio de carga deixou Istambul
para uma viagem de 12 dias de 8.693 km, atravessando o Bósforo por baixo
através do novíssimo
túnel Marmaray
, inaugurado há um ano, depois ao longo do Corredor Médio
Oriente-Oeste via ferrovia
Baku-Tbilisi-Kars
(BTK), através da Geórgia, Azerbaijão e
Cazaquistão.
Na Turquia, isso é conhecido como Ferrovia da Seda. Foi o BTK que
reduziu o transporte de carga da Turquia para a China de um mês para
apenas 12 dias. Toda a rota do Leste Asiático à Europa Ocidental
agora pode ser percorrida em apenas 18 dias. O BTK é o nó
principal do chamado Corredor Central de Pequim a Londres e da Rota da Seda de
Ferro do Cazaquistão à Turquia.
Tudo o que foi dito acima se encaixa perfeitamente na agenda da UE
especialmente da Alemanha: implementar um corredor comercial
estratégico ligando a UE à China, contornando a Rússia.
Isto finalmente levaria a uma das alianças chave a serem consolidadas
nos anos intensos anos 20: Berlim-Pequim.
Para acelerar esta possível aliança, o que se fala em Bruxelas
é que os eurocratas lucrariam com o nacionalismo turcomano, o
pan-turquismo e a recente
entente cordiale
entre Erdogan e Xi no que diz respeito aos uigures. Mas há um problema:
muitas tribos turcófonas preferem uma aliança com a Rússia.
Além disso, a Rússia é incontornável quando se
trata de outros corredores. Tomemos, por exemplo, um fluxo de mercadorias
japonesas indo para Vladivostok e então, via Transiberiano, para Moscovo
e daí para a UE.
A estratégia da UE de contornar a Rússia não foi
exactamente um êxito na Arménia-Azerbaijão: o que se
verificou foi um recuo relativo da Turquia e uma vitória russa de facto,
com Moscovo a reforçar sua posição militar no
Cáucaso.
E mesmo um gambito ainda mais interessante: a parceria estratégica
Azerbaijão-Paquistão, agora em franca expansão no
comércio, defesa, energia, ciência e tecnologia e agricultura.
Islamabad, aliás, apoiou Baku em Nagorno-Karabakh.
Tanto o Azerbaijão quanto o Paquistão têm
relações muito boas com a Turquia: o que tem a ver com
herança cultural turco-persa, muito entrelaçada.
E elas podem ficar ainda mais próximas, com o Corredor Internacional de
Transporte Norte-Sul (INTSC) conectando cada vez mais não só
Islamabad a Baku como também a Moscovo.
Daí a dimensão extra do novo mecanismo de segurança
proposto por Baku unindo Rússia, Turquia, Irão,
Azerbaijão, Geórgia e Arménia: todos os quatro primeiros
aqui querem laços mais estreitos com o Paquistão.
O analista Andrew Korybko baptizou-o primorosamente como "Anel de
Ouro" uma nova dimensão para a integração da
Eurásia Central, destacando a Rússia, China, Irão,
Paquistão, Turquia, Azerbaijão e os "istões" da
Ásia Central. Portanto, tudo isto vai muito além de uma
possível Tríplice Entente: Berlim-Ancara-Pequim.
O que é certo, tal como estão as coisas, é que a
importante relação Berlim-Moscovo permanecerá fria como
gelo. O analista norueguês Glenn Diesen
resumiu tudo isto
: "A parceria germano-russa para a Grande Europa foi substituída
pela
parceria sino-russa para a Grande Eurásia".
O que também é certo é que Erdogan, um mestre do
manobrismo, encontrará maneiras de lucrar simultaneamente com a Alemanha
e com a Rússia.
28/Dezembro/2020
O original encontra-se no
Asia Times
e em
thesaker.is/turkey-pivots-to-the-center-of-the-new-great-game/
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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