por Miguel Urbano Rodrigues
O Partido Comunista do Chile não está representado no Parlamento.
Uma lei eleitoral antidemocrática, concebida para favorecer os
grandes partidos da burguesia, explica a ausência de comunistas nas duas
casas do Congresso. Mesmo em circunscrições eleitorais onde o
PCCh obtém grandes votações, o tecto nacional imposto
funciona como travão, impedindo a entrada de comunistas.
Poderia concluir-se apressadamente que a influência do Partido junto
dos trabalhadores e no conjunto da sociedade tem diminuído em
consequência da discriminação que o atinge. Mas isso
não aconteceu. A presença do Partido de Recabarren nas
organizações sindicais é hoje mais forte do que no
início da década de 90 e o seu prestígio na classe
operaria tem crescido de ano para ano.
Perseguido com selvajaria durante a ditadura, o PC do Chile desenvolveu na
clandestinidade as virtudes de um partido revolucionário cujos
militantes na luta contra o fascismo, pela reconquista das liberdades, foram
exemplares pela coerência, tenacidade e heroísmo. O preço
pago foi altíssimo. Os nomes de milhares de comunistas figuram nas
listas de patriotas desaparecidos e assassinados na época de Pinochet.
Sem uma intransigente fidelidade aos princípios, o Partido não
teria conseguido sobreviver a esse período trágico e emergir
dele, duramente golpeado, com a imagem de uma organização
revolucionária que contrariamente a outras da Unidade Popular
não abdicou do seu projecto (sem data) socialista e do seu
propósito de combate frontal ao capitalismo e ao imperialismo.
Enquanto Partidos como o Socialista, o da Democracia e o Radical, antes mesmo
do fim da ditadura, formalizaram com a Democracia Cristã a
aliança da Concertación que levaria ao Palácio de la
Moneda Presidentes que deram início ao chamado pinochetismo sem
Pinochet, o Partido Comunista denunciou e combateu sempre frontalmente as
políticas neoliberais e de subordinação ao Consenso de
Washington, impostas pelos EUA.
Essa coerência comunista foi submetida a uma prova muito difícil
na campanha eleitoral de 1999.
Dois candidatos fortes surgiram na disputa da Presidência para suceder
ao democrata cristão Eduardo Frei, filho do ex-presidente do mesmo nome.
Os partidos da Direita lançaram Lavin, o alcaide de Las Condes, o
município mais rico do pais. Para o enfrentar, a Concertación
apresentou Ricardo Lagos, um político simultaneamente membro do
Partido Socialista e do Partido por La Democracia, do qual foi alias fundador.
Lavin, empresário de êxito, riquíssimo, recebeu o apoio
de Washington, que identificou nele uma garantia de continuidade do chamado
"modelo chileno", da política económica do
neoliberalismo ortodoxo, iniciada por Pinochet e mantida pelos dois
presidentes democratas cristãos da Concertacion, Aylwin e Frei. Lavin
surgia como o porta-voz da direita quimicamente pura.
Mas a Administração Clinton não hostilizou a candidatura
de Lagos. Concluiu que o candidato da Concertación, se vencedor, iria,
com uma linguagem diferente, actuar também como um executor
dócil da estratégia do Consenso de Washington.
Perante o quadro eleitoral, o Partido Comunista apresentou a candidatura da
sua presidente, Gladys Marin.
A campanha foi utilizada pelo PCCh para desmontar a caricatura de democracia
existente no país e acompanhar a exposição e defesa do seu
programa de uma reflexão profunda sobre a realidade social chilena.
No primeiro turno, Lagos venceu, mas a diferença que o separou de
Lavin foi apenas de umas dezenas de milhares de votos.
Ficou transparente que a votação dos comunistas seria decisiva
no segundo turno.
Para a direcção do PCCh a opção a tomar, na
situação criada, era muito difícil.
O debate travado no Partido foi amplo e de uma profundidade ideológica
incomum.
A direcção, interpretando o sentir das bases e identificada com
ele, decidiu não aprovar uma indicação de voto.
Lavin representava a direita sem máscara. Mas o Partido concluiu que
qualquer tipo de apoio a Ricardo Lagos, mesmo acompanhado de reservas,
implicaria um afastamento dos princípios
E porquê?
Lagos fora na juventude, como docente na Universidade, um quadro activo da
Unidade Popular. Dizia então ser allendista e marxista. Foi um dos
muitos intelectuais ligados à UP que conheceu o exílio. Mas
sofreu com os anos uma transformação camaleónica. No
período que precedeu a transição, no final dos anos 80,
destacou-se como um dos principais arquitectos da Concertación, essa
estranha coligação de partidos que optou por uma política
que negava as ideias que defendera na juventude.
O PCch não desconhecia as diferenças entre Lavin e Lagos.
Sabia que este, se chegasse à Presidência, teria um discurso
formalmente democrático e que as suas relações com as
Forças Armadas reflectiriam a condenação da ditadura. Mas
os comunistas acreditavam que Lagos não romperia com "o
modelo" económico neo-pinochetiano, e talvez o aprofundasse. A
indicação de voto nele implicaria, portanto, uma ruptura com
princípios e valores comunistas.
Não se tratava de escolher entre o mal menor. Num momento em que Hugo
Chavez, na Venezuela, interpretando as aspirações do seu povo,
iniciava a caminhada que desembocaria na revolução bolivariana,
pedir aos comunistas que votassem em Lagos seria, de alguma forma, leva-los a
crer que o candidato da Concertación poderia corrigir, minimamente que
fosse, na política interna e na internacional, o rumo seguido pelos
governos de Aylwin e Frei. E o PCch estava consciente de que isso não
aconteceria.
Ricardo Lagos foi eleito, como, aliás, se esperava. Mas a
diferença que o separou de Lavin não foi muito superior à
do primeiro turno. Cada comunista votou de acordo com a sua consciência.
O desenvolvimento da história confirmou a correcção da
análise a que procedera o PCCh .
Ricardo Lagos actuou ao longo do seu mandato o regime é
Presidencialista como um adepto convicto do neoliberalismo. E
reforçou a aliança com Washington. Perante o fracasso da ALCA,
assinou com os EUA um Tratado de Livre Comercio bilateral que faz do Chile
uma colónia de novo tipo. Hostilizou Cuba e a Venezuela bolivariana.
O Chile é na America Latina um dos países onde a
distribuição da riqueza produzida contribui para aumentar a
desigualdade social. O abismo entre os de cima e os de baixo aprofundou-se
nos últimos anos.
Não esquecerei a atmosfera em Santiago em Agosto de 2003 quando o povo
chileno recordou o golpe do 11 de setembro de 73.
O governo de Lagos prestou uma homenagem simbólica à
memória de Allende. Mas não somente ignorou todas as
iniciativas das forças progressistas no âmbito do evento
"Allende vive 30 anos depois", como, em manobra intimidatória,
mobilizou quase 30 mil carabineros que durante dias imprimiram nas ruas
à capital chilena a fisionomia de uma cidade ocupada. O objectivo,
fracassou.
Eu vivi esses dias em Santiago quando as forças mal chamadas "da
ordem" fizeram o possível para dificultar o acesso do povo
à praça onde, frente a La Moneda, milhares de pessoas se
concentraram para o grande acto de massas que encerrou aquelas jornadas .
Deixei então o Chile com a convicção reforçada de
que o PCCh agira correctamente ao recusar o apoio a Ricardo Lagos na
segunda volta das eleições.
Guardo na memória palavras ouvidas de Gladys Marin, a dirigente
recentemente falecida, uma revolucionária exemplar que muito admirei
como comunista e amiga:
"Tudo o que Lagos fez até agora na presidência e aquilo que
não fez confirmam que o Partido fez a opção que se
impunha. O apoio no segundo turno teria implicado uma concessão ao
sistema, uma ruptura com os nossos princípios".
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