por Miguel Urbano Rodrigues
[*]
A humanidade enfrenta a mais grave crise de civilização da sua
história. Ela difere de outras, anteriores, por ser global, afectando a
totalidade do planeta. É uma crise política, social, militar,
financeira, económica, energética, ambiental, cultural.
O homem realizou nos últimos dois séculos conquistas prodigiosas.
Se fossem colocadas a serviço da humanidade, permitiriam erradicar da
Terra a fome, o analfabetismo, as guerras, abrindo portas a uma era de paz e
prosperidade.
Mas não é o que acontece. Uma minoria insignificante controla e
consome os recursos naturais existentes e a esmagadora maioria vive na pobreza
ou na miséria.
O fim da bipolaridade, após a desagregação da URSS,
permitiu aos Estados Unidos adquirir uma superioridade militar, política
e económica enorme que passou a usar como instrumento de um projecto de
dominação universal. As principais potências da
União Europeia, nomeadamente o Reino Unido, a Alemanha e a França
tornaram-se cúmplices dessa perigosa política.
O sistema de poder que tem o seu pólo em Washington, incapaz de
encontrar solução para a crise do seu modelo, inseparável
da desigualdade social, da sobre-exploraçao do trabalho e do esgotamento
gradual dos mecanismos de acumulação, concebeu e aplica uma
estratégia imperial de agressão a povos do chamado Terceiro Mundo.
Em guerras ditas de baixa intensidade, promovidas pelos EUA e seus aliados,
morreram nos últimos sessenta anos mais de trinta milhões de
pessoas. Algumas particularmente brutais, definidas como
"preventivas" visaram o saque dos recursos naturais dos povos
agredidos.
Reagan criou a expressão "o império do mal" para
designar a URSS no final da guerra fria. George Bush pai vulgarizou o conceito
de "estados canalhas" para satanizar países cujos governos
não se submetiam às exigências imperiais. Entre eles
incluiu o Irão, a Coreia Popular, a Líbia e Cuba.
Em Setembro de 2001, após os atentados que destruíram o World
Trade Center e demoliram uma ala do Pentágono, George W. Bush (o filho)
utilizou o choque emocional provocado por esse trágico acontecimento
para desenvolver uma estratégia que fez da "luta contra o
terrorismo" a primeira prioridade da política estado-unidense.
Uma gigantesca campanha mediática foi desencadeada, com o apoio do
Congresso, para criar condições favoráveis à
implantação da política defendida pela extrema-direita.
Segundo Bush e os neocon, "a segurança dos EUA" exigia medidas
excepcionais na esfera internacional e na interna.
Os grandes jornais, as cadeias de televisão, as rádios, a
explorando a indignação popular e o medo, apoiaram iniciativas
como o Patriot Act que suspendeu direitos e garantias constitucionais,
legalizando a prática de crimes e arbitrariedades. A irracionalidade
contaminou o mundo intelectual e até em universidades tradicionais
professores progressistas foram despedidos e houve proibição de
livros de autores célebres.
A campanha adquiriu rapidamente um carácter de caça às
bruxas, com perseguições maciças a muçulmanos. Uma
vaga de anti-islamismo varreu os EUA, com a cumplicidade dos grandes media. O
Congresso legalizou a tortura.
No terreno internacional, o povo do Afeganistão foi a primeira
vítima da "cruzada contra o terrorismo". Os EUA, a pretexto de
que o governo do mullah Omar não lhe entregava Bin Laden
declarado inimigo numero um de Washington invadiu, bombardeou e ocupou
aquele pais.
Seguiu-se o Iraque após uma campanha de desinformação de
âmbito mundial. O Governo de Bagdad foi acusado de acumular armas de
extermínio massivo e de ameaçar portanto a segurança dos
EUA e da Humanidade. A acusação era falsa, como se provou mais
tarde, e os EUA não conseguiram obter o apoio do Conselho de
Segurança. Mas, ignorando a posição da ONU, invadiram,
vandalizaram e ocuparam o país. Inicialmente contaram somente com o
apoio do Reino Unido.
Crimes monstruosos foram cometidos no Afeganistão e no Iraque pelas
forças de ocupação. A tortura de prisioneiros no
presídio de Abu Ghrabi assumiu proporções de
escândalo mundial. Ficou provado que o alto comando do exército e
o próprio secretário da Defesa, Donald Rumsfeld tinham autorizado
esses actos de barbárie. Mas a Justiça norte-americana limitou-se
a punir com penas leves meia dúzia de torcionários.
Simultaneamente, milhares de civis, acusados de "terroristas" -muitos
nunca tinham sequer pegado numa arma foram levados para a base de
Guantanamo, em Cuba, e para cárceres da CIA instalados em países
da Europa do Leste.
As Nações Unidas não somente ignoraram essas atrocidades
como acabaram dando o seu aval à instalação de governos
títeres em Cabul e Bagdad e ao envio para ali de tropas de muitos
países. No caso do Afeganistão, a NATO, violando o seu
próprio estatuto, participa activamente, com 40 mil soldados, da
agressão às populações. Dezenas de milhares de
mercenários estão envolvidas nessas guerras.
Em ambos os casos, Washington sustenta que essas guerras preventivas
representam uma contribuição dos EUA para a defesa da liberdade,
da democracia, dos direitos humanos e da paz e foram inspiradas por
princípios e valores éticos universais. O presidente Barack
Obama, ao receber o Premio Nobel da Paz em Oslo, defendeu ambas, num discurso
farisaico, como serviço prestado à humanidade. Isso no momento em
que decidira enviar mais 30 mil soldados para a fogueira afegã.
Os factos são esses. Apresentando-se como líder da luta mundial
contra o terrorismo, o sistema de Poder dos EUA faz hoje do terrorismo de
Estado um pilar da sua estratégia de dominação.
A criação de um exército permanente em África
o Africom os bombardeamentos da Somália e do Iémen,
a participação na agressão ao povo da Líbia
inserem-se nessa politica criminosa de desrespeito pela Carta da ONU.
Mas a ambição de poder absoluto de Washington é
insaciável.
O Irão, por não capitular perante as exigências do sistema
de Poder hegemonizado pelos EUA, é há anos alvo permanente da
hostilidade dos EUA. Washington tem saudades do governo vassalo do Xá
Pahlevi e cobiça as enormes reservas de gás e petróleo
iranianas.
A campanha de calúnias, apoiada pelos media, repete incansavelmente que
o Irão enriquece urânio para produzir armas atómicas. A
acusação é gratuita. A Agencia Internacional de
Segurança Atómica não conseguiu encontrar qualquer
indício de que o país esteja a utilizar as suas
instalações nucleares com fins militares. O presidente
Ahmanidejah, aliás, de acordo com o Brasil e a Turquia, numa
demonstração de boa fé, propôs-se a enriquecer o
urânio no exterior. Mas essa proposta logo foi recusada por Washington e
pelos aliados europeus.
Sobre as armas nucleares de Israel, obviamente, nem uma palavra. Para os EUA, o
Estado sionista e neo fascista, responsável por monstruosos crimes
contra os povos do Líbano e da Palestina, é uma democracia
exemplar e o seu melhor aliado no Médio Oriente.
O agravamento das sanções que visam estrangular economicamente o
Irão é acompanhado de declarações
provocatórias do Presidente Obama e da secretaria de Estado Clinton,
segundo as quais "todas as opções continuam em aberto",
incluindo a militar. Periodicamente jornais influentes divulgam planos de
hipotéticos bombardeamentos do Irão, ou pelos EUA ou por Israel,
sem excluir o recurso a armas nucleares tácticas. O objectivo é
manter a tensão na guerra não declarada contra um pais soberano.
Lamentavelmente, uma parcela importante do povo dos EUA assimila as calunia
anti-iranianas como verdades. A maioria dos estado-unidenses desconhece a
gravidade e complexidade da crise interna. A recente elevação do
teto da divida publica de mais de 14 mil milhões de dólares para
16 mil milhões total superior ao PIB do pais é,
porem, reveladora da fragilidade do gigante que impõe ao mundo uma
politica de terrorismo de estado.
Entretanto, o discurso oficial, invocando os "pais da Pátria",
insiste em apresentar os EUA como o grande defensor da democracia e das
liberdades, vocacionado para salvar a humanidade.
Sem o controlo pelo grande capital da esmagadora maioria dos meios de
comunicação social e dos áudio visuais pelo sistema de
poder imperial, a manipulação da informação e a
falsificação da História não seriam
possíveis. Um instrumento importante nessa politica é a
exportação da contra-cultura dos EUA, país -- registe-se
-- onde coexiste com a cultura autêntica.
A televisão, o cinema, a imprensa escrita e, hoje, sobretudo a Internet
cumprem um papel fundamental como difusores dessa contra cultura que nos
países industrializados do Ocidente alterou profundamente nos
últimos anos a vida quotidiana dos povos e a sua atitude perante a
existência.
A construção do homem formatado principia na infância e
exige uma ruptura com a utilização tradicional dos tempos livres.
O convívio familiar e com os amigos é substituído por
ocupações lúdicas frente à TV e ao computador, com
prioridade para jogos violentos e filmes que difundem a contra cultura com
prioridade para os que fazem a apologia das Forças Armadas dos EUA.
A contra-cultura actua intensamente no terreno da música, da
canção, das artes plásticas, da sexualidade. A
contra-musica que empolga hoje multidões juvenis é a de estranhas
personagens que gritam e gesticulam, exibindo roupas exóticas, berrantes
em gigantescos palcos luminosos, numa atmosfera ensurdecedora, em rebeldia
abstracta contra o vácuo.
O jornalismo degradou-se. Transmite a imagem de uma falsa objectividade para
ocultar que os media ao serviço da engrenagem do poder insistem, com
poucas excepções, em justificar as guerras americanas como
"cruzada anti-terrorista" em defesa da humanidade porque os EUA,
nação predestinada, batalhariam por um mundo de justiça e
paz.
É de justiça assinalar que um número crescente de
cidadãos americanos denunciam essa estratégia de Poder, exigem o
fim das guerras na Ásia e lutam em condições muito
difíceis contra a estratégia criminosa do sistema de poder.
Nestes dias em que se multiplicam as ameaças ao Irão, é
minha convicção de que a solidariedade actuante com o seu povo se
tornou um dever humanista para os intelectuais progressistas.
Visitei o Irão há cinco anos. Percorri o país de Chiraz
ao Mar Cáspio. Escrevi sobre o que vi e senti. Tive a oportunidade de
verificar que é falsa e caluniosa a imagem que os governos ocidentais
difundem do país e da sua gente. Independentemente da minha
discordância de aspectos da politica interna iraniana nomeadamente os
referentes à situação da mulher -- encontrei um povo
educado, hospitaleiro, generoso, amante da paz, orgulhoso de uma cultura e uma
civilização milenares que contribuíram decisivamente para
o progresso da humanidade.
Para mim o Irão encarna muito mais valores eternos da
condição humana do que a sociedade norte americana, cada vez mais
robotizada.
Porto, Portugal, 10/Agosto/2011
[*]
Texto enviado ao Festival Internacional Justiça e Paz que se
realizará no Irão em Outubro próximo
O original encontra-se em
http://www.odiario.info/?p=2178
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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