por Miguel Urbano Rodrigues
A vaga de contestação que fustiga o mundo árabe chegou
tarde a Marrocos.
Foi somente a 20 Fevereiro que ali ocorreram as primeiras
manifestações de protesto contra o regime. Anunciadas com
antecedência, nelas participaram em Casablanca e Rabat umas 8 000
pessoas. A polícia dissolveu-as com brutalidade.
Os organizadores, intelectuais, jovens e sindicalistas, esclareceram na
convocatória que a iniciativa era pacífica e não visava o
derrubamento do regime. "Menos poder para a monarquia" e "o rei
deve reinar e não governar" foram as tímidas palavras de
ordem mais ouvidas.
Transcorridas duas semanas, a 9 de Março, o rei Mohamed VI pronunciou um
discurso que foi saudado com entusiasmo pelos meios de
comunicação social.
Alguns jornais qualificaram a fala do monarca de
"revolucionária", base da "nova monarquia".
Analistas ditos liberais viram no discurso um verdadeiro programa que fixava
"o rumo para a democracia".
Que disse ou prometeu, afinal, o jovem monarca para justificar tamanha euforia?
Muito pouco, quase nada.
Mudou alguns ministros, criou uma Comissão Consultiva para a
Regionalização e incumbiu-a de elaborar uma revisão da
Constituição. Fez o elogio da sua obra governativa, mas
esclareceu que, atento às aspirações do povo, se
propõe a encaminhar o regime para uma democracia parlamentar, delegando
oportunamente poderes num primeiro-ministro. O presidente da Comissão,
em conferência de imprensa, informou que vai propor três emendas
à Constituição: a revogação da tutela dos
governadores sobre os conselhos regionais, a atribuição de
poderes legislativos aos presidentes das Regiões e medidas em
benefício das mulheres.
Os elogios ao rei, nos jornais, na TV e na Rádio, prosseguiram. Mas,
transcorridos uns dias, os media deram voz à oposição
legal e houve quem definisse o regime como uma ditadura anacrónica.
Uma instituição universitária promoveu em Casablanca uma
mesa redonda sobre o tema "A efervescência no Mahgreb:
lógicas e perspectivas geopolíticas". Os participantes
assumiram posições diferentes no tocante a uma questão
colocada: será Marrocos uma excepção no mundo árabe?
A maioria dos académicos optou pela ambiguidade nas respostas. El
Houssain, professor de Relações internacionais, recusa a tese da
excepcionalidade, afirmando temer os efeitos crise económica e um
aumento do desemprego, declarou preferir o termo
"revolução" a "efervescência" para
caracterizar os acontecimentos.
Brahim Fihri, presidente do Instituto Amadeus, declarou com pompa que Marrocos
está a viver "a revolução do rei e do povo",
orientada para "um novo contrato social" sem cor ideológica.
Para ele o perigo vem exclusivamente do movimento islamita Al Adl Wal Ibsade,
que estaria preparando uma "emboscada" ao rei, porque "o
nacionalismo árabe é perverso".
Não houve uma intervenção de carácter progressista
durante essa mesa redonda.
Pela linguagem e estilo o discurso político em Marrocos das
personalidades que ali falam de "revolução" lembra o
dos dirigentes do PS e do PSD quando reflectem sobre a crise portuguesa. Para
eles a solução para os problemas nacionais será uma
redistribuição equilibrada da riqueza nacional e a
criação de "fundos contra pobreza"
Não explicam obviamente o que fazer para redistribuir a riqueza numa
sociedade com uma estrutura de classes semi feudal, marcada por desigualdades
afrontosas da condição humana.
No dia 13 de Março a Policia dispersou em Casablanca uma
manifestação de centenas de pessoas. Houve numerosos feridos. O
diário de língua francesa
Les Echos
dedicou ao assunto 16 linhas, acompanhadas de uma fotografia, sublinhando que
a maioria dos participantes eram islamistas da Al Adl Wal Ibsade.
Comerciantes com quem falei desvalorizaram o protesto. Mas para o dia 20 o
Movimento Mudança 20 de Fevereiro assim se intitula
convocou novas manifestações. Segundo as agências
noticiosas, dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas em 20
cidades. A polícia não interveio desta vez e o número de
incidentes terá sido mínimo.
As palavras de ordem eram novamente brandas. A maioria pedia ao rei que afaste
os ministros envolvidos em negociatas. Alguns manifestantes exibiam
cartões amarelos (não vermelhos) numa advertência ao
monarca. O Movimento 20 de Fevereiro radicaliza-se, mas lentamente.
A CRÍTICA DO DESPOTISMO
Das muitas críticas ao regime que li nos jornais durante a minha
permanência em Marrakech, a mais dura foi a de Fouad Abdelmouni, um
activista dos direitos humanos que, nos anos 80, passou anos na prisão
por preconizar a proclamação da república.
Sem mastigar as palavras, afirmou numa entrevista que Marrocos está
submetido a um regime de absolutismo monárquico, exercido na
continuidade de uma teocracia califal.
Numa crítica frontal aos políticos que defendem uma
transição na qual o rei, como príncipe dos crentes,
mantenha um controle firme do Estado como árbitro, Abdelmouni,
mostrou-se céptico. Recordou que Mohamed VI, quando sucedeu ao pai,
anunciou no discurso do trono a criação de um Estado moderno,
democrático. Mas não cumpriu a promessa e governou como
déspota.
Abdelmouni reivindica não a alteração de artigos da
Constituição vigente, mas a convocação de uma
Constituinte.
Poderia concluir-se que este intelectual é um revolucionário que
sugere soluções radicais.
Mas o seu projecto é o de um reformismo inócuo. Na sua
opinião, "a monarquia parlamentar é o único projecto
válido hoje". Abdelmouni identifica-se com a posição
moderada do Movimento 20 de Fevereiro e de todos aqueles que contestam o
absolutismo monárquico, "dos islamistas aos comunistas".
Para se entender o que isso significa, cabe esclarecer que o antigo Partido
Comunista Marroquino mudou de nome e programa duas vezes. Legalizado, renunciou
ao marxismo. É uma caricatura do partido revolucionário de Ben
Barka, assassinado a mando do rei Hassan II com a cumplicidade do governo
francês. Encontrei dirigentes seus em Kabul numa Conferência
Internacional. Apoiavam a anexação do Sahara Ocidental e
elogiavam Mario Soares
ABDELLATIF LAÂBI E A HORA DA VERDADE
Os intelectuais marroquinos que apoiam o Movimento 20 de Fevereiro afirmam
desejar uma mudança profunda. Mas, com poucas excepções, o
seu discurso é enganador. Na realidade ambicionam apenas mudanças
que imponham uma fachada democrática ao regime mantendo quase intactas
as económicas de uma sociedade que tem evoluído no quadro de um
capitalismo dependente e anacrónico.
Tal atitude aparece com clareza na posição assumida por
Abdellatif Laâbi, um dos mais talentosos escritores do país.
Esse romancista francófono, galardoado com o Premio Goncourt,
saúda a aspiração do povo à liberdade, à
dignidade e à justiça social, condena a minoria de privilegiados
que acumulou imensas riquezas, fustiga a sua arrogância e manifesta
solidariedade com os jovens e a massa dos excluídos e explorados que
vegeta na miséria. Lâabi rejeita a tese da
"excepção marroquina" defendida pelo rei e pelos seus
epígonos porque sublinha a democracia exige soberania
popular.
Mas, simultaneamente, elogia a lucidez do monarca e o seu espírito
reformista para concluir que "a hora da verdade" soou em Marrocos e
que a única opção positiva será "a
instalação da democracia sobre bases irreversíveis".
Que bases? Ele explica: "a chave da mudança permanece, sejamos
claros, nas mãos da monarquia". Porque o rei "é o
arbitro, o garante da unidade nacional, da segurança do pais e dos
cidadãos, das liberdades individuais e colectivas, e do pluralismo
cultural e politico". Somente assim, acredita, decretada uma amnistia
geral e abolida a pena de morte, Marrocos poderá, seguir "o exemplo
de outros povos árabes que tomaram o seu destino nas mãos e
entraram na História pela porta grande".
Abstém-se de formular a mais leve crítica à
política de íntima aliança com os EUA que assume os
contornos de vassalagem.
O conceito de democracia de Abdellatif não é, registo, muito
diferente do perfilhado por Mário Soares, um politico profundamente
conservador, mascarado de socialista.
O respeito quase reverencial pela monarquia não é
identificável somente nos intelectuais. É um sentimento
compartilhado pela maioria da população, sobretudo nos meios
rurais.
Enquanto na Jordânia, no Kuwait, no Bahrein, nos Emirados, na
Arábia Saudita as manifestações de protesto contra regimes
autocráticos atinge directamente os descendentes desprestigiados de
chefes tribais que a Inglaterra colocou no poder em estados artificiais,
transformando-os em reis ou emires, isso não ocorre em Marrocos. A
oposição, limita-se a pedir a Mohamed VI que reforme um regime
tirânico, teocrático, "que reine sem governar", como
sugerem os mais audazes.
Terá o monarca revelado a envergadura de um grande estadista?
Não. É um jovem de inteligência mediana, que assumiu o
poder por direito hereditário. O pai, Hassan II, foi um déspota
que governou como os sultões medievais.
Os Alaouitas, diferentemente das dinastias anteriores, berberes, orgulham-se
das suas origens árabes. Mohamed VI, como o pai e o avô, afirma
descender do Profeta Maomé e, tal como o francês Luis XIV e o
prussiano Frederico II, proclama exercer o poder por direito divino.
A monarquia marroquina é uma aberração no século
XXI. Somente sobrevive pela alienação das massas num país
onde persistem estruturas sociais semi feudais.
A tese da "excepção marroquina", segundo a qual
Marrocos não será atingido pela grande vaga de
contestação popular que varre o mundo árabe, é,
porém, um slogan que deforma a realidade, inventado pela classe
dominante.
As manifestações de 20 de Fevereiro, repetidas em Março,
apesar de tímidas, assinalam o início de um processo de
contestação ao poder despótico que certamente vai
prosseguir. O seu rumo e as formas que assumirá a luta não
são por ora previsíveis, sobretudo pela ausência de um
partido revolucionário com implantação popular.
Mas o despertar do povo de Marrocos é uma inevitabilidade
histórica.
Vila Nova de Gaia, 25/Março/2011
O original encontra-se em
http://www.odiario.info/?p=2026
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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