Sobre os acontecimentos em Espanha
por Miguel Urbano Rodrigues
As grandes mobilizações de "indignados" assumem como
denúncia central a ausência de democracia autêntica. Neste
início do século XXI, no contexto de uma gravíssima crise
mundial de civilização, o capitalismo, em fase senil, cola o
rótulo de democracia representativa a ditaduras da burguesia de fachada
democrática.
Os acontecimentos da Espanha, pelo seu significado, estão a polarizar a
atenção da Europa e de milhões de pessoas noutros
continentes. Em Washington, Berlim, Paris e Londres, o acampamento da Puerta
del Sol, inicialmente encarado como iniciativa folclórica de jovens
pequeno burgueses frustrados, gera agora preocupação.
Quando o chamado Movimento M-15 alastrou a dezenas de cidades do país e
nas capitais europeias centenas de pessoas se manifestaram frente às
embaixadas espanholas, a indiferença evoluiu para um sentimento de temor.
Porquê?
O protesto espanhol insere-se na crise global de civilização que
a humanidade enfrenta, cujas raízes arrancam da crise estrutural de um
sistema de opressão: o capitalismo.
Seria um erro concluir que os jovens que criaram o Movimento "Democracia
Real Ya " são revolucionários e o seu objectivo é a
destruição do regime. O M-15 atraiu gente muito diferente. Alguns
nem sequer rejeitam a obsoleta e corrupta monarquia bourbonica. Mas rapidamente
a contestação popular excedeu as previsões. O Movimento,
após a repressão do primeiro dia, foi olhado quase com
benevolência pelo PP e pelo PSOE os dois grandes partidos da burguesia.
Mas, ao assumir proporções torrenciais, o protesto adquiriu os
contornos de uma condenação do regime na qual as massas emergiam
como sujeito histórico.
Na Puerta del Sol começaram a ouvir-se brados inesperados: "No al
FMI"; "No a la farsa electoral"; "PSOE y PP, la misma
gente!"; "No a las guerras de los EEUU!". Soou até a
palavra "Revolução!"
Daí o medo.
Os jovens de Madrid sabem o que não querem, mas a grande maioria
não tem uma ideia minimamente clara sobre o que fazer e como actuar. As
reivindicações aprovadas a 20 de Maio, na Assembleia do
acampamento, são moderadas, algumas ingénuas.
Espontaneísta, o M-15 não acampa no centro de Madrid em
função de uma estratégia de Poder.
Quando aquilo principiou o que unia a multidão heterogénea de
jovens pouco mais era que a recusa da caricatura de democracia. Terá
sido uma surpresa para o pequeno núcleo inicial a adesão
maciça de adultos, de desempregados, de reformados. Foi ainda numa
atmosfera de confusão que surgiram as primeiras lideranças
embrionarias, os porta-vozes do acampamento.
Jovens entrevistados por media internacionais manifestaram espanto ao tomar
conhecimento da repercussão internacional da iniciativa e das
concentrações de solidariedade em cidades espanholas e europeias.
DE TUNIS A MADRID
O protesto dos "indignados" de Espanha foi obviamente inspirado pelo
modelo da Tunísia e do Egipto. Na época da
comunicação instantânea, as redes sociais permitiram que em
tempo rapidíssimo os apelos à concentração popular
na Puerta del Sol fossem atendidos por milhares de jovens. A praça
madrilena foi a Tahrir egípcia.
Tal como ocorrera no Norte de África, a exigência de
"democracia" funcionou como motor da mobilização
popular.
Mas enquanto nas rebeliões contra Ben Ali e Hosni Mubarak as massas
reivindicavam liberdades, eleições livres, um parlamento
tradicional, destruição de aparelhos repressivos, o fim de
ditaduras ferozes e a sua substituição por regimes
representativos similares aos da União Europeia, em Espanha a
"democracia real ya" reclamada pelos "indignados" partia
dialecticamente da recusa do figurino pelo qual se batiam os africanos.
O que para os árabes era ambição e sonho aparece hoje a
muitos dos acampados da Puerta del Sol como caricatura da democracia, rosto de
um regime cuja prática nega os valores e princípios que invoca,
que concentra a riqueza numa ínfima minoria e promove o desemprego,
amplia a desigualdade social.
Enquanto a burguesia tunisina e egípcia se solidarizava com os rebeldes
que se manifestavam contra Ali e Mubarak e o imperialismo rompia com os seus
aliados da véspera, a burguesia espanhola, os partidos tradicionais e os
poderosos da União Europeia condenavam os "indignados"
peninsulares, identificando neles arruaceiros de um novo tipo.
Merece reflexão a dualidade antagónica da posição
assumida pelo imperialismo americano. Na Casa Branca, o presidente Obama
compreendeu que as reivindicações dos rebeldes da Tunísia
e do Egipto não colidiam com a sua estratégia para a
Região e, agindo com rapidez e eficácia, estimulou e aplaudiu
nesses países a instalação de Governos de
transição ditos democráticos, sob a tutela de
personalidades militares e civis que, com poucas excepções,
tinham servido as ditaduras eliminadas. Na Líbia bombardeia Tripoli; no
Golfo pede à Arábia Saudita que afogue em sangue rebeliões
incómodas como a do Bahrein, sede da V Esquadra da US Navy.
O imperialismo encara, naturalmente, com desconfiança e apreensão
o alastramento do protesto inorgânico dos jovens "indignados".
Obama e o Pentágono interrogam-se sobre as consequências
imprevisíveis de um movimento que condena com dureza o envolvimento da
Espanha nas guerras asiáticas dos EUA.
ADESÕES INTERNACIONAIS
A direita arrasou o PSOE nas eleições municipais de domingo. Os
acampados da Puerta del Sol reagiram com indiferença aparente aos
resultados. "Eles não nos representam", declararam porta vozes
do M-15, sublinhando que na engrenagem do poder, o PSOE e o PP, embora com
discursos, histórias, percursos e bases sociais diferentes, praticam no
governo politicas neoliberais muito semelhantes, e politicas externas
caracterizadas pela submissão às exigências dos EUA e de
Bruxelas.
Significativamente, o espaço e o tempo que os media espanhóis
dedicaram durante a última semana aos "indignados"
diminuíram drasticamente desde sábado. O tema quase desapareceu
das primeiras páginas dos grandes jornais e do programa dos canais de
televisão. A vitória do PP e o avanço das Autonomias
monopolizaram a atenção de políticos, analistas e
jornalistas do sistema.
Oposta é a atitude assumida pela maioria dos intelectuais progressistas.
Na Espanha e também na América Latina, personalidades de
prestigio, em artigos e entrevistas publicados em revistas Web de
informação alternativa como Resumen Latino Americano e
Rebelión e outras, expressam a sua solidariedade com os jovens do M-15 e
reflectem sobre o significado e as consequências da
contestação.
Cito alguns exemplos expressivos.
O filósofo e escritor marxista Santiago Alba Rico, num artigo intitulado
"La Qasba en Madrid" sublinhou que a Espanha "não
é uma democracia". E acrescenta, realista: "Não
haverá uma revolução em Espanha. Mas uma surpresa, um
milagre, uma tormenta, uma consciência nas trevas, um gesto de dignidade
na apatia, um acto de coragem na anuência, uma afirmação
anti-publicitaria de juventude, um grito colectivo de democracia na Europa,
não é já um pouco uma revolução?"
Carlos Taibo, professor da Universidade Autónoma de Madrid, esteve na
Puerta del Sol levando solidariedade, e dirigindo-se aos acampados disse ao
saudá-los: "Os que aqui estamos somos, obviamente, pessoas muito
diferentes. Temos na cabeça projectos e ideais diferentes. Mas
conseguimos, apesar disso, chegar a acordo quanto a um punhado de ideias
básicas". E, parafraseando Santiago Alba Rico, afirmou:
"Aquilo a que em Espanha chamam democracia, não o é!".
O escritor italiano Carlo Frabetti escreveu: "Desde o protesto dos Goya de
2003 que não se conseguira um aproveitamento tão eficaz de
contestaçao interna do sistema e a sua expressão cultural do
espectáculo".
Atilio Borón, um sociólogo marxista argentino de
prestígio internacional, dedica aos jovens acampados um artigo
entusiástico intitulado "Os indignados e a Comuna de Paris".
Lembra que aquilo que a democracia de Moncloa propõe para enfrentar a
"crise é o despotismo do mercado, irreconciliável com
qualquer projecto democrático". E, cedendo a um impulso
romântico, conclui o artigo com estas palavras: "Se persistirem (os
indignados) na sua luta poderão derrotar a prepotência do capital
e, eventualmente, iniciar uma nova etapa na história não
só da Espanha, mas da Europa".
Angeles Maestro, a destacada dirigente de "Corriente Roja", da
Espanha, mais realista, salienta que os acampamentos em dezenas de cidades
espanholas "têm um conteúdo anti-capitalista" e neles
ondula "uma multidão de bandeiras republicanas". Enfatiza o
descrédito da montagem eleitoral e afirma que "As
mobilizações maciças que se iniciaram em numerosas cidades
do estado espanhol a 15 de Maio e que tiveram continuidade em acampamentos,
assembleias e convocatórias para novas manifestações
expressam o alto nível de indignação e raiva de uma
juventude que não tem qualquer esperança de chegar a ter os
direitos básicos que a Constituição pomposamente proclama:
direito ao trabalho, à habitação, à
educação e saúde publica de qualidade, a uma pensão
digna, etc.".
Quanto ao futuro do Movimento, adverte como revolucionaria experiente:
"Nos processos sociais não há atalhos. Se é um facto
que a faúlha da espontaneidade está sempre presente e serve para
desencadear as mobilizações, somente o avanço da
organização é a medida da acumulação de
forças, e sem acumulação de forças as lutas leva-as
o vento."
AMANHÃ INCERTO
Esperanza Aguirre, a reeleita alcaide de Madrid, não esconde a sua
hostilidade aos acampados. Se dela dependesse, declarou, ordenaria à
Policia que expulsasse da Puerta del Sol os acampados. A repressão
inicial foi esclarecedora da sua posição. Mas carece de poderes
para recorrer à força.
Qual o desfecho do protesto dos "indignados"?
Por ora é imprevisivel.
Vai persistir, transformando-se em desafio ao Poder?
Uma Assembleia, improvisada e tumultuosa como as anteriores, decidiu manter
manter o acampamento até ao próximo domingo. Durante a semana os
activistas irão aos bairros. Depois se verá.
Em Barcelona e noutras cidades, as concentrações de protesto
também não se dissolveram, mas os próprios organizadores
admitem que o número de participantes diminua nos próximos dias.
Repito: os jovens "indignados" sentem dificuldade em definir um rumo
para a luta que iniciaram. A maioria talvez não tenha consciência
da complexidade do desafio lançado ao Poder.
Volto a citar Angeles Maestro: "O processo de confluência
múltipla em torno a um programa comum somente poderá abrir
caminho se criar raízes nas lutas operárias e populares. Por
outras palavras, se a construção do referente politico beber a
seiva na luta de classes e demonstrar a sua utilidade para abordar um longo
processo de acumulação de forças".
A consciência demonstrada pelos "indignados" de Madrid de que a
"democracia representativa" é uma ficção no
Estado Espanhol deve porém ser saudada como acontecimento importante no
âmbito das lutas de massa europeias e não ignorada, subestimada ou
mesmo criticada com sobranceria em atitudes irresponsáveis por alguns
dirigentes de partidos de esquerda da União Europeia.
Não compartilho a euforia prematura de Atilio Boron, mas julgo oportuno
reafirmar que a Espanha não é excepção na Europa.
Não há democracia autêntica sem participação
decisiva do povo. Na União Europeia um sistema mediático perverso
e desinformador esconde a realidade. Os regimes existentes nos 27
diferenciam-se muito. Mas existe um denominador comum: a ausência de uma
democracia autêntica. Neste início do século XXI, no
contexto de uma gravíssima crise mundial de civilização, o
capitalismo, em fase senil, cola o rótulo da democracia representativa a
ditaduras da burguesia de fachada democrática.
Vila Nova de Gaia, 23/Maio/2011.
O original encontra-se em
http://www.odiario.info/?p=2082
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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