Da globalização da luta à necessidade de um novo internacionalismo

por Miguel Urbano Rodrigues

A ênfase que, em diferentes Encontros internacionais, tenho posto na necessidade de globalizar a luta em múltiplas frentes como resposta à globalização capitalista imposta à humanidade por um sistema de poder monstruoso suscitou observações criticas de camaradas que muito estimo.

Um deles, definindo como utópica tal opção, identificou nela quase uma retomada de teses trotsquistas. Outro concluiu que eu estava a inverter prioridades e assumia, sem disso tomar consciência, uma posição que subalternizava as lutas nacionais e o papel dos partidos comunistas, privilegiando o espontaneismo movimentista.

Observações como essas, nascidas de uma leitura apressada de textos meus, levam-me a retomar o tema.

1- A globalização da luta que defendo tem por objectivo travar e derrotar o sistema de poder imperial e não a tomada de poder acompanhada da implantação do socialismo . Mobilizar forças contra a engrenagem que promoveu as guerras de agressão contra os povos do Iraque e do Afeganistão e ameaça outros é algo muito diferente de uma estratégia cuja meta seja a revolução socialista em escala mundial.

2- A mobilização das solidariedade para o combate à escalada imperialista pode e deve envolver forças e povos que condenam o genocídio iraquiano e os crimes cometidos pelos EUA em nome de uma suposta «cruzada contra o terrorismo». Mas é transparente que não haveria consenso possível nessa desejada frente se o objectivo fosse a destruição a curto prazo do capitalismo.

3- Em numerosos artigos e ensaios sempre critiquei como voluntarista e desconhecedora da correlação de forças a posição de Trotski sobre a inevitabilidade da revolução socialista em qualquer dos grandes países industrializados da Europa Ocidental . Após o brutal esmagamento do Espartaquismo na Alemanha de Weimar e a derrota do Exército Vermelho às portas de Varsóvia, tornou-se evidente que o capitalismo iria sobreviver ao choque provocado pela Revolução Russa, adaptando-se a uma situação histórica não prevista. Anos depois, o keynesianismo trouxe a receita para a sua reforma, confirmando o caracter utópico da tese central da «revolução permanente».

4- Terei sido um dos primeiros comunistas portugueses a chamar a atenção para os limites da contestação ao neoliberalismo globalizado pelos movimentos socais. Reconhecendo o significado e a importância do papel decisivo desempenhado por muitos desses movimentos na mobilização das massas contra a globalização imperialista a partir de Seattle, alertei repetidamente para
    a) O perigo de generalizações, pois o rumo dos acontecimentos impunha a necessidade de se estabelecer uma diferença clara entre movimentos empenhados em reformar e supostamente humanizar o capitalismo, e movimentos de vocação revolucionária. A presença de contra-revolucionários como Mário Soares no Fórum Social Mundial era por si só esclarecedora do esforço empreendido por defensores do capitalismo para neutralizar a grande vaga mundial de rejeição do projecto de sociedade que o sistema de poder imperial tentava impor.
    b) O papel imprescindível das organizações revolucionárias numa fase superior da luta contra a engrenagem imperialista hegemonizada por uma direita estadunidense de contornos neofascistas. Em trabalhos publicados pelo sitio http://resistir.info , por Rebelión e pelos jornais Avante! e El Siglo, este do Partido Comunista do Chile, combati o revisionismo revisionista do italiano Toni Negri e as posições movimentistas assumidas por Fausto Bertinotti da Rifondazione Comunista, chamei a atenção para o perigo de teses neoanarquistas na moda (difundidas nomeadamente pelo irlandês John Holloway no seu livro Mudar o Mundo sem Tomar o Poder) e comparei o espontaneismo ao movimento das marés. No combate político as acções espontâneas das massas caminham rapidamente para o esgotamento se não forem enquadradas num projecto ambicioso que assegure a sua continuidade. E aí — sublinhava — intervém o partido revolucionário. Sem organização revolucionaria, já o afirmava Lenine, não ha revolução que possa ir adiante.

Obviamente, o panorama nada animador oferecido hoje no mundo pela maioria dos partidos comunistas após a implosao da URSS contribui para uma confusão ideológica que é estimulada pela permanente campanha anticomunista de um sistema mediatico hegemonicamente controlado pelo imperialismo.

A infiltração nos movimentos sociais de personalidades anticomunistas é hoje transparente. Não menos preocupante é talvez a presença na direcção dos Fóruns Sociais e de Organizações criadas para o combate ao neoliberalismo globalizado de intelectuais progressistas prestigiados que tudo fazem para as transformar em simples tribunas de denuncias e debate de "alternativas", desvalorizando ou travando a dinamização do combate ao sistema imperial, e marginalizando os comunistas.

O PARTIDO REVOLUCIONÁRIO
E A INTERAÇÃO DO NACIONAL E DO INTERNACIONAL


Em Portugal como noutros países da União Europeia os colunistas da burguesia ocupam todo o espaço como produtores de opinião na imprensa escrita e na televisão. Para enganar, os media cultivam uma caricatura de pluralismo, apresentando como porta vozes da "esquerda" políticos e intelectuais do Partido Socialista. Na prática o discurso desses senhores não põe em causa o capitalismo, funcionando como uma contribuição indirecta para a defesa do sistema.

A demonizaçao da URSS tornou-se refrão na propaganda anticomunista. A máquina de desinformação montada pelas classes dominantes na América e na Europa desenvolve um trabalho intenso e perverso para persuadir as novas gerações de que tudo foi negativo na União Soviética e que o fracasso ali da construção de uma sociedade que surgisse como concretização do projecto leninista demonstrou a falência irremediável do socialismo.

Omite-se que a sociedade soviética nunca foi comunista e que, apesar de o chamado socialismo real ser uma grosseira distorção do socialismo concebido pela geração da Revolução de Outubro – o desaparecimento da URSS foi uma tragédia para a humanidade. As grandes conquistas dos trabalhadores não teriam sido possíveis no mundo capitalista sem o grande medo resultante da revolução russa. A descolonização ocorreu após a II Guerra Mundial porque a URSS existia. Sem a sua solidariedade actuante revoluções como a vietnamita, a cubana, a argelina não teriam podido sobreviver.

Foram a implosao da União Soviética e a transformação da Rússia num país capitalista terciarizado que escancaram as portas à estratégia de dominação universal dos EUA, assinalada por guerras de agressão inseparáveis do saque dos recursos naturais de povos do Terceiro Mundo.

Outra consequência nefasta do fim da URSS foi o vendaval que atingiu a maioria dos partidos comunistas pelo mundo afora. Na Europa Ocidental, onde as teses do eurocomunismo já tinham afectado muito partidos como o italiano, o francês e o espanhol , o tsunami soviético produziu efeitos devastadores. A unipolaridade gerou apatia ,semeou medo do futuro e facilitou à burguesia o trabalho de penetração ideológica.

A fronteira entre a esquerda e a direita tornou-se nevoenta com a adesão dos partidos sociais democratas ao neoliberalismo.

Muitos partidos comunistas perderam a perspectiva e envolveram-se em alianças inimagináveis anos atrás. A formação do chamado Partido da Esquerda Europeia expressa bem o desvio dos princípios e do objectivo final, tão enfatizado por Lenine e Rosa Luxemburgo. Pelos documentos até agora produzidos, tal partido, longe de ser um instrumento de luta contra as forças que se empenham em institucionalizar o capitalismo na União europeia tende a surgir como uma organização reformista, neutralizadora da combatividade dos trabalhadores.

Nesse cenário desolador os Partidos Comunistas Grego e Português emergem como excepções, afirmando a fidelidade aos princípios e assumindo-se como marxistas-leninistas.

Seria um erro subestimar as enormes obstáculos que os comunistas hoje enfrentam em todo o mundo.

Na luta contra o sistema de dominação imperial e contra a barbárie capitalista em defesa da humanidade, aos problemas inseparáveis da definição de estratégias e de prioridades soma-se a confusão provocada pela ofensiva ideológica do inimigo, com frequência mascarado de aliado.

É mais do que obvio, absolutamente inquestionável, que as lutas nucleares serão travadas nos países onde sob fachadas democráticas a realidade é o funcionamento de ditaduras da burguesia. A superestrutura institucional esconde a negação, na praxis, da democracia que proclama.

Fazer compreender isso extensivamente aos povos não é fácil. O quase total controle dos media pelos detentores do poder dificulta também muito o combate a comportamentos sociais deformados pela convicção de que os parlamentos são instrumentos de defesa e aprofundamento da democracia. Nasce daí uma perigosa mentalidade eleiçoeira. Não obstante a presença dos comunistas nas assembleias legislativas ser uma exigência da luta e tudo deva fazer-se para aumentar a sua representação, é perigosa a ideia de que a transformação gradual da sociedade é atingível por essa via.

Identifico na participação dos comunistas nos parlamentos burgueses um instrumento de combate e denúncia do sistema, mas não uma ponte para compromissos de qualquer espécie com o sistema. A ilusão de que por essa via, lentamente, é possível contribuir para que uma parcela, mesmo pequena, das nossas ideias se traduza em mudança social importante, conduz, na prática, a posições reformistas, incompatíveis com os princípios.

A expressão "cretinismo parlamentar", usada pelos clássicos do marxismo, não perdeu actualidade.

É a intensificação das lutas de massas – e cabe ao partido revolucionário um papel insubstituível na sua dinamização – que pode conferir significado de crescente importância à actividade dos comunistas no Parlamento, e não a inversa.

Como bem lembra Georges Labica, somente a democracia participativa é autentica e pode transformar radicalmente as estruturas de uma sociedade onde o povo luta contra a opressão capitalista.

Perante a dimensão da crise estrutural do sistema imperial hegemonizado pelos EUA, surge então a necessidade de uma interacção cada vez maior entre as lutas nacionais. Aparece-me como etapa imprescindível à internacionalização do combate ao inimigo comum a todos os povos. É nesse sentido que defendo a globalização da luta contra o imperialismo em defesa, repito, da humanidade. A articulação das lutas nacionais surgirá naturalmente como ponte para a internacionalização progressiva do confronto com o imperialismo.

Acredito que o partido revolucionário, com características próprias em cada sociedade, vai cumprir um papel decisivo, mesmo em países onde ainda não existe, moldado pelas exigências da luta ,tal como aconteceu com o partido bolchevique na Rússia do ano 17.

O imperialismo estadunidense, pólo do sistema que oprime a humanidade, vai perder as guerras em que se envolveu na Ásia. Os povos da América Latina levantam-se contra o neoliberalismo e rejeitam a ALCA.

O capitalismo não tem soluções para a crise em que se atola, agravada a cada mês pelo esgotamento do petróleo e pela destruição galopante dos recursos naturais não renováveis do planeta.

Cresce um pouco por todo o mundo a consciência da necessidade da solidariedade entre todos os oprimidos. Mas – volto a citar Georges Labica – "temos de criar condições para que essa solidariedade se desenvolva, rumo a um verdadeiro internacionalismo".

A vitória vai tardar e grandes sofrimentos esperam a humanidade na luta contra a barbárie. Mas está ao nosso alcance.

Rio de Janeiro, 01/Setembro/2005

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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