Elefantes brancos

por Uri Avnery [*]

. O rei do Sião sabia como tratar com opositores internos: presenteava-os com um elefante branco.

Os elefantes brancos são raros na natureza, portanto são sagrados. Como são sagrados não podem ser postos a trabalhar. Mas um elefante sagrado também come, e come bastante. O suficiente para transformar um homem rico num miserável.

Meu falecido amigo, general Matti Peled, outrora Intendente Geral do Exército, destacou a semelhança entre este elefante e muitas das prendas que recebemos do presidente dos Estados Unidos.

De acordo com os termos das doações, a maior parte deve ser gasta nos Estados Unidos. Vamos supor que Israel precise de tanques Merkava, fabricados em Israel. Ou sistemas anti-mísseis, também fabricados em Israel. Ao invés de adquirir isto em Israel, o exército israelense compra aviões americanos de que não precisa.

Um moderno avião militar é um objecto imensamente caro. É verdade que nós o obtemos em troco de nada. Mas tal como o elefante branco, o avião é de manutenção muito custosa. Precisa pilotos, cujo treino custa uma fortuna. Precisa campos de pouso. Todas estas despesas são muito maiores do que o preço do próprio avião.

Mas que exército pode recusar uma prenda tão maravilhosa?

UMA MANADA DE ELEFANTES BRANCOS

O Médio Oriente está agora a ser invadido por uma manada de elefantes brancos.

Esta semana soube-se que o presidente Bush está prestes a fornecer à Arábia Saudita enormes quantidades das mais avançadas armas. O preço afixado é de vinte mil milhões (20.000.000.000) de dólares.

Aparentemente, as armas são necessárias para fortalecer a Arábia Saudita contra o Grande Satã: o Irão. Aos olhos sauditas, este agora é o grande perigo.

Como é que isto aconteceu? Durante séculos o Iraque serviu como uma parede entre o Irão xiita da Pérsia e o árabe sunita do Médio Oriente. Quando o presidente Bush derrubou o regime sunita no Iraque, toda a região foi aberta ao poder xiita. No próprio Iraque foi instalado um governo xiita, e as milícias xiitas rondam à vontade. O Hisbullah xiita está a ganhar poder no Líbano, e o Irão está a estender o seu longo braço a todos os xiitas na região.

Alá, na sua infinita sabedoria, fez com que quase todas as enormes reservas de petróleo do Médio Oriente ficassem localizadas em áreas xiitas: no Irão, no sul do Iraque e nas áreas xiitas da Arábia Saudita e nos principados do Golfo Pérsico. Se estas reservas fugirem do controle estado-unidense, isto provocará uma mudança drástica no equilíbrio de poder, não só na região como no mundo todo.

Portanto, o fortalecimento da Arábia Saudita – dirigida por sunitas conservadores – faz um bocado de sentido do ponto de vista americano. Contudo, o comércio de armas é bastante irrelevante nisto.

Os sauditas não precisam de armas. Eles têm um instrumento que é muito mais efectivo do que qualquer quantidade de aviões e tanques: uma inexaurível oferta de dólares. Eles utilizam-nos para financiar amigos, comprar influência e subornar líderes.

Por outro lado, a Arábia Saudita é incapaz de manter as armas que estão a inundá-los. Não tem pilotos suficientes para os aviões que está a comprar, nem tripulações para os tanques. O novo armamento acumulará areia no deserto, tal como as armas caras compradas no passado.

Assim, que sentido tem comprar mais armas no valor de vinte mil milhões?

Bem, os sauditas estão a vender petróleo aos americanos em troca de dólares. Um bocado de petróleo, um bocado de dólares. Os Estados Unidos, com um enorme fosso na sua balança comercial, não se podem permitir perder estes milhares de milhões. Assim, a fim de tornar possível aos EUA arcarem com este fardo, os sauditas devem devolver pelo menos uma parte do dinheiro. Como? Muito simples: eles compram aos americanos armas de que não precisam.

Isto é um carrossel que beneficia a todos. Especialmente aos príncipes sauditas. A Arábia Saudita é abençoada com uma grande abundância deles — cerca de 9000 (nove mil) príncipes, todos pertencentes à Casa de Saud. Um príncipe tem um bocado de esposas, cada esposa tem um bocado de descendentes. Alguns deles são negociantes de armas, os quais automaticamente recebem gordas comissões dos milhares de milhões de armas. (É fácil concluir isto: meros um por cento de vinte mil mihões montam a 200 milhões — e eles ririam de comissões só de um por cento).

Os príncipes, portanto, têm direitos adquiridos neste arranjo conveniente.

É aqui que Israel entra no quadro.

Todo o negócio de armas feito pela Casa Branca precisa da anuência do Congresso. No Congresso, os "amigos de Israel" – os lobbies judeus e evangélicos – reinam supremos. Qualquer senador ou deputado pode esquecer a reeleição se ofenderem um destes lobbies.

Quando Israel levanta a sua voz contra um negócio de armas com a Arábia Saudita, a Casa Branca tem um problema. Ainda mais porque há uma certa lógica na objecção israelense: a base aérea saudita em Tabuk está a apenas uns poucos minutos de voo do porto israelense de Eilat.

O que fazer? É fácil: dar-nos uma prenda de armas, a fim de manter "o equilíbrio de poder" e a nossa "superioridade qualitativa sobre todos os exércitos árabes combinados".

Assim, juntamente com o negócio dos vinte mil milhões com os sauditas, o presidente Bush decretou que a doação anual americana da assistência militar a Israel deveria ser elevada de 2,4 mil milhões para 3,0 mil milhões. Isto significa que nos próximos dez anos Israel receberá armas no valor de 30 mil milhões de dólares.

Com excepção da pequena parte da doação em que é permitido a Israel gastar alhures, esta enorme soma deve ser gasta nos Estados Unidos. Do ponto de vista económico, a prenda a Israel é realmente um enorme incentivo à indústria de armas americana. Enriquecerá os produtores de armas, que são tão queridos para o coração de Bush. Também mostrará ao público americano como o seu sábio presidente cria um bocado de lindos novos postos de trabalho para eles.

Mas isto, naturalmente, não é o fim da estória.

Seria inaceitável "fortalecer" os dominadores da Arábia Saudita de um modo tão impressionante sem dar alguma coisa aos outros reinos, presidentes e emires que cooperam com os americanos: o Egipto, a Jordânia e os emires do Golfo também esperam a sua fatia.

Os novos negócios de armas, portanto, montarão a quarenta, cinquenta e Deus sabe quanto mais milhares de milhões de dólares.

Isto não é mau para os produtores de armas, que ajudaram Bush a ser eleito e continuam a apoiá-lo. Nem é mau para os mercadores de armas, o príncipes e todos os outros que lucram com isso, os regimes corruptos que governam o Médio Oriente (e, pelo menos quanto a isso, Israel teve êxito em tornar-se uma parte integral da região).

Tudo isto poderia ser divertido, não fosse o lado escuro destes negócios circulares.

Quando eu era criança, foi-me ensinado que um dos mais desprezíveis tipos humanos é o mercador de armas. Ele é muito diferente de todas as outras espécies de comerciantes porque a sua mercadoria é a morte. Suas riquezas estão ensopadas em sangue. O título "mercador de armas" era, naquele tempo, um insulto brutal, um dos piores. Ninguém se apresentaria a si próprio como tal, assim como não admitiria ser um assassino a soldo.

Os tempos mudaram. O traficante de armas agora é uma pessoa respeitável. Pode ser uma celebridade, objecto de adulação para a imprensa ordinária, amigo de políticos, um generoso anfitrião de membros do governo.

As armas têm a sua própria vida. Elas tentam realizar o seu potencial. Sua missão é matar. Um general cujos arsenais estão repletos tende a fantasiar acerca da "guerra deste Verão" ou a "guerra deste Inverno".

A capacidade de matar das armas está a ficar cada vez "melhor", e os seus produtores precisam de terrenos de teste. Há poucos dias, um dos nossos generais revelou na televisão que, de acordo com o acordo israelense-americano, o exército de Israel é obrigado a relatar ao establishment militar americano a efectividade de todas as espécies de armas. Por exemplo: a precisão das bombas "inteligentes" e o desempenho de aviões, mísseis, drones [1] , tanques e todos os outros instrumentos de destruição nas nossas guerras.

Todo o "alvo morto" em Gaza ou o uso de bombas de fragmentação no Líbano serve como teste. O arrasamento de um bairro em Beirute, a morte de mulheres e crianças como "dano colateral", a amputação de membros por bombas de fragmentação no Sul do Líbano – tudo isto são factos estatísticos que são importantes para os fabricantes americanos conhecerem, de modo a que possam melhorar a sua mercadoria.

Um negócio é um negócio, e mercadorias são mercadorias.

Na mesma semana em que estes enormes negócios de armas foram anunciados, Ehud Olmert falou acerca de um diálogo (não limitado no tempo) acerca dos princípios (não obrigatórios) para uma acordo final de status. Condolezza estava mais uma vez a varejar em torno das capitais da região, a sorrir e conversar, abraçar e palrar.

A Arábia Saudita está a dar indicações de que talvez possa estar pronta para sentar com Israel à mesa de uma "reunião de paz" que poderia ocorrer no Outono. Isto também é destinado a tornar mais fácil para o Congresso (quer dizer: para o lobby pro-israelense) confirmar o negócio das armas.

O pessoal de Bush anunciou pela milésima vez que uma "janela de oportunidade" agora está aberta. (Não um "portão de oportunidade", nem uma "porta de oportunidade" e sim uma janela. Como se janelas fossem para atravessar ao invés de serem para olhar através delas).

Toda esta actividade, de certo modo, recorda-me uma outra estória acerca do elefante branco.

Um multimilionário americano havia-se fixado na ideia de adquirir um elefante branco, a fim de impressionar os seus colegas. Mas é rigorosamente proibido exportar elefantes brancos da Tailândia, porque eles são raros.

Um operador esperto prometeu-lhe obter um elefante branco, e disse-lhe mesmo como faria para isso: pintaria o elefante de cinza antes de contrabandeá-lo.

E na verdade, no prazo prometido chegou uma gaiola, e dali saiu um elefante cinzento. Quando a tinta cinza foi lavada, revelou-se um elefante branco. Mas com um bocado mais de lavagem, a tinta branca também foi descascada e, por baixo, o elefante era cinzento.

04/Agosto/2007

[1] Pequeno avião não tripulado, manobrado por controle remoto.

[*] Escritor israelense.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
11/Ago/07