México: Os projectos e os desafios da esquerda
Pela primeira vez na História recente, e depois de trinta anos de
neoliberalismo, a esquerda
[NR]
chegou ao poder em 1 de Dezembro de 2018, depois de
vencer as eleições presidenciais em Julho passado com 53% dos
votos. O movimento político criado por Andrés Manuel López
Obrador (AMLO), chamado MORENA (Movimiento de Regeneración Nacional),
obteve uma vitória esmagadora, não só com a
eleição presidencial, mas também com a maioria absoluta em
ambas as câmaras, e com a vitória de cinco governadores, da qual (a
vitória) mais importante é a da Cidade do México, ganha
por uma mulher, Claudia Scheimbaum. Num país assolado pela
violência e com metade da população a viver abaixo da linha
da pobreza, com desigualdades insustentáveis, corrupção
endémica e uma impunidade, que faz com que mais de 90% dos delitos
não sejam assinalados, devido à falta de confiança nas
instituições judiciais, a chegada da esquerda neste país,
está repleta de esperança e de imensas expectativas. AMLO, como
os mexicanos costumam chamar a este lutador de longa data (é
necessário recordar que esta é a terceira vez que ele concorre
às eleições, incluindo a de 2006, que foi muito contestada
por suspeitas de fraude) elaborou durante anos, um programa governamental
detalhado, designado como "a 4ª transformação" do
país. No entanto, será confrontado com enormes desafios e com
fortes pressões internas e externas.
Os grandes projectos
AMLO grande conhecedor da História do seu país
inscreveu "a quarta transformação" na longa
história da vida política do México. Trata-se, acima de
tudo, de um projecto de fundar novamente a política do Estado mexicano
através do saneamento e da reconstrução do tecido
institucional
[1]
. Uma grande reforma da constituição actual
está prevista com a proposta de novas leis e instituições
para combater a corrupção e melhorar o sistema de justiça.
Por exemplo, incriminar como delitos graves os casos de
corrupção, criar uma nova guarda nacional, redigir uma
"constituição moral", perdoar e amnistiar aqueles que
cometeram crimes de fraude e corrupção no passado; libertar as
pessoas que cometeram delitos menores e despenalizar certas drogas.
"A quarta transformação" é, igualmente, um
projecto de modernização económica do país, com
propostas de grandes obras de infraestrutura e transporte, tais como o
desenvolvimento dos transportes ferroviários, especialmente no sudeste
do país (a região mais atrasada), a criação de
refinarias e um forte impulso à agricultura.
Mas é, também, um projecto de solidariedade social e de ajuda aos
mais pobres: espera-se um forte apoio, principalmente, aos jovens e aos idosos
através de vários programas de bolsas de estudo e pensões
sociais, bem como a criação de universidades (uma centena!) e
hospitais. Por outro lado, AMLO pretende reduzir significativamente as
desigualdades: já reduziu para metade, o salário do presidente e
já foi aprovada uma lei que proibe qualquer funcionário
público de ganhar mais do que o presidente. É preciso saber que,
no México, o país campeão das desigualdades, alguns
juízes do Supremo Tribunal de Justiça ganham cerca de 25 mil
euros por mês... Os deputados de Morena estão a estudar uma a
proposta de lei para aumentar, de maneira radical, o salário
mínimo para que fique acima do limiar de pobreza actual. É
necessário saber que o salário mínimo perdeu mais de 70%
do seu valor real desde a década de 1970 e que ele representa 20% do
salário médio, ou seja, em termos relativos, essa
relação é a menor, não apenas nos países da
OCDE, mas também nos países da América Latina.
Uma das principais propostas "da quarta transformação"
diz respeito à maneira de governar com o objectivo de estabelecer uma
"democracia participativa". Deseja usar as modalidades de
"referendo" e de "consultas populares" para os assuntos
mais importantes e já realizou duas consultas públicas (uma sobre
o cancelamento do projecto do novo aeroporto na Cidade do México,
voltaremos a este assunto); e a segunda modalidade com 10 perguntas à
população sobre propostas governamentais, incluindo um projecto
de um comboio no sudeste do país; a modernização
portuária; a reflorestação de parte do país; a
construção de uma refinaria; a duplicação das
pensões sociais para os idosos; a criação de um sistema de
bolsas de estudo para milhões de jovens; um sistema de saúde
gratuito para todos; bem como o acesso gratuito à internet em todo o
país. Não é de surpreender que o resultado dessa consulta
tenha dado origem a mais de 90% de respostas positivas. Os seus apoiantes
vêem nessa prática uma revolução na maneira de
governar para avançar em direcção a uma "verdadeira
democracia participativa"; os seus adversários pensam que é
uma política populista e denunciam uma "prática
demagógica".
Os desafios e as pressões
O presidente eleito tomará posse no sábado, 1 de Dezembro de 2018
(depois de cinco longos meses de espera), no entanto, ele tem estado tão
activo que os comentadores consideram que o seu discurso, nesse dia,
será a sua primeira avaliação de governo! Com efeito,
vários assuntos foram abordados e discutidos, o mais controverso foi,
provavelmente, o cancelamento do projecto do novo aeroporto da Cidade do
México (NAICM), projecto que ele já havia criticado enquanto era
candidato. A construção do novo aeroporto era um exemplo perfeito
de absurdo ecológico e económico, beneficiando apenas um pequeno
grupo de empresários da oligarquia, em detrimento da grande maioria dos
mexicanos. Representantes das comunidades afectadas, geólogos e outros
cientistas, bem como activistas ambientais, denunciaram a
construção do NAICM e sublinharam que este projecto estava a
provocar um ecocídio de dimensões extraordinárias.
Andrés Manuel López Obrador decidiu realizar um referendo
nacional, apesar das imensas críticas dos jornalistas próximos do
poder e das organizações patronais. O "Não"
ganhou, maioritariamente, essa consulta pública, o que não foi
surpresa para ninguém, dado o nível de confronto social que o
projecto gerou. Portanto, ele decidiu cancelar o projecto. No mesmo dia, o peso
perdeu o seu valor, as agências de rating internacionais baixaram a
categoria do país e foi observada uma fuga de capital. Seguiu-se uma
avalanche de críticas da parte dos jornalistas e intelectuais
próximos ao regime em funções, apelidando-o de
retrógrado e até de "ditador".
AMLO está consciente de que o seu programa vai contra o estatuto
económico e financeiro e também conhece muito bem, o poder
económico dos seus adversários. O caso do aeroporto é o
mais falado, mas já houve outras cenas de conflito com a burguesia
financeira nacional e internacional. Por exemplo, um projecto de lei
lançado pelo seu partido já está a ser discutido no
Congresso, para regulamentar os serviços dos bancos para os clientes -
é bem sabido que, no México, os mesmos serviços
bancários são muito mais caros do que os oferecidos pelas mesmas
filiais dos bancos, em Espanha, para dar um exemplo. No mesmo dia, logo
após essa notícia, observou-se outra desvalorização
do peso.
No entanto, não podemos esquecer que ele convenceu uma grande parte da
comunidade empresarial a apoiá-lo no seu projecto, não apenas
pequenos e médios empresários, mas também alguns
líderes de grandes empresas como Alfonso Romo, empresário
multimilionário no norte do país (Monterrey), que possui uma
empresa 'holding' nos sectores das finanças, seguros e biotecnologia e,
agora, é um conselheiro pessoal. Por esta razão, recusa-se
criticar certos elementos do modelo económico neoliberal. Por exemplo,
disse repetidamente, que nenhuma mudança seria feita no sistema
tributário, que é amplamente favorável ao grande capital;
continua a dizer que o equilíbrio das contas públicas é
uma meta do governo e que nem o défice nem a dívida
aumentarão no decurso do seu governo. Resta saber se essas
declarações são mais uma estratégia para chegar e
consolidar-se no poder com o apoio da classe média superior e
conservadora, ou se está convencido de que os recursos económicos
libertados pela luta contra a corrupção, bem como "a
austeridade dentro do governo", serão suficientes para
lançar este grande projecto nacional sem tocar em algumas
fundações do modelo neoliberal. No entanto, é
difícil acreditar que esta grande transformação do
país, e especialmente a redução estrutural da
desigualdade, seria possível sem mudar a estrutura da
arrecadação de impostos - as receitas fiscais em percentagem do
PIB estão agora entre as mais baixas da América Latina: 17%
contra 32% no Brasil.
Outro grande desafio é o relacionamento com os Estados Unidos: de facto,
AMLO enfrenta uma nova configuração política desde a
chegada de Donald Trump, que pretende continuar a renegociação do
Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA ing./ALENA
fr.). É quase certo que, independentemente do poder de
negociação dos países, a tendência será em
direcção a mais protecionismo. Parte da classe empresarial que se
beneficiou enormemente com o NAFTA (agora conhecido como T-MEC) será,
certamente, afectada (incluindo as indústrias de alta tecnologia, como a
indústria automóvel, a aeroespacial e a electrónica). Mas
como o desenvolvimento proposto por AMLO é um desenvolvimento baseado no
aumento do padrão de vida da população e numa
distribuição da riqueza mais equitativa, na autosuficiência
alimentar, no aumento significativo dos salários, este desenvolvimento
é consequentemente baseado na expansão do mercado interno. A
renegociação do acordo de livre comércio pode, portanto,
ser vista como uma oportunidade para essa mudança de estratégia
do modelo neoliberal baseado no crescimento do sector da
exportação para um modelo baseado no crescimento do mercado
interno; seria também uma oportunidade de alargar as
relações com seus vizinhos do sul e com outros parceiros
comerciais.
O segundo índice delicado nas relações com o seu vizinho
do norte, é a gestão da crise migratória. De facto,
milhares de pessoas da América Central decidiram juntar-se e caminhar em
direcção aos Estados Unidos, através do México.
"A caravana migrante" é composta por homens, mulheres e
crianças que fogem à miséria e à violência
nos seus países e procuram chegar aos Estados Unidos. Trump já
enviou tropas para a fronteira e ameaçou o governo mexicano para parar a
caravana
ou fechar a fronteira. AMLO disse que os migrantes poderiam ficar no
México e que encontrariam trabalho. É preciso dizer que o
número de migrantes (cerca de dez mil) representa apenas uma pequena
percentagem da população mexicana e, portanto, é verdade
que os migrantes poderiam ser albergados no país. No entanto, uma parte
significativa dessas pessoas não quer ficar no México por
razões diferentes (os seus familiares já estão nos Estados
Unidos, ou por desconfiarem do governo mexicano, etc). Por outro lado, um
sector da sociedade mexicana manifesta a sua preocupação e
descontentamento (chegando mesmo a posições radicais, racistas e
xenófobas contra os migrantes) sobre a proposta de AMLO, dados os graves
problemas de pobreza e de emprego, no país.
Além do mais, não devemos esquecer que 53% das pessoas votaram em
AMLO e esperam uma verdadeira mudança de curso e seria arriscado
decepcioná-las. A pressão social interna é muito forte: de
uma parte, vindo dos mais pobres -Os povos indígenas, por exemplo, que
estão cada vez mais conscientes dos seus direitos, cada vez mais bem
organizados e que travam uma batalha constante contra o governo vigente
até 1 de Dezembro (e portanto, contra o modelo neoliberal) pela
preservação do seu habitat, pelos seus costumes e pelo acesso a
uma vida melhor; por outro lado, podemos falar sobre questões que
atravessam toda a sociedade, uma sociedade que está cansada da
violência, da insegurança económica e social, da
corrupção e da impunidade, e que aguarda de AMLO, uma resposta
concreta e soluções reais e a curto prazo. Com efeito, houve mais
de 200 mil mortes violentas e 30 mil pessoas desaparecidas, na última
década. O caso paradigmático é provavelmente o de 43
alunos desaparecidos, em 2014, no estado de Guerrero (com forte suspeita de
assassinato e envolvimento conjunto do governo local, polícia,
forças armadas e de um monopólio de droga). Mas, infelizmente,
não é um caso isolado, é um exemplo entre milhares de
outros: femicídios, assassinatos de jornalistas e activistas sociais,
etc., que representam a prova da decomposição política,
institucional e social do país.
Uma fragilidade grave
Andrés Manuel López Obrador representa, hoje, uma grande
esperança, especialmente, em duas frentes: a nível nacional,
mostrou, ao chegar ao poder pela via democrática, que as grandes
mudanças políticas podem ser construídas de maneira
não violenta. Por outro lado, na América Latina, uma perspectiva
optimista foi aberta em 1 de Julho e o México é visto como um
refúgio de ideias progressistas neste continente que mudou a cor
política, numa década, com os governos reaccionários e da
direita na Argentina, no Chile e no Brasil, para não citar senão
as principais economias. Mas os desafios e pressões que AMLO enfrenta
são imensos. Não nos esqueçamos das palavras de Maquiavel:
"Não há empreendimento mais difícil, mais duvidoso ou
mais perigoso do que o de querer introduzir novas leis".
As lições do caso brasileiro, que passou no espaço
de uma década, da esquerda progressista nos anos 2000, para um governo
de extrema-direita, devem alertar o novo governo mexicano e dar-lhe algumas
pistas de reflexão sobre essa fragilidade.
Conhecedor da
"realpolitik",
AMLO sabe muito bem que os seus inimigos desconfiam enormemente do seu novo
governo e que eles têm um poder económico não
desprezível, e tenta aliviar as tensões fazendo concessões
como a criação de um Conselho de Empreendedores que o ajudariam a
tomar decisões (comissão formada por uma parte da oligarquia); ou
adiando decisões difíceis "por um período de
três anos" como a proposta de mudança no sistema
tributário ou a mudança nos objectivos do banco central (para
incluir o pleno emprego e o crescimento e não, apenas, a estabilidade
dos preços). Consciente da necessidade de uma aliança
estratégica com os militares, reuniu todas as forças armadas e
fez um discurso memorável para convidá-los a participar deste
grande projecto de transformação nacional. É claro que
este tipo de decisões é amplamente criticado por alguns
intelectuais e jornalistas de esquerda e até mesmo por
organizações internacionais de direitos humanos (Amnistia
Internacional) que alertaram em particular sobre o fracasso das
políticas destinadas a outorgar mais poder aos militares para liderar a
luta contra o tráfico de estupefacientes (no México e noutros
países).
Andrés Manuel López Obrador, no entanto, deixou perceber muito
claramente aos poderes reais que, hoje, ele é o Presidente: no dia da
declaração do cancelamento do projecto do aeroporto, ele afirmou
que não era "um jarrão decorativo", e mestre na
manipulação de símbolos, podia-se ver sobre a sua
secretária um livro cujo título era:
Quem comanda aqui?
01/Dezembro/2018
[NR]
Seria mais rigoroso dizer "social-democracia" ao invés da caracterização
genérica de "esquerda" utilizada pela autora.
[1]
As primeiras transformações referem-se aos três
principais movimentos da História do México: o movimento de
independência do país, entre 1810 e 1821, o movimento de
"Reforma" em meados do século XIX, liderado por Benito
Juárez, quando aconteceu a separação entre a Igreja e o
Estado e, finalmente, o movimento de Revolução, no início
do século XX, que extinguiu a ditadura de Porfirio Díaz.
[*]
Economista, investigadora associada ao LADYSS-Université Paris Diderot,
Paris 7.
Ver também:
Ninguna ilusión en el gobierno burgués de Obrador, luchemos para cambiar la sociedad y construir el nuevo mundo de los trabajadores
.
O original encontra-se em
www.les-crises.fr/...
. Tradução de Luisa Vasconcellos.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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