Em busca de uma ordem económica mundial multipolar (1)
por Michael Hudson
entrevistado por Pepe Escobar
O texto aqui apresentado baseia-se numa entrevista que Michael Hudson deu a
Pepe Escobar, sendo moderadora Alanna Hartzok co-foundadora de Earth Rights
Institute e administradora do International Union for Land Value Taxation. O
evento decorreu na Henry George School, com a sua diretora pedagógica
Ibrahima Drame, sob o tema "Na busca de uma ordem mundial multipolar".
Devido à extensão da entrevista (1h50) foram seleccionados apenas
excertos considerados mais relevantes. A importância desta
entrevista
é resumida na sua frase final: "Você nunca lerá
algo assim no
Washington Post
ou em
The New York Times.
Eles nem sabem o que é a Organização de
Cooperação de Xangai". Claro, nem tão pouco em
qualquer dos media corporativos na Europa.
O texto completo da entrevista está
aqui
.
MH (00:04:00) - Os Estados Unidos abandonaram o padrão ouro em 1971,
quando a isso os forçou a guerra do Vietname responsável
pelo seu défice da balança de pagamentos. Todos naquela
época temiam que o dólar fosse cair, que houvesse
hiperinflação. O que aconteceu foi algo totalmente diferente.
Como não havia ouro para liquidar os défices da balança de
pagamentos dos EUA, convenceram os seus aliados a investir em Títulos do
Tesouro dos EUA, porque bancos centrais não compram empresas. Não
compram matérias-primas. Tudo o que podem comprar são outros
Títulos de governo. Então, de repente, a única coisa que
podiam comprar com todos os dólares que possuíssem eram
Títulos do Tesouro dos Estados Unidos. Os títulos que compraram
destinaram-se essencialmente a financiar ainda mais a guerra, o défice
da balança de pagamentos e as 800 bases militares que os Estados Unidos
têm por todo o mundo.
Acho que o mundo mudou tanto nos últimos 50 anos que o que temos agora
não é tanto um conflito entre a América e a China, ou a
América e a Rússia, mas entre uma economia financeirizada,
dirigida por planeadores financeiros que controlam a disponibilidade de
recursos, despesas do governo e criação de dinheiro, e uma
economia dirigida por governos democráticos, ou menos
democráticos, mas certamente uma economia mista.
LIBERDADE SÓ PARA A WALL STREET
Na América existe algo totalmente diferente desde 1980. Algo que
não foi previsto por ninguém, porque parecia ser muito
perturbador, ou seja, o sector financeiro a dizer: "Precisamos de
liberdade para nós mesmos, em relação ao
governo". Por "liberdade" eles queriam dizer retirar o
planeamento, os subsídios, as políticas económicas e
tributárias das mãos do governo e colocá-las nas
mãos da Wall Street. O resultado foi um libertarianismo como
"mercado livre", na forma de uma economia centralizada que se
concentra nas mãos dos centros financeiros Wall Street, a City de
Londres, a Bolsa de Paris. O que existe hoje é uma tentativa de o sector
financeiro assumir o papel que a classe senhorial teve na Europa, desde os
tempos feudais até o século XIX. É uma espécie de
ressurgimento do feudalismo.
Se se olhar para os últimos 200 anos de teoria económica, de Adam
Smith e Marx em diante, todos esperavam que uma economia mista se tornasse cada
vez mais produtiva e se libertasse dos latifundiários e
também da actividade bancária.
Mas nos Estados Unidos e na Inglaterra, as finanças tornaram-se algo
completamente diferente. Os bancos não emprestam dinheiro para construir
fábricas. Eles não criam dinheiro para fazer meios de
produção. Eles obtêm dinheiro para assumir os ativos
existentes. Nos EUA cerca de 80% dos empréstimos bancários
são empréstimos hipotecários para transferência de
propriedade de bens imóveis.
Tal como os proprietários de terras no passado, que tentavam fazer tudo
o que podiam através da Câmara dos Lordes na Inglaterra e das
câmaras altas na Europa, eles tentam bloquear qualquer tipo de governo
democrático. A luta é na realidade contra qualquer governo que
faça algo que não seja controlado pelos 1% e pelos bancos.
Essencialmente, trata-se da fusão entre Finanças, Seguros e
Imobiliário o sector FIRE. O que temos é um retrocesso do
capitalismo no Ocidente de volta ao feudalismo, mas feudalismo com uma
expressão financeira, muito mais do que nos tempos medievais.
A luta contra a China é pelo medo de não poderem fazer à
China o que fizerem à Rússia. A América adoraria que
houvesse uma figura como Yeltsin na China para dizer: vamos dar todas as
ferrovias que construímos, a ferrovia de alta velocidade, vamos dar
todas as fábricas a indivíduos e deixá-los administrar
tudo. Então, os americanos vão emprestar-lhes o dinheiro ou
comprá-los e, assim, controlá-los financeiramente. A China
não está a deixar isso acontecer. E a Rússia impediu que
isso acontecesse. A fúria no Ocidente é que o sistema financeiro
americano não é capaz de assumir controlo sobre mais recursos
estrangeiros e agricultura estrangeira. Restam apenas meios militares para se
apoderarem desses recursos, como vimos no Próximo Oriente e agora se
vê na Ucrânia.
MH (00:12:47)
Não vejo como possível nenhuma repetição de uma
nova Bretton Woods porque, como descrevi em
Super Imperialism,
a conferência de Bretton Woods foi concebida para tornar total o
controlo americano sobre a Grã-Bretanha, sobre a Europa. Bretton Woods
era um sistema centrado nos Estados Unidos destinado impedir a Inglaterra de
manter o seu império. Também evitaria que a França
mantivesse seu império e que a América assumisse o controle da
área da libra esterlina. O Banco Mundial deveria impedir que outros
países se tornassem independentes e auto-suficientes do ponto de vista
alimentar, para garantir que apoiassem a agricultura intensiva e não uma
reforma agrária. A luta do Banco Mundial foi impedir a reforma
agrária e assegurar que os Estados Unidos e outros investidores
estrangeiros dominassem a agricultura desses países.
Esse tipo de Bretton Woods não pode ser feito novamente. Já que
Bretton Woods foi uma ideia para centralizar o superávite
económico mundial num único país, os Estados Unidos, isso
nunca mais poderá ser feito.
Quando a América emite dólares, e estes acabam nos bancos
centrais, o que podem esses bancos fazer com eles? Tudo o que realmente podem
fazer é devolvê-los ao governo dos Estados Unidos. Portanto, a
América tem um almoço financeiro grátis. Pode gastar com
as suas forças armadas ou aumentar aquisições de empresas
noutros países. Os dólares foram embora, mas os países
estrangeiros não podem trocá-los por ouro. Eles não
têm nada para trocá-los. Tudo o que eles podem fazer é
financiar o défice orçamental dos EUA comprando cada vez mais
Títulos do Tesouro. Estes são os passivos do balanço de
bases militares estrangeiras e operações relacionadas.
O que é irónico é o que aconteceu nos últimos anos
na luta contra a Rússia e a China. Os próprios EUA acabaram com
os seus almoços grátis. Diziam, ok, agora teremos
sanções contra a Rússia e a China. Vamos ficar todo o
dinheiro que tiverem em bancos estrangeiros, como ficámos com o dinheiro
da Venezuela.
Então a Rússia e a China verificaram que não podem mais
lidar com dólares, porque os Estados Unidos recusam unilateralmente o
seu uso a qualquer país que não siga a sua diplomacia militar e
financeira. E agora a Rússia e a China estão a desdolarizar-se.
Negociam nas moedas próprias. Eles fazem o oposto do que Bretton Woods
tentou criar. Eles estão a sugerir
(a outros países)
a independência monetária em relação aos Estados
Unidos.
O que está em causa é que tipo de economia precisamos para elevar
padrões de vida, salários e auto-suficiência e preservar o
meio ambiente. O que é necessário para o mundo ideal que
desejamos? Bem, para começar, é necessária muita
infraestrutura. Na América e na Grã-Bretanha, a infraestrutura
foi privatizada. Tem que dar lucro. E ferrovias ou concessionárias de
energia eléctrica,
como se acabou de ver no Texas
, são monopólios naturais. Durante 5 000 anos, as infraestruturas
na Europa, Médio Oriente e Ásia foram mantidas no domínio
público. Se são dadas a proprietários privados, eles
vão cobrar uma renda de monopólio.
A ideia da China é proporcionar um sistema educacional gratuito e
permitir que todos procurem ter uma educação. Na América,
para obter educação, é necessário contrair
dívidas entre 50 000 a 200 000 dólares. A maior parte de tudo o
que vier a ganhar será pago ao credor. Mas na China, pode-se ter
educação gratuita, o dinheiro que os alunos irão ganhar
será gasto na economia, comprando os bens e serviços que eles
produzem. Então a economia estará a expandir-se, não a
encolher, não sendo sugada pelos bancos que financiam a
educação. A mesma forma de evitar a procura de rendas por
privatizações, pela finança ou por monopólios, se
aplica às ferrovias e aos cuidados de saúde.
O capitalismo industrial estava a evoluir em direcção ao
socialismo. Era a medicina socializada, infraestruturas socializadas,
educação socializada. Portanto, a luta contra o socialismo
é também uma luta contra o que tornou o capitalismo industrial
bem-sucedido nos Estados Unidos e na Alemanha.
Os Estados Unidos acusam de serem comunistas ou socialistas, os países
que tentam tornar a sua força de trabalho próspera, educada e
saudável, em vez de doente e com expectativas de vida mais curtas. O que
significa ser independente da economia de austeridade do "Mundo
Livre" financeirizado dos EUA.
MH ( 00:25:51) A Europa tinha uma escolha: ou poderia encolher e ser uma
economia satélite dos EUA ou poderia juntar-se ao crescimento. A Europa
decidiu renunciar ao crescimento e tornar-se um conjunto de oligarquias e
cleptocracias clientes. Está disposta a permitir que o seu sector
financeiro assuma o controlo de cada país, tal como nos EUA.
Trata-se de um "mercado livre", as autoridades americanas contaram-me
que podem simplesmente comprar os políticos europeus pois eles
são subornáveis. Estar pronto para a venda é o que
significa um mercado político livre. É por isso que quando o
presidente Putin diz que a América e a Europa não são
susceptíveis de realizar acordos, isso significa que eles estão
na política apenas pelo dinheiro. Não há ideologia.
Não há ideia de benefício social geral. O sistema é
baseado em como ficar rico, e pode-se ficar rico sendo subornado. Por isso
entram na política. Como nos EUA em que por decisão do Supremo
Tribunal, os políticos podem ser pessoalmente financiados.
Então, temos dois sistemas incompatíveis. Eles estão em
trajectórias diferentes. Há um sistema que está a encolher
como no Ocidente e outro que está a crescer como no Oriente. Há
uma força militar destrutiva no Ocidente e, basicamente, uma
força de crescimento económico produtivo na Eurásia. O
confronto agora está a ocorrer principalmente na Ucrânia. Com os
EUA a apoiarem os neonazis.
MH (00:30:41) ? Putin continua a lembrar aos russos o acontecido aos 22
milhões que morreram na Segunda Guerra Mundial. Ele disse que a
Rússia não deixaria isso acontecer novamente.
Assim, quando a crise passar, pode recomeçar-se de uma
posição normal. Mas não há
normalização na América. Estará numa
posição, ainda mais recuada financeiramente do que antes da
crise. As economias como a da China e da Rússia não têm
problemas com os défices. Portanto, o Ocidente estará a
começar com 99% de sua população ainda mais endividada com
os 1%. Essa polarização entre 1% e 99% não existe na
China. E na Rússia, Putin está a tentar minimizá-la, dado
o legado da cleptocracia que os neoliberais lá colocaram.
Pepe Escobar (00:36:27) questiona MH sobre o papel do super Mario
"Goldman-Sachs" Draghi, agora primeiro ministro da Itália,
afirmando que há mais ou menos um consenso entre analistas italianos
independentes e bem informados de que Draghi pode ser o cavalo de Tróia
perfeito para acelerar a destruição do Estado italiano. Isto
irá acelerar o projecto globalista da União Europeia, que
é absolutamente não centrado no Estado. Isso também faz
parte da "grande reinicialização".
MH (00:38:55) - Bem, a Itália é um exemplo muito bom para se
olhar. Quando se tem um país que precisa de infraestruturas e gastos
públicos social-democratas, é preciso um governo para criar o
crédito. Mas quando os americanos e especificamente os lobistas
do mercado livre da Universidade de Chicago criaram o sistema financeiro
da zona do euro, a sua premissa era que os governos não deveriam criar
dinheiro. Apenas os bancos deveriam ter permissão para fazer isso, para
benefício dos detentores das suas acções e títulos.
Portanto, nenhum governo europeu pode ter um défice orçamental
suficientemente grande para lidar com o coronavírus ou com os problemas
que assolam a Itália há uma década. Eles não podem
criar o seu dinheiro para promover empregos, revitalizar as infraestruturas ou
a economia.
O Banco Central Europeu só empresta a outros bancos centrais. São
criados milhões de milhões de euros apenas para comprar
acções e títulos, não para gastar na economia,
não para contratar mão-de-obra, não para construir
infraestruturas, mas apenas para salvar os detentores de acções e
títulos de perderem dinheiro com a queda dos preços dos activos.
Isso torna 1% ou 5% da população ainda mais rica. Portanto, na
prática, a função do Banco Central Europeu é criar
dinheiro apenas com o propósito de poupar aos 5% mais ricos perdas nas
suas acções e títulos.
SERVIDÃO PELA DÍVIDA
O custo dessa limitação é empobrecer a economia e
basicamente torná-la parecida com a Grécia, que foi um ensaio
geral de como a zona do euro iria reduzir os seus países à
dependência da dívida. No feudalismo, todos tinham que se tornar
servos para terem acesso à terra. Bem, agora está-se na moderna
servidão pela dívida, a versão da servidão do
capitalismo financeiro.
Os EUA não querem rivais. Querem satélites. O que temos
basicamente são os EUA a dizerem: "Bem, nós sabemos qual
é a resposta para o comunismo. É o fascismo", e temo-los
visto a comprarem políticos. Fizeram todos os truques sujos para lutar
contra qualquer grupo de esquerda na Itália, assim como fizeram na
Jugoslávia e da mesma forma que fizeram na Grécia.
Exterminaram os guerrilheiros, todos os principais grupos anti-nazistas, da
Grécia, Itália e outros lugares. De repente, todos eles foram
assassinados ou retirados dos seus cargos e substituídos pelas
mesmas pessoas contra as quais os Estados Unidos haviam lutado durante a
Segunda Guerra Mundial.
Bem, agora a Itália está finalmente a ser confrontada com isso
tentando contra-atacar. O que está a acontecer, entre a Itália do
Norte a Itália do Sul, são as mesmas divisões que ocorrem
noutros países.
26/Março/2021
(continua)
A transcrição na íntegra encontra-se em
thesaker.is/...
Esta entrevista encontra-se em
https://resistir.info/
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