Como nasceu e como morreu o "marxismo ocidental"
[1]
por Domenico Losurdo
1. O “marxismo ocidental” e a remoção da questão colonial.
2. Althusser e a crítica do “humanismo”
3. Da história à “ciência” ou do materialismo ao idealismo, da história mundial ao eurocentrismo
4. O “marxismo ocidental” lê o “marxismo oriental”: um equívoco coletivo
5. De Foucault a Negri: a progressiva transfiguração do Império
6. “Marxismo ocidental”, “marxismo oriental”
Referências
Notas
RESUMO:
Por muito tempo o "marxismo ocidental" celebrou a sua superioridade
em relação ao marxismo dos países que se remetiam ao
socialismo e que estavam todos situados no Oriente. Em decorrência dessa
atitude arrogante, o marxismo ocidental nunca se empenhou seriamente em
repensar a teoria de Marx à luz de um balanço histórico
concreto: qual era o papel do Estado e da nação nesses
países e no "campo socialista"? Como promover a democracia e
os direitos humanos e como estimular o desenvolvimento das forças
produtivas e o bem-estar das massas numa situação caracterizada
pelo bloqueio capitalista? Ao invés de pôr-se essas
questões difíceis, o marxismo ocidental preferiu abandonar-se
à cômoda atitude autoconsolatória de quem cultiva em
particular as suas utopias e rejeita, como uma contaminação, o
contato com a realidade e a reflexão sobre a realidade. Disso derivou
uma progressiva capitulação à ideologia dominante. Por
fim, a autocelebração do marxismo ocidental desembocou na sua
autodissolução.
1. O "marxismo ocidental" e a remoção da questão
colonial.
Por que o marxismo ocidental, após desfrutar de um sucesso
extraordinário até se tornar a
koiné
das décadas de 1960 e 1970, mergulhou numa crise tão profunda?
Sem dúvida, os fatos históricos que todos conhecemos e que
culminaram com a queda da União Soviética e do "bloco
socialista" desempenharam neste caso um papel fundamental. No entanto,
embora inevitável, esse tipo de explicação não
é exaustivo: é necessário aprofundar a análise,
concentrando a atenção nas fraquezas intrínsecas que o
marxismo ocidental revela no Ocidente, mesmo na época em que sua
hegemonia parece incontestável. Nada é mais verdadeiro em
relação à Itália. É preciso partir de um
debate suscitado por Norberto Bobbio em 1954. Ele, embora insistindo justamente
na irrenunciabilidade da liberdade formal e das suas garantias
jurídico-institucionais, atribui como mérito dos Estados
Socialistas o fato de eles "terem começado uma nova fase de
progresso civil em países politicamente atrasados, introduzindo
instituições tradicionalmente democráticas, de democracia
formal, como o sufrágio universal e a elegibilidade dos cargos, e de
democracia substancial, como a coletivização dos instrumentos de
produção". Entretanto, é a conclusão
crítica, o novo "Estado Socialista" não soube
transplantar em seu bojo o governo da lei e os mecanismos de garantias
liberais, não soube ainda proceder à
"limitação do poder" e derramar "uma gota de
óleo (liberal) nas engrenagens da revolução já
realizada"
[2]
. Como se vê, estamos bem longe das posições assumidas pelo
filósofo de Turim na última fase da sua evolução,
no momento em ele se torna, em última análise, um ideólogo
da guerra do Ocidente: em 1954 (faltam dois anos para o XX Congresso do PCUS e
a revolta húngara) a influência do marxismo e o prestígio
dos países que fazem referência a ele são grandes; nesse
momento, ao lado da "democracia formal", Bobbio teoriza também
uma "democracia substancial"; além disso, expressa um
juízo a respeito dos países socialistas que não é
univocamente negativo, nem mesmo a respeito da "democracia formal".
Quais são as reações dos intelectuais comunistas
italianos? Para rechaçar ou atenuar as críticas dirigidas, em
primeiro lugar, à União Soviética, eles poderiam ter
alegado o estado de exceção permanente imposto ao país
surgido da Revolução de Outubro como justificativa parcial do
atraso, bem como a ameaça do aniquilamento nuclear que pairava de forma
contínua sobre ele. Galvano Della Volpe, ao contrário, segue uma
estratégia totalmente diferente, concentrando-se na
celebração da
libertas maior
(o desenvolvimento concreto da individualidade garantido pelas
condições materiais de vida). Desse modo, por um lado, as
garantias jurídicas do Estado de Direito são desvalorizadas,
implicitamente rebaixadas à condição de
libertas minor;
por outro lado, acaba-se valorizando a transfiguração realizada
por Bobbio da tradição liberal, enquanto campeã da causa
da fruição universal (pelo menos dos direitos civis), da
liberdade formal, da
libertas minor,
da "limitação do poder". Para sustentar essa
visão, Bobbio remete ao hino que John Stuart Mill, em seu ensaio dedica
à liberdade, talvez o mais célebre:
On Liberty.
Entretanto, é justamente nesse ensaio que vemos o liberal inglês
justificar o "despotismo" do Ocidente sobre as
"raças" ainda "menores de idade", obrigadas a
aceitar uma "obediência absoluta", de tal forma que possam ser
guiadas no caminho em direção ao progresso
[3]
. Em 1954, o "despotismo" e a "obediência absoluta"
impostos pelo Ocidente eram muito bem percebidos no mundo colonial; nos Estados
Unidos, os negros continuavam excluídos maciçamente dos direitos
políticos e, às vezes, até dos direitos civis (no Sul
ainda não desaparecera o regime de segregação racial e da
white supremacy
). Della Volpe, completamente absorvido pela celebração da
libertas maior
, não se preocupa ou não é capaz de chamar a
atenção para o equívoco clamoroso de Bobbio.
O fato é que, embora apresentando-se cada vez de maneira diferente, a
remoção da questão colonial caracteriza amplamente o
marxismo ocidental daqueles anos. Em 1961, Ernest Bloch publica
Direito Natural e Dignidade Humana.
Como o próprio título revela, estamos bem longe da
subestimação da
libertas minor,
tão cara a Della Volpe; ao contrário, a
reivindicação da herança da tradição liberal
é explícita, submetida, contudo, a uma crítica que
infelizmente parece uma transfiguração. Bloch critica o
liberalismo por defender uma "igualdade formal e apenas formal". E
acrescenta: "Para impor-se, o capitalismo está interessado
só na realização de uma universalidade da
regulamentação jurídica, que abraça tudo de maneira
igual"
[4]
.
Essa afirmação pode ser lida num livro publicado no mesmo ano em
que a polícia, em Paris, desencadeia uma caça impiedosa contra os
argelinos, afogados no rio Sena ou mortos a pauladas; e tudo isso à luz
do dia, aliás, na presença de cidadãos franceses que, sob
a proteção do governo da lei, assistem divertidos ao
espetáculo: belo exemplo de "igualdade formal"! Na capital de
um país capitalista e liberal assistimos a ação de uma
dupla legislação, que entrega ao arbítrio e ao terror
policial um grupo étnico bem definido. Se, depois, considerarmos as
colônias e as semi-colônias e olharmos, por exemplo, a
Argélia ou então o Quênia ou a Guatemala (um país
formalmente livre, mas, de fato, sob o protetorado norte-americano), veremos o
Estado dominante, capitalista e liberal, lançando mão, de forma
ampla e sistemática, da tortura, dos campos de
concentração e das práticas genocidas contra os povos
indígenas. Disso tudo não há vestígio nem em
Bobbio, nem em Della Volpe e tampouco em Bloch.
Os povos coloniais ou de origem colonial continuam ausentes quando o autor de
Direito Natural e Dignidade Humana
trata de Grotius e de Locke (o apreço por sua orientação
jusnaturalista não menciona o empenho de ambos em justificar a
escravidão negra), ou no momento em que faz referência à
Guerra de Independência americana (a homenagem feita aos "jovens
Estados livres" nem sequer menciona o peso da escravidão na
realidade político-social e na própria Constituição
dos EUA)
[5]
.
Esse silêncio é ainda mais singular porque, justamente nesses
anos, começa a desenvolver-se, na república do outro lado do
Atlântico, a luta dos afro-americanos. É um acontecimento que
chama a atenção de Mao Tsé-tung, em Pequim, e pode ser
interessante confrontar os posicionamentos de duas personalidades tão
diferentes entre si. Se o filósofo alemão denuncia o
caráter meramente "formal" da igualdade liberal e capitalista,
o dirigente comunista chinês procede, por sua vez, de maneira bem
diferente. Decerto, ele ressalta o fato de os negros apresentarem uma taxa de
desemprego bem maior que a dos brancos, além de serem confinados aos
segmentos inferiores do mercado de trabalho e serem obrigados a contentar-se
com salários reduzidos. Isso, porém, não é tudo:
Mao chama a atenção para a violência racista desencadeada
pelas autoridades do Sul e pelos bandos tolerados ou encorajados por elas e
celebra a "luta do povo negro americano contra a
discriminação racial e pela liberdade e a igualdade dos
direitos"
[6]
. Bloch critica a revolução burguesa pelo fato de ela "ter
limitado a igualdade à liberdade política"; em
relação aos afro-americanos, Mao observa que "a maioria
deles está desprovida do direito de voto"
[7]
. Reduzidos à mercadoria e desumanizados pelos seus opressores, os povos
coloniais travaram batalhas memoráveis pelo reconhecimento durante
séculos, mas em Bloch se lê: "O princípio pelo qual os
homens nascem livres e iguais já está presente no direito romano;
agora deve estar presente também na realidade". E vejamos agora a
conclusão do artigo de Mao de 1963, acima citado: "O perverso
sistema colonial-imperialista desenvolveu-se graças à
escravidão e ao tráfico negreiro, e ele certamente chegará
ao fi m com a total libertação dos negros"
[8]
.
Sinais semelhantes manifestam-se no Vietnã, onde está ocorrendo
uma grande luta de libertação nacional guiada por Ho Chi Minh,
que, já em 1920, acusara a Terceira República francesa nestes
termos: "A chamada justiça indochinesa, naquela região, tem
dois pesos e duas medidas. Os anamitas não têm as mesmas garantias
dos europeus e dos europeizados". Não são apenas
"vergonhosamente oprimidos e explorados" mas também
"horrivelmente martirizados" e sofrem "todas as atrocidades
cometidas pelos bandidos do capital"
[9]
. Como se vê, nos textos aqui citados de Mao e de Ho Chin Minh, a
libertas minor
tão cara a Della Volpe não é subestimada e tampouco a
ilusão (comum, com modalidades diferentes, em Bobbio, Della Volpe e
Bloch), segundo a qual o capitalismo e o liberalismo garantiriam de qualquer
modo a "igualdade formal" ou até mesmo a "igualdade
política". Tanto o líder chinês como o líder
vietnamita têm, de alguma forma presente, a indicação de
Lênin: "Os homens políticos mais liberais e radicais da livre
Grã-Bretanha [...] se transformam, quando se tornam governadores da
Índia, em verdadeiros Genghis Khan"
[10]
. Na própria metrópole capitalista e liberal manifestam-se
"contínuas violações da igualdade (inclusive)
jurídica das nações": a esse respeito, Lênin
cita em 1920 o exemplo da "Irlanda" e dos "negros da
América"; tanto na Inglaterra, como nos Estados Unidos, as
"garantias dos direitos das minorias nacionais"
[11]
são vilipendiadas. E tanto Mao como Ho Chi Minh poderiam ter mencionado
as páginas em que Marx denuncia o tratamento da Inglaterra liberal em
relação à Irlanda (uma colônia situada na Europa):
trata-se de uma política ainda mais cruel e terrorista do que a
praticada pela Rússia czarista e autocrática contra a
Polônia (MEW, XVI, 552). Como se vê, o marxismo
"oriental" empenha-se, compreensivelmente, muito mais do que o
marxismo "ocidental" na denúncia das cláusulas
macroscópicas de exclusão da liberdade liberal.
2. Althusser e a crítica do "humanismo"
Voltemos ao debate suscitado por Bobbio em 1954. Há uma
intervenção sensivelmente diferente daquela de Della Volpe. A
polêmica com o filósofo de Turim desenvolve-se agora assim:
"Quando e em que medida foram aplicados aos povos coloniais aqueles
princípios liberais sobre os quais se diz fundado o Estado inglês
do século XIX, modelo, creio, de regime liberal perfeito para aqueles
que raciocinam como Bobbio?". A verdade é que a "doutrina
liberal [...] está fundada numa discriminação
bárbara entre as criaturas humanas", que se alastra não
só nas colônias, mas na própria metrópole, como
demonstra o caso dos negros estadunidenses, "na maioria privados dos
direitos elementares, discriminados e perseguidos"
[12]
. Nessa tomada de posição não há nenhuma
degradação da "liberdade formal" à
libertas minor,
mas, ao mesmo tempo, não se perde de vista o fato de sua
fruição ter sido historicamente negada às massas
incalculáveis de homens pelo próprio Ocidente liberal. Essa
intervenção deve-se a um autor hoje quase completamente
esquecido, mas que responde pelo nome de Palmiro Togliatti, na época
secretário-geral do PCI. Estamos diante de um expoente do "marxismo
ocidental"? No entanto, deve-se notar que não se trata de um
filósofo profissional, e sim de um político profissional,
além disso ligado organicamente pelo menos assim julgam seus
críticos ao orientalizante "socialismo real".
Concentremo-nos, contudo, na expressão utilizada por Togliatti:
"discriminação bárbara entre as criaturas
humanas". Trata-se de uma condenação inspirada por aquele
"humanismo integral" em que, segundo Gramsci, consiste o comunismo;
por outro lado, vimos Bloch levantar, em 1961, a bandeira em defesa da
"dignidade humana". Naqueles mesmos anos, o humanismo exerce um papel
fundamental em Sartre, que faz uma denúncia apaixonada do colonialismo
evidenciando justamente teorias e práticas de
desumanização por ele desenvolvidas. Estamos diante de
expressões diferentes daquele "humanismo" que mais tarde se
torna o bicho-de-sete-cabeças de Louis Althusser.
Como é sabido, o jovem Marx denuncia a sociedade existente como
negação do "humanismo positivo" (
positiver Humanismus
) e do "humanismo realizado" (
vollendeter Humanismus
) (MEW, Erg. Bd., I 583 e 536), do "humanismo real" (
realer Humanismus
) (MEW, II, 7), e formula seu programa revolucionário, enunciando o
"imperativo categórico de derrubar todas as relações
em que o homem é um ser degradado, escravizado, abandonado,
desprezado" (MEW, I, 385). Para Althusser, essas formulações
são ingenuidades ideológicas, felizmente superadas pelo Marx
maduro, a partir aproximadamente de 1845, quando teria ocorrido a "ruptura
epistemológica" e a retórica humanística, que
esqueceu a luta de classes, que teria sido suplantada pelo materialismo
histórico, ou melhor, pela ciência da história.
Na realidade, essa suposta retórica continua ecoando mais forte do que
nunca no
Manifesto do Partido Comunista,
que convida a derrubar um sistema, o capitalista, que desconhece a dignidade
humana da imensa maioria da população: no banco dos réus
são colocadas as relações econômicas e sociais que
implicam a "transformação em máquina" dos
proletários (MEW, IV, 477), rebaixados desde a infância a
"meros artigos de comércio e instrumentos de trabalho" (MEW,
IV, 478), a "simples acessório da máquina" (MEW, IV,
468), à apêndice "dependente e impessoal" do capital
"independente e pessoal" (MEW, IV, 476).
Para Althusser, o
Manifesto do Partido Comunista
faz parte das "obras de maturação teórica" e
não das "obras da maturidade" plenamente alcançada
[13]
. Vejamos, então, em que termos
O Capital
coloca no banco dos réus o sistema capitalista: a busca pelo lucro
implica um "desperdício" de
vida humana
, digno de Timur-Tamerlão"
(MEW, XXIII, 279, nota 208). É um sistema que não hesita em
sacrificar vidas humanas em formação e incapazes de se defender:
eis o "grande rapto herodiano das crianças realizado pelo capital
no início do sistema fabril nas casas dos pobres e dos orfanatos,
através do qual ele incorporou um material
humano
totalmente desprovido de vontade" (MEW, XXIII, 425, nota 144). São
terríveis os custos humanos do capitalismo. Basta pensar na
formação da indústria têxtil na Inglaterra:
procura-se a matéria-prima necessária cercando e destinando
às pastagens as terras comuns que antes asseguravam a subsistência
de grande parte da população que, expropriada, é condenada
à fome e ao desespero: sim sintetiza
O Capital
citando Thomas More "as ovelhas devoram os
homens
" (MEW, XXIII, 747, nota 193). A sociedade burguesa ama celebrar a si
mesma como "um verdadeiro Éden dos direitos inatos do
homem
", na realidade no seu âmbito o "trabalho humano",
aliás, "o
homem
enquanto tal [...] desenvolve ao contrário um papel
miserável" (MEW, XXIII, 189 e 59). Se passarmos apenas da esfera da
circulação à da produção, notamos que, bem
longe de ser reconhecido em sua dignidade de homem, o trabalhador assalariado
"leva ao mercado a sua própria pele e não tem outra coisa a
esperar a não ser o... curtume" (MEW, XXIII, 191).
A crítica dos processos de desumanização ínsitos no
capitalismo ressoa com força ainda maior quando Marx fala do destino
reservado aos povos coloniais: com "a aurora da era da
produção capitalista", a África se transforma em uma
"reserva de caça para os mercadores de pele negra" (MEW,
XXIII, 779). Passemos agora para a Ásia e para o império colonial
holandês: aí funciona "o sistema de roubo de
homens
nas Célebes para obter escravos para Java", com
"ladrões de
homens"
(
Menschenstehler
) propositalmente "adestrados para tal finalidade" (MEW, XXIII, 780).
Ainda na metade do século XIX vemos nos EUA o escravo negro assumindo
completamente a forma de simples "propriedade" tanto quanto as
outras, enquanto a lei sobre a restituição dos escravos fugitivos
determina a transformação dos próprios cidadãos do
Norte em "caçadores de escravos" (MEW, XV, 333). Nesse
meio-tempo, alguns Estados no Sul especializam-se na
"criação de negros" (
Negerzucht
) (MEW, XXIII, 467), ou seja, no "breeding of slaves" (MEW, XXX, 290:
carta a Engels de 29 de outubro de 1862). Renunciando aos tradicionais
"artigos de exportação", esses Estados "criam
escravos" como mercadorias de "exportação" (MEW,
XV, 336). Por outro lado, quando estoura a guerra, eis que proprietários
de escravos abandonam áreas consideradas pouco seguras para
transferir-se para o Sul, arrastando consigo seu excelente "
black chattel"
(MEW,XXX, 290: carta a Engels de 29 de outubro de 1862). Como se vê,
também nos escritos da maturidade, recorre em Marx a
motivação crítica que censura a sociedade burguesa por ela
reduzir a grande maioria da humanidade à "máquinas", a
"instrumentos de trabalho", à "mercadoria" que pode
ser tranquilamente "esbanjada", a "produtos de
comércio" e a "artigos de exportação", a
bens móveis dos quais o dono pode dispor como uma "bagagem", a
animais de criação, ou seja, à pele objeto de caça
ou a ser destinada ao curtume.
A denúncia do anti-humanismo do sistema capitalista não
desapareceu de modo algum e nem pode desaparecer, porque está no centro
do pensamento de Marx: a comparação, tão importante para
ele, entre escravidão moderna e escravidão antiga,
escravidão assalariada e escravidão colonial, significa a
permanência, no âmbito do capitalismo, daquele processo de
reificação que se manifesta em toda a sua crueza em
relação ao escravo propriamente dito, completamente reduzido
à mercadoria ou à condição de animal. O rigor
científico e a indignação moral resultam tão
entrelaçados entre si, e é somente este entrelaçamento que
pode explicar o apelo à revolução. Por mais fiel e
impiedosa que possa ser, a descrição da sociedade existente
não pode por si só estimular a ação para a sua
derrubada, se não houver a mediação da
condenação moral; e essa condenação moral brota em
Marx da constatação dos processos de desumanização
ínsitos ao sistema capitalista; a partir daí, a
realização de uma nova ordem é percebida como um
"imperativo categórico", e isso tanto nos escritos de
juventude quanto nos escritos de maturidade. Se as
Teses contra Feuerbach
se concluem com a condenação dos filósofos que se revelam
incapazes de "transformar" um mundo no qual o homem é esmagado
e humilhado,
O Capital
é uma "Crítica da Economia Política" como
reza seu subtítulo também no plano moral: o
"economista político" é criticado não apenas por
seus erros teóricos, mas também por sua "imperturbabilidade
estóica", isto é, por sua incapacidade de
indignação moral diante das tragédias provocadas pela
sociedade burguesa (MEW, XXIII, 756). A continuidade na evolução
de Marx é evidente, e aquilo que Althusser descreve como ruptura
epistemológica nada mais é que a passagem para um discurso no
âmbito do qual a condenação moral do anti-humanismo da
sociedade burguesa é expressa de maneira mais sintética e mais
elíptica.
3. Da história à "ciência" ou do materialismo ao
idealismo, da história mundial ao eurocentrismo
Podemos perfeitamente compreender as razões da posição
adotada pelo filósofo francês: são os anos em que a
bandeira do "humanismo" é agitada para abafar a luta contra o
imperialismo; iniciou-se o processo que mais tarde levará à
capitulação de Gorbachev. Analisando melhor, a crítica
filosófica do humanismo, enquanto inclinada a ocultar o conflito social
e sua aspereza, é, ao mesmo tempo, a polêmica contra as
"concepções tingidas de reformismo e de oportunismo ou, mais
simplesmente, revisionistas", que vinham se difundindo naquela época
[14]
. Infelizmente, essa polêmica é conduzida a partir de
posições erradas. Em primeiro lugar, deve-se considerar que
não só o apelo à humanidade comum (e à moral), mas
também o apelo à ciência pode levar ao esquecimento da luta
de classes. E, todavia, o filósofo francês toma
posição justamente contra o slogan "ciência burguesa,
ciência proletária" e atribui como mérito de Stalin o
fato de este ter-se oposto à "loucura" que exigia "a todo
custo fazer da língua uma superestrutura" ideológica.
Graças a essas "simples páginas" conclui
Althusser "vislumbramos que o uso do critério de classe
não era ilimitado e que nos faziam tratar como uma ideologia qualquer
ciência, cujo título incluía as próprias obras de
Marx"
[15]
. Pode ser considerado ilimitado o uso do critério de classe pela moral?
Podem ser realmente postas no mesmo plano posições que
reivindicam a unidade do gênero humano e posições que, na
prática, e às vezes de maneira explicita até na teoria,
promovem a desumanização das grandes massas de homens, rebaixados
a
Untermenschen
e destinados somente a serem escravizados ou aniquilados?
Polemizando contra a leitura humanista do marxismo, Althusser não se
cansa de repetir que Marx não parte do "homem" ou do
"indivíduo" mas da estrutura histórica das
relações sociais. Contudo, é estranho que o conceito de
"homem" ou de "individuo" seja considerado óbvio.
Convém, então, remeter a Nietzsche que, após ter condenado
a Comuna de Paris desencadeada por uma "classe bárbara de
escravos" em nome da "dignidade do homem" e da "dignidade
do trabalho" humano
[16]
, condena a "agitação individualista"
[17]
, de um movimento, o socialismo, cuja erro é querer transformar em
indivíduos e em pessoas aqueles que por natureza "não
são
nenhuma
pessoa", mas simples "portadores, instrumentos de
transmissão"
[18]
. Ou seja, longe de ser um dado óbvio, o conceito de indivíduo e
de homem enquanto tal é o resultado de lutas gigantescas pelo
reconhecimento, conduzidas agitando justamente a bandeira do humanismo
tão desprezado por Althusser. Isso já vale para os trabalhadores
assalariados da metrópole (muitas vezes desumanizados pela
tradição liberal e assimilados a instrumentos de trabalho, a
máquinas bípedes, a bestas de carga), mas vale de maneira toda
especial para os povos coloniais. Não faz sentido contrapor a estrutura
histórica das relações sociais ao conceito de homem ou de
indivíduo como tal, pelo fato de que esse mesmo conceito
pressupõe radicais transformações políticas e
sociais. Quando afirma que o humanismo em última análise é
burguês, Althusser argumenta de maneira análoga a Bloch: tanto num
caso como noutro a sociedade burguesa é recriminada por ater-se apenas
à "igualdade formal" e, desse modo, são removidas
também as desigualdades formais e os profundos processos conexos que
caracterizam o capitalismo.
É verdade, o filósofo francês reconhece que pode existir
também um "humanismo revolucionário" originado pela
Revolução de Outubro
[19]
, mas nesse ponto é muito hesitante; e assim impede a si mesmo a
compreensão das lutas gigantescas por reconhecimento conduzidas pelos
"escravos das colônias" (para usar uma linguagem tão
cara a Lênin). Esse resultado é ainda mais inevitável pelo
fato de a teoria de Marx ser, em Althusser, só um capítulo da
história do pensamento científico: "Antes de Marx só
dois grandes continentes haviam sido abertos ao conhecimento científico,
após rupturas epistemológicas sucessivas: o continente
matemático graças aos gregos [...] e o continente físico,
graças a Galileo e seus sucessores"
[20]
. É um enfoque que determina duas consequências muito relevantes:
1) Marx insistiu várias vezes sobre o fato de que a sua teoria é
a expressão teórica de um movimento real; agora, porém,
é o movimento real que é considerado o produto, para dizer com
Althusser, de uma "ruptura epistemológica", ou, para dizer com
Della Volpe, de um método científico que aprende a
lição de Galileo e, antes ainda, de Aristóteles,
crítico de Platão. Assistimos assim a uma distorção
idealista do materialismo histórico, visto como o resultado da
genialidade de um único indivíduo que se aventurou na descoberta
de um novo continente! Após ter censurado repetidamente o humanismo por
ocultar a luta de classes, agora é o próprio Althusser que faz
desaparecer a luta de classes atrás da elaboração do
materialismo histórico. 2) A distorção idealista do
marxismo é, ao mesmo tempo, sua reinterpretação em termos
eurocêntricos. Para Engels, Lênin e Gramsci, o marxismo tem
atrás de si a Revolução Francesa, e esta acabava
remetendo, pelo menos potencialmente, às lutas gigantescas suscitadas
por ela em Santo Domingo e que culminaram com a abolição da
escravidão nas colônias. Agora, ao contrário, a
elaboração do materialismo histórico é o
capítulo de uma história que se desenvolve exclusivamente no
Ocidente.
4. O "marxismo ocidental" lê o "marxismo oriental":
um equívoco coletivo
Althusser segue com profunda participação as lutas realizadas
pelos povos coloniais, e olha com simpatia para a China que aspira pôr-se
à frente do movimento anti-imperialista; contudo, do ponto de vista
teórico, ele não parece capaz de apreender plenamente o
significado dessas lutas. Estamos diante de um fenômeno de caráter
geral. No decorrer dos anos de 1960 e 1970, um equívoco coletivo
caracteriza a esquerda de orientação marxista na Europa e nos
Estados Unidos: as grandes manifestações em favor do
Vietnã se entrelaçam tranquilamente com a homenagem tributada a
autores propensos a considerar definitivamente superados os movimentos de
libertação nacional. Em 1966, Adorno, em
A Dialética Negativa,
liquida a tese hegeliana do "espírito do povo" (
Volksgeist
), ou seja, o caráter essencial da dimensão e da questão
nacional, como "reacionária" e regressiva "em
relação ao universal kantiano de seu período, a humanidade
agora visível", como eivada de "nacionalismo" e
"provinciana na época de conflitos mundiais e do potencial de uma
organização mundial do mundo". Pior ainda, tratar-se-ia do
culto tributado a um "fetiche", a um "sujeito coletivo" (a
nação), no âmbito do qual "os sujeitos [individuais]
desaparecem sem deixar vestígios"
[21]
. É uma tomada de posição que
a posteriori
deslegitimava a guerra conduzida pela Frente de Libertação
Nacional
da Argélia, um povo e um país sem dúvida mais
provincianos, mais atrasados e menos cosmopolitas do que a França,
contra a qual se insurgiram. Em todo caso, Adorno colocava-se na
impossibilidade de entender as grandes lutas que estavam acontecendo inclusive
debaixo de seus olhos, a começar por aquela guiada pela Frente de
Libertação
Nacional
do Vietnã.
De resto, vejamos de que maneira o "marxismo oriental" argumenta
sobre esse ponto. Três anos depois da publicação de
Dialética Negativa,
Ho Chi Minh morre. Em seu testamento, depois de ter convocado seus
concidadãos à "luta patriótica" e ao compromisso
"pela salvação da pátria", no plano pessoal ele
traça este balanço: "Por toda vida eu servi minha
pátria de corpo e alma, servi a revolução, servi o
povo"
[22]
. Por outro lado, já em 1960, por ocasião do seu
septuagésimo aniversário, o dirigente vietnamita recordara seu
percurso intelectual e político afirmando que: "no começo
fora o patriotismo e não o comunismo que me levou a acreditar em
Lênin e na Terceira Internacional". Em primeiro lugar, os apelos e
os documentos que apoiavam e promoviam a luta de libertação dos
povos coloniais, ressaltando seu direito de constituir-se como Estados
nacionais independentes, provocaram grande emoção: "As teses
de Lênin [sobre a questão nacional e colonial] despertavam em mim
grande comoção, um grande entusiasmo, uma grande fé, e me
ajudavam a ver claramente os problemas. Tão grande era a minha alegria
que até chorei"
[23]
.
No que diz respeito a Mao, basta pensar na declaração que ele
dera na véspera da fundação da Republica Popular Chinesa,
em 1949: "A nossa não será mais uma nação
sujeita ao insulto e à humilhação. Já nos
levantamos [...] A época na qual o povo chinês era considerado
selvagem agora acabou"
[24]
.
Compreende-se perfeitamente a atitude dos dois grandes revolucionários.
Atrás deles estava agindo a lição de Lênin, que
assim caracterizara o imperialismo: trata-se de um sistema em cujo âmbito
algumas pretensas "nações-modelo" atribuem a si mesmas
"o privilégio exclusivo da formação do Estado",
negando-o aos povos das colônias
[25]
; sim, "poucas nações eleitas" pretendem construir o
próprio "bem-estar" e estabelecer a própria primazia na
pilhagem e no domínio do resto da humanidade
[26]
. Ou seja, além da pilhagem econômica e da opressão
política, o imperialismo é também caracterizado pela
hierarquização das nações. Os povos explorados e
oprimidos são, ao mesmo tempo, rotulados como incapazes de se
autogovernar e de se constituir como Estado nacional; a luta para livrar-se
desse estigma é uma grande luta pelo reconhecimento.
Mas naquela época a homenagem a Ho Chi Minh, a Mao ou a Castro,
não favorecia, de forma alguma, posições de distanciamento
do niilismo nacional absorvido na escola do marxismo ocidental. E nem mesmo
Sartre era capaz de opor resistência ao niilismo nacional, apesar de seu
grande compromisso na luta contra o colonialismo. Como esclarece um
capítulo fundamental de
Crítica da Razão Dialética
(Livro I, cap. C), o filósofo francês faz derivar os vários
conflitos humanos, em última análise, da
"penúria" (
rareté
). O resultado dessa abordagem é avassalador. Na medida em que parece
determinar uma luta pela vida e pela morte, a condição de
penúria acaba, de alguma forma, justificando os responsáveis pela
opressão. Eles aparecem como os protagonistas de uma luta trágica
pela sobrevivência que, no presente se impõe de maneira fatal e,
no futuro, pode ser eliminada apenas por um extraordinário
desenvolvimento das forças produtivas. No lado oposto, os oprimidos
aparecem movidos apenas pelo desejo de escapar das intoleráveis
condições de vida; mas, então, posto que a língua,
a cultura, a identidade e a dignidade nacional não desempenham nenhuma
função, não se compreende a participação na
luta contra a opressão nacional por parte de camadas sociais que gozam
de um padrão de vida confortável ou de uma comodidade mais ou
menos relevante. Como se vê, a simpatia pelos "deserdados da
terra" e a indignação pelos crimes do colonialismo e do
imperialismo na Argélia ou no Vietnã, embora meritórias,
não garantem por si só uma compreensão adequada da
questão nacional.
A razão profunda dessa atitude contraditória será
esclarecida, de maneira exemplar, algumas décadas mais tarde por Hardt e
Negri: "Da Índia à Argélia, de Cuba ao Vietnã,
o Estado é a dádiva envenenada da libertação
nacional". É verdade, os palestinos podem contar com a nossa
simpatia; mas, a partir do momento em que "forem
institucionalizados", não se pode mais estar do "lado
deles". O fato é que "no momento em que a nação
começa a se formar e se torna um Estado soberano, suas
funções progressistas desaparecem"
[27]
. Ou seja, pode-se ter simpatia pelos vietnamitas, pelos palestinos ou por
outros povos somente enquanto eles forem oprimidos e humilhados; pode-se apoiar
uma luta de libertação nacional apenas na medida em que ela
continua sendo derrotada! A derrota ou a incapacidade de um movimento
revolucionário são a premissa para que o rebelde possa
autocelebrar-se e deleitar-se como rebelde que recusa em qualquer
circunstância contaminar-se com o poder constituído!
É óbvio que os líderes dos povos em luta pela
própria emancipação argumentam de maneira totalmente
diferente. Em setembro de 1949, às vésperas da conquista do poder
pelos comunistas, Mao chama a atenção para o desejo de Washington
de que a China "se reduza a viver com a farinha americana", acabando
assim por "tornar-se uma colônia americana"
[28]
; a luta pelo desenvolvimento da produção se configurava
então como uma continuação da luta pela
independência nacional.
Na verdade, já o
Manifesto do Partido Comunista
afirmara que o "proletário usará seu poder
político" e o controle dos meios de produção, em
primeiro lugar, "para aumentar, o mais rapidamente possível, o
total das forças produtivas" e, em particular, para desenvolver as
"novas indústrias", que não têm mais uma base
nacional e cuja "introdução" é "uma
questão de vida e de morte para todas as nações
civis" (MEW, IV, 481 e 466). E, contudo, o problema de caráter
geral sobre o qual Marx e Engels chamam a atenção adquire no
Oriente uma urgência toda particular. Depois de ter se livrado do jugo
colonial, os países e os povos recém-independentes estão
comprometidos em consolidar a independência no plano econômico:
não querem mais depender da esmola ou do arbítrio de seus
ex-patrões; consideram essencial quebrar o monopólio que os
países mais poderosos detêm sobre a tecnologia mais
avançada.
De fato, podemos ver no Vietnã uma orientação semelhante
àquela já analisada em relação a Mao. Em plena
guerra pela independência e pela unidade nacional, o então
primeiro secretário do Partido dos Trabalhadores do Vietnã do
Norte declara que, depois da conquista do poder, a tarefa mais importante
reside na "revolução técnica". Agora
"são as forças produtivas que desempenham o papel
decisivo"; trata-se portanto de empenhar-se com afinco para
"alcançar uma produtividade mais elevada, estimulando a
construção da economia e o desenvolvimento da
produção"
[29]
.
Mas no Ocidente, justamente no momento em que se desenvolve com mais
intensidade o movimento de apoio à resistência vietnamita e a
influência da China se faz sentir com mais força, ressoam vozes
muito diferentes no âmbito da esquerda marxista. Na Itália, Mario
Tronti publica um livro que tem logo um grande sucesso. Eis uma de suas teses
principais: a revolução socialista "suprime o trabalho. E
justamente assim elimina o domínio de classe. Supressão
operária do trabalho e destruição violenta do capital
são, portanto, uma coisa só"
[30]
. Estamos em 1966, ano em que na China eclode a Revolução
Cultural. E é nesse momento que a comédia de equívocos
chega ao ápice.
A Revolução Cultural é lançada com uma palavra de
ordem bem precisa: "Fazer a revolução e estimular a
produção". Entre os marxistas ocidentais não
são raras as tomadas de posição concordantes ou
entusiastas; a segunda parte desta palavra de ordem, porém, acaba sendo
esquecida. Entretanto, ainda em 1969, por ocasião do IX Congresso do
Partido Comunista Chinês, Lin Piao, herdeiro designado por Mao naquele
momento, afirma:
"Justamente como foi ressaltado em
Os 16 pontos
[que três anos antes haviam inaugurado a Revolução
Cultural]: '
A Grande Revolução Cultural Proletária constitui uma
poderosa força motriz para o desenvolvimento das forças
produtivas sociais no nosso país
', a produção agrícola no nosso país obteve boas
colheitas por vários anos consecutivos; apresenta-se também uma
situação vigorosa na produção industrial, na
ciência e na tecnologia; o entusiasmo das grandes massas trabalhadoras
pela revolução e a produção alcançou um
nível sem precedentes; numerosas fábricas, minas e outras
empresas bateram continuamente recordes de produção, chegando
assim a um nível jamais visto na história e a
revolução técnica está em contínuo
desenvolvimento [...]
'Fazer a revolução e estimular a produção'
este princípio é absolutamente justo"
[31]
.
Lin Piao reafirmava com insistência este ponto: "Devemos [...] fazer
com firmeza a revolução e estimular com vigor a
produção, cumprindo e superando o plano de desenvolvimento da
economia nacional. É claro que a grande vitória da Grande
Revolução Cultural Proletária continuará
alavancando novos saltos para frente na economia e na nossa causa, para a
edificação socialista em seu conjunto".
Aliás, uma das principais acusações contra o presidente
deposto da República Popular Chinesa, Liu Shao-chi, era "a teoria
dos passos de lesma", ou seja, a incompreensão de que a
Revolução Cultural teria prodigiosamente acelerado o
desenvolvimento das forças produtivas e levado o país, em curto
espaço de tempo, ao nível dos países capitalistas mais
avançados
[32]
. Não por acaso, a Revolução Cultural retomava e
relançava o Grande Salto para a Frente de 1958 mediante o qual a China
esperava queimar as etapas para alcançar os países capitalistas
mais avançados.
Não se deve esquecer que já, em 1937, em seu ensaio
Sobre a Prática,
retomando um tema do
Manifesto do Partido Comunista,
Mao sublinhara a centralidade da "atividade produtiva material" e
do desenvolvimento das forças produtivas para o aumento não
apenas da riqueza social, mas também do "conhecimento humano":
sim, "a produção em escala reduzida limitava o horizonte dos
homens"; e é em virtude dessa sua função
pedagógica que a atividade produtiva material não está
destinada a desaparecer nem mesmo "na sociedade sem classes", no
comunismo
[33]
. Mas no Ocidente, a celebração de Mao podia conjugar-se bem com
a espera do fim do trabalho; muitas vezes citava-se o ensaio
Sobre a Prática,
para remeter, porém, só à luta de classes, removendo seja
a luta pela produção, seja a luta pela
experimentação científica.
No marxismo ocidental, a divisão populista em duas partes da principal
palavra de ordem lançada pela Revolução Cultural,
corresponde à divisão do pensamento de Mao. Ele se sentia
fortemente empenhado na eliminação de dois tipos de desigualdade:
a que vigorava dentro do povo chinês mas também, e talvez mais
ainda, a que separava a China dos países mais avançados.
Acelerando poderosamente o desenvolvimento das forças produtivas, a
superação da primeira contradição tornaria
possível a superação também da segunda; dessa
forma, a nação chinesa se levantaria de modo estável e
definitivo, a longa luta pelo reconhecimento da China tornada necessária
pela opressão e pela humilhação impostas pelo imperialismo
seria coroada de um sucesso total.
No Ocidente, contudo, a Revolução Cultural, o pensamento e a obra
de Mao, a Revolução Chinesa em sem conjunto acabava sendo
reduzida a um único slogan: "Rebelar-se é justo". O
grande revolucionário, já dividido no sentido que conhecemos, era
submetido ainda a uma leitura anarcóide. Derrotado a duras penas na
época da Segunda Internacional, o anarquismo obtém uma clamorosa
revanche no movimento de 1968.
5. De Foucault a Negri: a progressiva transfiguração do
Império
Nesse clima espiritual e político, a cultura de orientação
marxista começa a ser seduzida e subvertida por autores e correntes de
pensamento que deveriam, no entanto, ter sido vistos com um certo
distanciamento crítico. Apoiado desde o início por Althusser
[34]
, Foucault irrompe fortemente com sua análise da difusão ou da
onipresença do poder não só nas instituições
e nas relações sociais, mas também no dispositivo
conceitual. É um discurso que fascina por seu radicalismo e, além
disso, permite um acerto de contas com o poder e a ideocracia que estão
na base do "socialismo real", cuja crise se manifesta cada vez mais
nitidamente. Na realidade, o radicalismo não é só aparente
mas se transforma em seu contrário. A atitude que condena toda
relação de poder, aliás, toda forma de poder, tanto no
âmbito da sociedade, como no âmbito do discurso sobre a sociedade,
torna muito problemática, ou impossível, a
"negação determinada" (
bestimmte Negation
), aquela negação de um "conteúdo determinado"
que, hegelianamente, é o pressuposto de uma transformação
real da sociedade, o pressuposto da revolução
[35]
. Além disso, esse esforço de individuação e
desmistificação do domínio em todas as suas formas
manifesta lacunas surpreendentes, justamente onde o domínio se manifesta
em toda a sua brutalidade: a atenção reservada ao domínio
colonial é muito escassa ou inexistente.
Pierre Boulez, amigo de Foucault, participa do protesto promovido por Sartre
contra o massacre dos argelinos em Paris. Foucault parece não aderir. De
maneira geral, ele não parece desempenhar nenhum papel na luta contra a
tortura e a cruel repressão com que o poder procura debelar a luta pela
libertação nacional. Foi justamente observado, a respeito de
Foucault, que "sua crítica do poder continua olhando para a
Europa"
[36]
. Mas é possível ir além: o colonialismo e a ideologia
colonial estão amplamente ausentes na história do mundo moderno e
contemporâneo reconstruída pelo filósofo francês. A
julgar por essa história, o "surgimento do racismo de Estado [deve
ser colocado] no início do século XX"
[37]
, enquanto é o advento do Terceiro Reich que marca o "aparecimento
de um Estado absolutamente racista"
[38]
. Essa periodização foi posta em dúvida com muita
antecedência pelos abolicionistas que, no século XIX, queimavam em
praça pública a Constituição americana, tachada de
ser um pacto com o diabo por consagrar a escravidão racial; ou aqueles
abolicionistas que recriminavam a lei sobre os escravos fugitivos de 1850 por
ela obrigar todo cidadão estadunidense "a se tornar um
caçador de homens": era passível de punição
não só quem tentasse esconder ou ajudar o negro perseguido pelos
seus legítimos proprietários, mas também quem não
colaborasse para a sua captura
[39]
. Como justificativa parcial de Foucault, poder-se-ia dizer que ele ignora esse
capítulo da história; mas, pelo menos, ele poderia ter lido o
comentário de Marx sobre a
Fugitive Slave Law:
"Exercer a função de caçador de escravos por conta
dos proprietários sulistas de escravos parecia ser a tarefa
constitucional do Norte" (MEW, XV, 333). Em todo caso, não estamos
diante de um racismo que se manifesta apenas no âmbito da sociedade
civil: o que decide a colocação social e o destino de um
indivíduo, na base de normas jurídicas e constitucionais
explícitas, é sua pertença racial. A realidade do Estado
racial surge com mais clareza nos Estados Unidos antes da Guerra de
Secessão do que no Terceiro Reich: segundo as leis de Nuremberg, o que
definia o judeu era também a pertença à religião
judaica deste ou daquele seu antepassado, enquanto nos EUA a religião
não exercia nenhuma função na definição do
negro. O sangue decidia tudo:
one drop rule.
Hitler não possuía escravos (nem negros, nem judeus), enquanto
nas primeiras décadas de história da república
norteamericana quase todos os presidentes são proprietários de
escravos (negros).
Se não na história dos Estados Unidos, Foucault poderia ter se
concentrado na história da Confederação Secessionista ou
da África do Sul, ou poderia ter manifestado uma
consideração de caráter global: se analisarmos os
países capitalistas juntamente com as colônias que eles
possuíam, podemos perceber facilmente que o fenômeno denunciado
por Ho Chi Minh em relação à Indochina tem um
caráter geral: estamos diante de uma dupla legislação, uma
para a raça dos conquistadores, outra para a raça dos
conquistados. Nesse sentido, o Estado racial segue como uma sombra a
história do colonialismo em seu conjunto; só que esse
fenômeno se apresenta com mais evidência nos Estados Unidos por
causa da contiguidade espacial em que vivem diferentes raças. Mas
Foucault não dedica nenhuma atenção à
história dos povos coloniais ou de origem colonial.
A história da ideologia racial traçada pelo filósofo
francês também faz pensar. Assim, "na metade do século
XIX", em contraposição à tradição da
Escola dos Anais empenhada em consagrar a soberania, afirma-se um discurso
completamente novo, antiautoritário e revolucionário, que
decompõe a sociedade em raças (ou classes) em luta e introduz
"um princípio de heterogeneidade: a história de uns
não é a história de outros"
[40]
. Entretanto, algum tempo depois, verifica-se uma reviravolta: "a ideia de
raça, com tudo aquilo que ela implica ao mesmo tempo em termos monista,
estatal e biológico, substituirá a ideia de luta de
raças". Trata-se de uma verdadeira inversão: "O racismo
representa, literalmente, o discurso revolucionário, mas o representa
pelo avesso". Permanece o fato que "a raiz da qual se parte é
a mesma"
[41]
. Desse quadro desapareceram "literalmente" os processos seculares de
racização e desumanização que acometem os povos
coloniais, assim como as grandes lutas pelo reconhecimento a começar
daquela que, com a radicalização da Revolução
Francesa, leva à abolição da escravidão nas
colônias.
Enfim, Foucault acredita poder afirmar que "a grande
ritualização pública da morte desapareceu [...] a partir
do fi nal do século XIX"
[42]
. Na realidade, ainda nas primeiras décadas do século XX, nos EUA
da
white supremacy,
o linchamento dos negros é organizado como espetáculo de massa,
anunciado pela imprensa local, a que são chamados a assistir e
participar também mulheres e crianças e que termina com a
distribuição de lembrancinhas do rito sacrificial.
As remoções macroscópicas aqui evidenciadas produzem
resultados muito significativos também no plano político. No
momento que em Foucault ministra o seu curso no Collège de France aqui
analisado estamos em 1976 ainda vigora o regime de
apartheid
da África do Sul racista. Por outro lado, cerca de dez anos antes, Hanna
Arendt chamara a atenção sobre a proibição que, em
Israel, ainda atingia os casamentos interraciais e sobre outras normas de
inspiração análoga, em paradoxal analogia com as
"infames leis de Nuremberg de 1935"
[43]
. Mas, quando o autor francês começa a procurar outra realidade
para comparar ao Terceiro Reich em termos de "racismo de Estado", ele
consegue identificá-la apenas na União Soviética,
país que desde sua fundação tivera um papel decisivo na
promoção da emancipação dos povos coloniais e que,
ainda em 1976, estava em primeiro plano na denúncia da política
antinegra e antiárabe conduzida, respectivamente, pela África do
Sul e por Israel!
Foi observado que Foucault exerce uma influencia considerável sobre
Antonio Negri. Com efeito... Hoje em dia, importantes autores norte-americanos
de orientação
liberal
descrevem a história de seu país como a história de uma
Herrenvolk democrac
y, ou seja, de uma democracia que vale apenas para o
Herrenvolk
(é significativo o recurso de linguagem caro a Hitler), para os
"povos dos senhores" e que, por outro lado, não hesita em
escravizar negros e exterminar os peles-vermelhas da face da terra.
Empire
, no entanto, fala em tom compungido de uma "democracia americana"
que rompe com a visão "transcendente" do poder, típica
da tradição europeia
[44]
. A apologia, porém, não para aqui. Tomemos uma figura central da
história do imperialismo americano, ou seja, Wilson. No momento em que
ele começa sua carreira política, o Sul, de onde provém,
assiste a irrupção dos esquadrões do Ku Klux Klan contra
os negros. Mas o futuro presidente toma a palavra, com um artigo do
Atlantic Monthly
de janeiro de 1901, para pronunciar um libelo contra as vítimas: os
"negros" são "excitados por uma liberdade que não
compreendem", são "insolentes e agressivos, preguiçosos
e ávidos de prazeres"! Em todo caso, a
"emancipação repentina e absoluta dos negros" foi uma
catástrofe: causou uma situação "muito
perigosa", que a "as assembleias legislativas do Sul" (isto
é, os brancos) são obrigadas a enfrentar com "medidas
extraordinárias" (os linchamentos e o terror)
[45]
.
Wilson permanecerá sempre fiel a essa plataforma ideológica e
política, em conformidade com a
white supremacy
no plano interno e internacional. Nesse mesmo contexto pode ser colocado o
grande bastão agitado e usado contra a América Latina. Não
se deve esquecer que as próprias relações com os aliados
europeus, muitas vezes, são caracterizadas por uma rude
Realpolitik
. Não é por acaso que desde jovem Wilson sente a
atração de Bismarck
[46]
. Tudo isso não impede o presidente norte-americano de intervir na
Primeira Guerra Mundial em nome da missão democrática universal
dos Estados Unidos: é uma "guerra santa, a mais santa de todas as
guerras", um "empreendimento transcendente", do qual são
protagonistas os "cruzados" protagonistas americanos. Esse
entrelaçamento singular da
Realpolitik
e da ideia religiosa de missão selada por uma relação
privilegiada e direta com o Senhor, provoca a pungente ironia de Freud
[47]
. Mas esse entrelaçamento torna mais fácil o recurso ao punho de
ferro contra a oposição pacifista. É uma repressão
bem mais dura do que aquela desencadeada no mesmo período na Alemanha
guilhermina e que, não por acaso, provoca a admiração de
Mussolini, que está percorrendo a passos largos o caminho que o
conduzirá ao movimento esquadrista e ao fascismo
[48]
. Agora, porém, leiamos Negri (e Hardt): o que caracteriza Wilson
é "uma ideologia pacifi sta internacionalista", bem distante
da "ideologia imperialista tipicamente europeia"
[49]
! Desde sempre, os ideólogos do
Manifest Destiny
insistem no primado moral e político dos Estados Unidos, na
exceção, ou melhor, no "excepcionalismo" representado
por um país, que é a única ilha de liberdade num imenso
oceano de despotismo:
Empire
não argumenta de maneira diferente.
A essa altura proponho uma espécie de exercício intelectual ou,
se quisermos, de jogo. Confrontemos dois trechos de dois autores sensivelmente
diferentes entre si, mas ambos empenhados em contrapor positivamente os Estados
Unidos à Europa. O primeiro celebra a "experiência
americana", ressaltando "a diferença entre uma
nação concebida na liberdade e devota ao princípio segundo
o qual todos os homens foram criados iguais e as nações do velho
continente, que certamente não foram concebidas na liberdade"
[50]
.
Vejamos agora o que diz o segundo:
O que era a democracia americana senão uma democracia fundada no
êxodo, em valores afirmativos e não dialéticos, no
pluralismo e a liberdade? Esses mesmos valores juntamente com a ideia da
nova fronteira não alimentavam continuamente o movimento
expansivo do seu fundamento democrático para além das
abstrações da nação, da etnia e da religião?
[...] Quando Hannah Arendt escrevia que a Revolução Americana era
superior à Revolução Francesa, pois a
Revolução Americana devia ser entendida como uma busca sem fi m
da liberdade política, enquanto que a Revolução Francesa
havia sido uma luta limitada em torno da escassez e da desigualdade, ela
exaltava um ideal de liberdade que os europeus tinham perdido, mas que
reterritorializavam nos Estados Unidos"
[51]
.
Qual dos dois trechos aqui citados é mais apologético? É
difícil dizer, embora o segundo pareça mais inspirado e
lírico: ele foi escrito por Negri (e Hardt), enquanto o primeiro
é de Leo Strauss, o autor de referência dos neoconservadores
americanos! Vem à mente a observação de Marx a respeito de
Bakunin que, com todo seu radicalismo anti-estatalista, acaba poupando a
Inglaterra, "o Estado propriamente capitalista", aquele que constitui
"a ponta de lança da sociedade burguesa na Europa." (MEW,
XVIII, 610 e 608). O anarquismo dos nossos dias vai além, poupando o
país que, aos olhos de uma grande e crescente opinião
pública mundial, é sinônimo não só de
capitalismo, mas também de militarismo e imperialismo. É um
país que, aos olhos de eminentes historiadores norte-americanos de
orientação liberal, encarna um "excepcionalismo" bem
diferente daquele imaginado por Strauss, Negri e Hardt: "Só nos
Estados Unidos houve uma ligação estável e direta entre
propriedade em escravos e poder político. Só nos EUA os
proprietários de escravos tiveram um papel decisivo para fundar uma
nação e criar instituições representativas"
[52]
.
Sartre denunciava, na sua época, "aquele monstro supereuropeu, a
América do Norte"
[53]
. Agora, porém,
Empire
não só contrapõe positivamente os Estados Unidos à
Europa, mas subscreve, ainda, a tese de Arendt sobre a nítida
superioridade da Revolução Americana em relação
à Revolução Francesa: é evidente que nesse
confronto em preto e branco a deportação e a
dizimação dos peles-vermelhas e a escravidão dos negros,
desenvolvida vigorosamente pela primeira e abolida pela segunda, não
exercem nenhum papel. Negri e Hardt não se deixam impressionar pelo fato
que, junto com o jacobinismo, Arendt arrasta também Marx para o banco
dos réus, o autor da "doutrina politicamente mais prejudicial da
Idade Moderna", o responsável por "uma verdadeira
capitulação da liberdade diante da necessidade": nisso ele
deixou-se influenciar por "seu mestre de revolução,
Robespierre" e influenciou, de forma ruinosa, por sua vez, "seu maior
discípulo, Lênin"
[54]
. Portanto, juntamente com a condenação sem atenuantes das duas
Revoluções que puseram em discussão o sistema mundial da
escravidão e da opressão colonial, Negri e Hardt subescrevem a
liquidação do filósofo que, ao condenar a
escravidão assalariada praticada na metrópole, remete, às
vezes de modo explícito, outras de modo implícito, à
escravidão propriamente dita que subsiste nas colônias. É a
autodissolução do "marxismo ocidental".
6. "Marxismo ocidental", "marxismo oriental"
A essa altura, é oportuno examinar de novo a
distinção-contraposição formulada por Perry
Anderson, à época, entre "marxismo ocidental" e
"marxismo oriental"
[55]
. Primeiramente, convém analisar as condições
históricas diferentes em que um e outro viveram e operaram. Partiremos
de 1917. Se no Ocidente prevalece, em primeiro lugar, a denúncia das
consequências nefastas (a carnificina e o afundamento da democracia)
provocadas pela competição e pela guerra interimperialista, no
Oriente, ao contrário, a Revolução de Outubro tem uma
repercussão extraordinária graças ao apelo aos
"escravos das colônias" para quebrar as correntes da
opressão e da humilhação nacional. Se no Ocidente o
Estado-nação era o Moloc sanguinário que sacrificava
milhões de homens à sede de domínio e aos interesses do
grande capital, no Oriente era o objetivo a ser alcançado para livrar-se
do jugo colonial e acabar com as práticas escravagistas e genocidas
realizadas pelas grandes potências capitalistas contra os
bárbaros. Nas duas áreas em que o mundo estava dividido, o
imperialismo era percebido de modo diferente; não há
contradição, e sim plena convergência entre esses dois
aspectos. Entretanto, o marxismo ocidental e o marxismo oriental nunca se
encontraram? Será que o primeiro nunca compreendeu realmente o segundo?
É preciso fazer uma ulterior consideração. A partir do
momento em que se esboçam as primeiras dificuldades e tragédias
do regime nascido da Revolução de Outubro mas sobretudo a partir
do momento em que se evidencia a crise do "socialismo real", a
divergência entre marxistas orientais e marxistas ocidentais assistiu
à contraposição entre marxistas que, de um lado, exercem o
poder e marxistas que, de outro, estão na oposição e se
concentram cada vez mais na "teoria crítica", na
"desconstrução", aliás, na denúncia do
poder e das relações de poder como tais. Está aqui
precisamente o ato de nascimento do "marxismo ocidental", o qual,
distanciando-se progressivamente do poder, julga identificar a
condição privilegiada para redescobrir o marxismo
"autêntico", não mais reduzido à ideologia de
Estado.
Contudo, esta autoconsciência orgulhosa e, talvez, arrogante, possui um
fundamento real? Há o outro lado da moeda, muitas vezes esquecido.
Poder-se-ia dizer que o marxismo oriental encontrou-se numa
situação mais favorável para compreender e assimilar uma
tese essencial de Marx:
"A profunda hipocrisia, a intrínseca barbárie da
civilização burguesa estão diante de nós sem
véus, não apenas nas grandes metrópoles, onde elas assumem
formas respeitáveis, mas voltemos os olhos às colônias,
onde perambulam nuas". (MEW, IX, 225).
O marxismo ocidental, no entanto, concentrou-se quase exclusivamente nas
"formas respeitáveis" do domínio burguês e
capitalista. Após perder de vista a sorte que, em primeiro lugar, estava
reservada aos povos coloniais e de origem colonial, a crítica do
"socialismo real", embora absolutamente necessária, desembocou
numa banal apologética liberal e numa liquidação
indiferenciada da história do comunismo do século XX.
Esclarecedora é a parábola de Colletti, discípulo de Della
Volpe. Mas não menos significativa é a atitude de dois autores
que continuam sendo uma referência para a esquerda. Falando da
União Soviética de Stalin (e implicitamente de todos os
países, que tiveram de curvar-se à lógica do
"socialismo num só país"), Hardt e Negri escrevem:
"É uma trágica ironia do destino que, na Europa, o
socialismo nacionalista acabasse por assemelhar-se ao nacionalsocialismo [...].
A máquina abstrata da soberania constituía o centro de ambos os
sistemas"
[56]
. Nesse balanço histórico temerário, os povos em
condições coloniais ou semicoloniais continuam sem desempenhar
nenhum papel. Dois países são tranquilamente comparados e
assimilados, dos quais o primeiro deu um forte impulso ao processo de
descolonização, e o segundo se propôs herdar e radicalizar
a tradição colonial, chegando ao ponto de considerá-la
atual na própria Europa oriental.
Se, por outro lado, considerarmos o mundo colonial, o balanço
histórico do século XX é bem diferente daquele tão
caro à ideologia dominante (e, hoje, até mesmo para os
sobreviventes do "marxismo ocidental"). Mesmo concentrando a
atenção exclusivamente na "democracia formal", ou seja,
no governo da lei e nas liberdades clássicas da tradição
liberal, podemos dizer que as sociedades nascidas do Outubro
Revolucionário se fecharam sobre si mesmas e acabaram anulando toda
forma de democracia; portanto, ao mesmo tempo, elas estimularam a demanda por
democracia e emancipação, por reconhecimento, as demandas
provenientes dos países coloniais ou dos países colocados na
periferia da metrópole capitalista. Neste segundo caso, foi justamente a
metrópole democrático-burguesa que sufocou no sangue as
reivindicações democráticas.
A influência positiva da União Soviética e do "campo
socialista" pode ser constatada também no que diz respeito a uma
população de origem colonial colocada no próprio
coração da metrópole capitalista. Refiro-me aos
afro-americanos. Eles são oprimidos por um regime da
white supremacy
terrorista no momento em que eclode a Revolução de Outubro. Mas
é a partir dela que se percebe uma nova inquietação entre
os negros que, sem se deixar intimidar pela caça às bruxas,
declaram: "Se lutar pelos próprios direitos significa ser
bolchevista, pois bem, nós somos bolchevistas e os outros devem se
resignar"
[57]
. Façamos um salto de quinze anos. É o período mais
trágico na história da União Soviética. Imposta
fundamentalmente do alto e de fora, a coletivização da
agricultura difundiu o
gulag
em larga escala, enquanto no horizonte vislumbra-se o Grande Terror. É
interessante ver, contudo, de que maneira continua sendo recebido pelos
afro-americanos o país nascido da Revolução de Outubro.
Eles, graças à ação do Partido Comunista dos
Estados Unidos, começam a receber aquilo que o regime de supremacia
branca obstinadamente lhes negava: uma cultura que ia além da
instrução elementar, tradicionalmente dada àqueles que
estavam destinados a fornecer trabalho semisservil a serviço da
raça dos senhores. Agora, porém, nas escolas organizadas pelo
Partido Comunista no Norte dos EUA ou nas escolas de Moscou, os negros se
empenham no estudo da economia, da política e da história
mundial; questionam essas disciplinas para compreender as razões do
destino cruel a eles reservado num país que se vangloria, no entanto, de
ser o campeão da liberdade. Ocorre uma mudança profunda naqueles
que frequentam essas escolas: a "impudência" que lhes é
recriminada pelo regime da
white supremacy
é, na realidade, a autoestima até aquele momento cerceada e
esmagada . Uma mulher negra, delegada no Congresso Internacional das Mulheres
contra a Guerra e o Fascismo, realizado em Paris em 1934, ficou profundamente
impressionada pelas relações de igualdade e fraternidade, apesar
das diferenças de língua e de raça, que se instauram entre
as participantes desta iniciativa promovida pelos comunistas. "Era o
paraíso na terra". Aqueles que chegam em Moscou observa um
historiador estadunidense contemporâneo "experimentam um
sentido de liberdade inaudito no Sul" dos EUA. Um negro se apaixona por
uma mulher branca soviética e casasse com ela, ainda que mais tarde, ao
voltar para a pátria, não possa trazê-la consigo,
conhecendo bem o destino que no Sul aguarda os que se mancham com a culpa da
miscegenation
e com o abastardamento racial
[58]
. Contudo, mesmo onde grassa o regime da
white supremacy,
percebe-se um clima novo: olha-se com esperança para a União
Soviética e para
Stalin
como o "novo Lincoln", o Lincoln que acabaria desta vez, de maneira
definitiva, com a escravidão dos negros, a opressão, a
degradação, a humilhação, a violência e os
linchamentos que continuavam sofrendo
[59]
.
Essas esperanças não foram totalmente frustradas. Pensemos no
período e nas modalidades que caracterizam o fim do regime de supremacia
branca. Em dezembro de 1952, o ministro da Justiça norte-americano envia
uma carta eloquente à Suprema Corte, empenhada em discutir a
questão da integração nas escolas públicas: "A
discriminação racial alimenta a propaganda comunista e suscita
dúvidas também entre as nações amigas sobre a
intensidade da nossa devoção à fé
democrática". Washington observa o historiador
norte-americano que em nossos dias reconstrói esse acontecimento
corria o risco de se tornar inimigo das "raças de cor"
não só no Oriente e no Terceiro Mundo mas no próprio
coração dos Estados Unidos: aqui também a propaganda
comunista conseguia um sucesso considerável na sua tentativa de ganhar
os negros para a "causa revolucionária" abalando-lhes a
"fé nas instituições americanas"
[60]
. Não há dúvida: nesse caso teve papel decisivo a
preocupação com o desafio representado objetivamente pela URSS de
Stalin e pela influência exercida por ela sobre povos coloniais e de
origem colonial.
Vimos que, ao contrário de grande parte do marxismo ocidental, o
"marxismo oriental" soube focalizar bem a barbárie colonial do
capitalismo. Mas não se trata só disso. Lembremos que Lênin
subscreve e considera "magnífica" a "fórmula"
da
Lógica
hegeliana segundo a qual o universal deve ser de forma tal que contenha em si
"a riqueza do particular"
[61]
. É em homenagem a esse enfoque que personalidades como Lênin, Ho
Chi Min, Mao, Castro etc. nunca puseram em contradição
patriotismo e internacionalismo, aliás, sempre enxergaram na luta de
libertação das nações oprimidas um momento
essencial da marcha do internacionalismo e do universalismo, daquilo que
Gramsci define como "humanismo integral". Não é assim
porém no marxismo ocidental. Por um lado pensemos sobretudo em
Althusser as categorias de humanidade, povo e nação foram
vistas com suspeita, como traição da luta de classes. Trata-se de
uma atitude de purismo supersticioso, que esquece como as categorias de
socialismo, revolução e classe operária podem ser
submetidas em sentido conservador e até mesmo reacionário (como
no caso da
National-sozialistische deutsche Arbeiterpartei
de funesta e hitleriana memória). Em todo caso, as
preocupações de Althusser podem ser respondidas com uma
penetrante observação de Mao: "Em última
análise, a luta nacional é uma questão de luta de
classes"
[62]
.
Por outro lado pense-se sobretudo em Adorno e atualmente em Negri
difundiu-se o desprezo para com as lutas de libertação
nacional,
postas em contradição com o internacionalismo e o universalismo.
Não por acaso, hoje em dia, é grande o desprezo que os
sobreviventes do marxismo ocidental ostentam pelos esforços que
países como a China e o Vietnã fazem para consolidar a
independência, também no plano econômico, de modo a poder
dar declara Deng Xiaoping em 1987 "uma
contribuição real à humanidade"
[63]
. De um lado ou de outro, devido à visão reducionista da luta de
classes ou da visão abstrata do universal, o marxismo ocidental, em
geral, não conseguiu entender a unidade entre universal e particular.
Esse apego a uma visão abstrata e pura do universal, se de um lado
impediu uma adequada compreensão dos movimentos de
libertação nacional (que continuam a se desenvolver também
depois da conquista o poder), de outro tornou impossível a
compreensão de um motivo de fundo da crise do "campo
socialista". A ruptura entre URSS e Iugoslávia em 1948, e depois a
invasão soviética da Hungria e da Tchecoslováquia, os
conflitos intensos, as quase-guerras ou as guerras propriamente ditas que
surgem entre URSS e China, China e Vietnã e Vietnã e Camboja,
tudo isso revela como é difícil a necessária obra de
conciliação do internacionalismo (o universal) com o respeito dos
interesses, das identidades, das sensibilidades nacionais (o particular). O
Partido Comunista Chinês
[64]
mencionou esse problema algumas vezes em seus melhores momentos; quanto ao
marxismo ocidental, este quase sempre leu esses conflitos de modo estereotipado
como choques entre despotismo estalinista e espírito libertário,
entre burocracia e massas, ou entre coerência revolucionária de um
lado e oportunismo ou revisionismo de outro, ou ainda, de modo mais apressado,
como demonstração do estranhamento substancial de ambas as partes
em luta pelo "autêntico" socialismo e marxismo.
Por fim, o marxismo ocidental desfrutou de sua distância do poder como
uma condição privilegiada ou exclusiva para o desenvolvimento das
potencialidades críticas da teoria de Marx. Mas se por um lado a
distância do poder e o desdém diante do poder podem ofuscar a
lucidez do olhar, por outro podem turvar a visão, tornando mais
difícil a compreensão dos conflitos mundiais, favorecendo uma
atitude idealista e, em última análise, a fuga da
história. Só assim pode-se explicar a tese de Bloch segundo a
qual a revolução burguesa "limitou a igualdade à
igualdade política". Mesmo querendo ocupar-se exclusivamente da
metrópole ocidental, trata-se de uma afirmação
historicamente insustentável: basta pensar na longa
duração da discriminação censitária e sexual.
No conjunto, com o passar dos anos, o marxismo ocidental acabou
involuntariamente representando duas figuras fundamentais da filosofia
hegeliana: na medida em que se satisfaz com a crítica e, aliás,
encontra sua razão de ser na crítica, sem pôr-se o problema
de formular alternativas possíveis e de construir um bloco
histórico alternativo àquele dominante, ele é a
ilustração da sabichonice do dever ser; quando, pois, desfruta da
distância do poder como uma condição da própria
pureza, ele encarna a bela alma. Talvez não seja por acaso que hoje
tenha tanto sucesso no ambiente de esquerda um livro, que desde o título
convida a
mudar o mundo sem tomar o poder
[65]
. A autodissolução do marxismo ocidental se configura aqui como o
abandono do terreno da política e o desembarque na religião.
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Notas
1 NE: o artigo está publicado de acordo com a versão apresentada
originalmente, inclusive a normalização, na obra:
Wie der «westliche Marxismus» geboren wurde und gestorben ist.
In: Erich Hahn, Silvia Holz-Markun (eds.),
Die Lust am Widerspruch. Theorie der Dialektik-Dialektik der Theorie.
Symposium aus Anlass des 80. Geburtstag von Hans Heinz Holz, Trafo, Berlim,
2008, pp. 35-60.
2 Bobbio, 1977, pp. 164, 167 e 280.
3 Mill, 1972, p. 73.
4 Bloch, 1961, p. 157.
5 Bloch, 1961, p. 80.
6 Mao Tsé-tung, 1998, p. 377.
7 Bloch, 1961, p. 7; Mao Tsé-tung, 1998, p. 377.
8 Bloch, 1961, p. 79; Mao Tsé-tung, 1998, p. 379.
9 In: Lacouture, 1967, p. 37.
10
Sostanze infiammabili nella politica mondiale
(1908), In: Lênin 1955-70, vol. XV, pp. 178-9.
11
Primeiro esboço de teses sobre a questão nacional e colonial
(junho 1920), In: Lênin 1955-70, vol. XXXI, p. 162.
12 Togliatti, 1974-84, p. 866.
13 Althusser, 1967, pp. 17-8.
14 In: Althusser, Balibar, 1968, p. 149.
15 Althusser, 1967, p. 06.
16 Nietzsche, 1988, vol. I, p. 117 (
O Nascimento da Tragédia
, 18)
17 Nietzsche, 1988, vol. XII, p. 503.
18 Nietzsche, 1988, vol. XII, p. 491-2.
19 In: Althusser, Balibar, 1968, p. 150.
20 Althusser, 1969, p. 24.
21 Adorno, 1970, pp. 304-5 e 307.
22 Ho Chi Minh, 1969, pp. 75 e 78.
23 In: Lacouture, 1967, pp 39-40.
24 Mao Tsé-tung, 1998, pp. 87-8.
25 Sobre o Direito das Nações à
Autodeterminação (maio de 1914), ver Lênin 1955-70, vol.
XX, p. 416-7.
26 Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado
(1918), In: Lênin 1955-70, vol. XXVI, p. 403.
27 Hardt, Negri, 2002, pp. 133 e 112.
28 Mao Tsé-tung, 1969-75, vol. IV, p. 467 (
A falência da concepção idealista da história,
16 de setembro de 1949).
29 Le Duan, 1969, pp. 61-3.
30 Tronti, 1966, p. 263.
31 Lin Piao, 1969, pp. 61-2.
34 In: Althusser, Balibar, 1968, p. 27.
35 Hegel, 1969-79, vol. V, p. 49.
36 Taureck, 2004, pp.40 e 116.
37 Foucault, 1990, p. 52.
38 Foucault, 1990, p. 169.
39 Cf. Losurdo, 2005a, cap. IV, 2.
40 Foucault, 1990, pp. 62 e 56.
41 Foucault, 1990, p. 63.
42 Foucault, 1990, p. 160.
43 Arendt, 1993, pp. 15-6.
44 Hardt, Negri, 2002. p. 158.
45 In: Logan, 1997 p. 378.
46 Heckscher, 1991, pp. 44 e 298.
47 Losurdo, 2007, cap. VI, 11 e cap. II, 1.
48 Losurdo, 1993, cap. 5, 2 e 7.
49 Hardt, Negri, 2002, pp. 166-7.
50 Strauss, 1998, pp. 43-4.
51 Hardt, Negri, 2002, pp. 352-3.
52 Davis, 1982, p. 33.
53 Sartre, 1967, p. XXII.
54 Arendt, 1983, pp. 65-6.
55 Anderson, 1997.
56 Hardt, Negri, 2002, p. 115.
57 Franklin, 1983, p. 398.
58 Kelley, 1990, pp. 94-6.
59 Kelley, 1990, p. 100.
60 Cf. Losurdo, 2005a, cap. X, 6.
61 Lênin, 1969, p. 89.
62 Mao Tsé-tung, 1998, pp. 379.
63 Deng Xiaoping, 1994, p. 222.
64 Losurdo 2005b, cap. V, 2.
65 Halloway, 2004.
A versão em português encontra-se em
Estudos de Sociologia
, revista semestral do Departamento de Sociologia e Programa de
Pós-Gradução em Sociologia, FCL-UNESP, Araraquara, v.16,
n.30, p.213-242, 2011. Tradução e revisão técnica
de Carlo Alberto Dastoli,
dastoli@uol.com.br
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info/
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