A emancipação e a desemancipação ao longo da história (2)

Domenico Losurdo [*]
entrevistado por Victor Neves

Cartoon, autor desconhecido.

Novos Temas: Como sabemos, à extensão do direito de voto, que foi consequência das lutas emancipatórias levadas a cabo ao longo do século XX, correspondeu o enfraquecimento das possibilidades reais de participação popular no exercício do poder político. Poderíamos afirmar que a ideia de transformar as lutas populares em uma socialização efetiva do poder não funcionou? Se sim, porquê?

Domenico Losurdo: Devo sublinhar um ponto que me parece muito importante: mesmo com a desemancipação, não ocorre o simples retorno ao status quo ante, à situação anterior. Seria falso pensar que a contrarrevolução implica na reprodução da situação anterior à revolução. Ou seja, devemos compreender o confronto entre emancipação e desemancipação de maneira dinâmica trata-se duma situação que não pode ser compreendida estaticamente. Gramsci, pensando na dialética entre revolução e restauração em seguida à Revolução Francesa, explicava que a Restauração não é o restabelecimento do antigo regime no sentido estrito do termo. Mesmo a Restauração é obrigada a fazer certas concessões, suas possibilidades de vencer dependem dessas concessões. Se pensarmos na Restauração clássica, os camponeses que haviam recebido a terra não foram todos expropriados dela, essa “restauração integral” não teria sido possível porque a reação das massas teria sido muito violenta. Posso dar outro exemplo, entre muitos possíveis: no início do regime fascista, Mussolini pensou em estabelecer o “sufrágio plural”. Esse tipo de sufrágio é sugerido por um autor liberal clássico, John Stuart Mill, que sustenta que mesmo que todas as pessoas tenham o direito de votar, as diferenças de inteligência põem a exigência de uma diferenciação entre os pesos dos votos.

Assim, segundo esse autor, os mais inteligentes (que para ele são os industriais e, não sei muito bem porquê, os professores universitários!) deveriam votar duas ou três vezes, tendo direito ao voto plural. Quando Mussolini desejou implementar isso, mesmo os fascistas lhe explicaram que desse modo as massas populares iriam revoltar-se, porque a humilhação em relação aos privilegiados pelo direito de votar mais vezes seria muito clara. Faço referência a esse episódio no Democracia e bonapartismo. Hoje-em-dia, mesmo os neoliberais mais duros como Hayek, que polemizam contra o sufrágio universal (Hayek põe a questão, por exemplo, sobre “porque é que o sufrágio universal é um direito?”) não têm coragem de dizer que se deveria reintroduzir o voto censitário. Eles sabem muito bem que a “reinstauração” dessa discriminação no terreno político significaria a revolução, a revolta generalizada. Isso mostra que a desemancipação, no terreno político, se manifesta de uma forma mais soft, mais flexível.

O que se passa hoje é que, com o monopartidarismo competitivo, o poder da riqueza tornou-se ainda mais forte que antes. As classes subalternas encontram-se numa situação de impotência política. Na Itália, por exemplo, com a dissolução do PCI, elas não são mais representadas no Parlamento. Em certas situações de crise, quando se busca concentrar o poder político sobre o poder executivo, podemos falar num “bonapartismo soft”. Entretanto, hoje devemos compreender esse “bonapartismo soft” em ligação com o monopartidarismo competitivo, que permite à burguesia monopolizar o poder político em sua substância, de modo que, em situações de crise mais aguda, é o presidente que toma as decisões mais importantes. É, por exemplo, o caso dos Estados Unidos, onde se pode falar com Schlesinger Jr. de uma “presidência imperial”, já que é o presidente que decide em matéria de guerra.

Tudo isso, entretanto – e aqui é necessário ver claramente –, não é um restabelecimento de situações anteriores, e é por isso que nós devemos desenvolver novos métodos de luta a partir da análise concreta de situações concretas.

NT: Sua resposta nos conduz a uma nova questão. O senhor põe, dum lado, as conquistas democráticas como parte da emancipação, como ganhos emancipatórios, e, de outro lado, neoliberalismo e seu livre mercado com demonstrações de um processo de desemancipação. Essa posição remete a uma outra, muito forte hoje-em-dia nos meios da esquerda, que consiste em afirmar que o aprofundamento da democracia seria incompatível com o livre mercado. Entretanto, permita-me apresentar uma interpretação um pouco diferente do problema:   a forma política “um homem, um voto” repousa sobre a aceitação da regra de que cada indivíduo deva tornar as decisões por si mesmo, ou seja, isolado dos outros – por exemplo, numa cabine de votação inviolável. Não seria essa forma ela mesma a expressão política mais bem acabada do mercado, na medida em que cada indivíduo toma somente por si mesmo a decisão, escolhendo entre os “produtos” propostos aquele no lugar deste, isolado – em sua esfera privada – da interferência do público? Compreendida desse modo, a democracia baseada sobre o sufrágio individual não seria ela mesma a forma política mais compatível com o mercado?

Domenico Losurdo: A minha abordagem do problema seria um pouco diferente, e isso relaciona-se com a minha ideia da democracia enquanto tal. Em primeiro lugar, devemos constatar o seguinte: se tomamos os Partidos Comunistas, por exemplo, eles fazem sempre referência a esse sistema de “um homem, um voto”, e eles são contra o capitalismo e o neoliberalismo. Nós não devemos ter nostalgia de outras formas políticas e de outros sistemas. Nosso problema não é o de inventar um sistema novo, ou de retornar a um antigo, já que o princípio “um homem, um voto” tornou-se parte integrante da consciência universal. Se posso me exprimir de maneira hegeliana, esse princípio hoje já se tornou parte de uma “segunda natureza”, ou seja, ele está tão enraizado que não pode mais ser colocado em questão. Mesmo no plano metodológico, não vejo outra possibilidade.

Mas isto não é, de modo algum, um reconhecimento do caráter democrático da democracia burguesa. Isso porque o problema da democracia tem muitos aspetos, dos quais o principal talvez seja aquele ligado à dimensão internacional, das relações entre as nações. Por exemplo: hoje todos falam de Gaza (infelizmente por razões trágicas), e lá o Hamas chegou ao poder através de eleições democráticas. Em seguida a isso, como a população de Gaza havia votado de maneira “errada” do ponto de vista das potências imperialistas, a região foi submetida a um bloqueio, à agressão e mesmo à guerra mais terrível. Neste caso, onde está a democracia?

Sobre o mesmo problema, se alguém me pergunta: “o senhor, Domenico Losurdo, defende ou não o multipartidarismo em Cuba”? Eu respondo resolutamente: “Não”! E porquê? Seria eu contra a democracia? Não, e na verdade é justamente o contrário: defendo essa posição porque acredito firmemente na democracia. Imaginemos o cenário. Diversos partidos em Cuba, numa situação que o poder multimedia dos Estados Unidos é avassalador. Não haveria sombra de possibilidade real de uma competição mediática e económica justa (fair). Mas, sobretudo, devemos acrescentar outro elemento: como se pode considerar democráticas eleições fundadas sobre a chantagem, sobre as ameaças da parte da única superpotência do mundo, como, por exemplo, “se vocês votam como eu recomendo, suspende-se o embargo, mas se votam mal sofrem o embargo mais terrível e a possibilidade permanente de agressão militar”, o quadro é claro: o imperialismo torna a democracia impossível.

Quanto a esse ponto, é possível acrescentar ainda um elemento, derivado da leitura dos clássicos da tradição liberal, como, por exemplo, Alexander Hamilton. Às vésperas do estabelecimento da Constituição Federal que reforçaria muito o poder central nos Estados Unidos, em 1787, ele está engajado em vencer seus compatriotas a votar pela Constituição, afirmando que, se não fosse constituído um Estado Federal – e, portanto, se houvesse uma pluralidade pequenos Estados naquela região –, nesse caso, devido à preocupação por parte de cada um dos Estados de vir a ser agredido, o absolutismo europeu acabaria por chegar mesmo aos Estados Unidos, com cada um daqueles pequenos Estados preocupado em salvaguardar sua soberania.

Hamilton compreendeu muito bem que a rule of law, o governo da lei, supõe uma situação de tranquilidade geopolítica. Ele pressupõe uma situação em que não há perigo de guerra ou de agressão. Portanto, não se deve afirmar que a democracia, a fórmula “um homem um voto” é falsa, mas apenas que a democracia se torna impossível com o imperialismo. Há uma situação de insegurança geopolítica espalhada pelo mundo, com as bases militares norte-americanas presentes em todo canto, e os Estados Unidos tornam impossível a democracia que eles tanto afirmam defender.

Quanto a isso, podemos mesmo citar um presidente dos Estados Unidos. Franklin Delano Roosevelt afirma, no seu célebre “Discurso das Quatro Liberdades”, o direito de viver ao abrigo do medo (“freedom from fear”) como direito essencial. Ele polemizava contra Hitler nesse momento, mas a polémica é válida hoje contra os Estados Unidos, que aboliram o direito de viver ao abrigo do medo para o mundo inteiro!

Em segundo lugar, se há uma desigualdade esmagadora no tocante à riqueza, não haverá possibilidade de liberdade política. Esse é um elemento de que não nos devemos esquecer e que também foi discutido pelos clássicos do pensamento político – veja que nesse contexto eu não cito Marx e Engels, mas somente os liberais. Tomemos um autor liberal como Benjamin Constant. Qual é seu argumento para justificar a discriminação censitária e defender que os trabalhadores não tenham direito de votar? Constant afirma que se o patrão pode demitir o trabalhador ou não empregá-lo, colocando-o em situação de desemprego, isso quer dizer que ele controla a vida do trabalhador. Ora, esse último encontra-se assim sob o controle de alguém, não sendo propriamente livre. Então, não sendo livre, não deve ter direito a votar. É claro que poderíamos tirar outras conclusões desse raciocínio: por exemplo, que a condição de servidão do trabalhador em relação ao patrão deveria ser eliminada.

Finalmente, gostaria de apontar para um último aspeto do problema, mesmo se corro o risco de transformar esta exposição num percurso um pouco longo. Já afirmei que sem uma situação de tranquilidade geopolítica não é possível realizar a democracia. Citei mesmo Roosevelt, que explica que sem a “freedom from fear” não há a possibilidade de realizar a democracia. Também assinalei que em situações de desigualdade esmagadora não é possível realizar a democracia. Mas é necessário trazer à baila ainda uma questão: o que se passa quando não estamos numa situação “normal”? O que é que se passa quando estamos “fora do normal”, em situação de grave crise política? Para responder, vou citar, pela última vez neste contexto, mais um autor liberal: Adam Smith, o grande clássico da Economia Política, o autor de A Riqueza das Nações. Na segunda metade do século XVIII, ele escreveu uma obra que tem de ser conhecida por quem se dedica a pensar o tema, as Lições sobre a jurisprudência. Estamos às vésperas da Revolução Americana, ele é contrário à escravidão (e devemos dar-lhe o devido crédito por essa posição) e se coloca a seguinte questão: “de que modo podemos abolir a escravidão”?

Smith pensa na situação da América do Norte num contexto em que ela ainda está submetida ao poder de Londres – os Estados Unidos ainda não foram fundados. Naquilo que mais tarde serão os Estados Unidos havia, nesse momento, o autogoverno (“self government”), ou seja:   o governo dos organismos representativos como os parlamentos locais, que eram evidentemente controlados por proprietários de escravos, já que ainda havia a escravidão. É justamente nesse contexto que Adam Smith formula uma tese muito interessante para responder àquela questão sobre como se poderia abolir a escravidão. Ele responde na seguinte linha: “não com um governo livre”! Porque os governos livres, nesse caso, são organismos representativos monopolizados por proprietários de escravos, e estes não decidiriam jamais por serem privados da sua propriedade. Nesse caso, todos os amigos da humanidade teriam de preferir um “governo despótico”, porque somente este poderá libertar os escravos.

Qual o fundamento do raciocínio de Adam Smith? Ele está convencido de que a liberdade é um valor universal, e também da bondade de governos livres. Mas, nessa situação concreta, ele compreende que é forçoso escolher entre o governo livre concretamente monopolizado por proprietários de escravos e a libertação dos escravos. Nesse caso, onde a liberdade dos proprietários de escravos está em contradição flagrante com a liberdade dos negros, Adam Smith defende o despotismo, um despotismo que obrigue em certo lapso de tempo os proprietários de escravos a renunciar à sua “propriedade”.

É isso a história universal. Ainda quanto a esse problema, devemos nos lembrar de que foi sob a ditadura militar exercida por Lincoln que a escravidão negra foi finalmente abolida nos Estados Unidos! Portanto, mesmo se sou contra ditaduras militares, sou obrigado a reconhecer que, nesse caso concreto, uma delas desempenhou um papel progressivo.

Vemos assim que há certos casos concretos na história em que a escolha não é entre despotismo e liberdade, mas entre diferentes liberdades em conflito. Nessas situações, podemos falar de um conflito de liberdades. No caso concreto sobre o qual venho de discorrer, havia um desses conflitos de liberdades, não existindo ali a possibilidade concreta de escolher entre liberdade e despotismo, mas apenas entre, de um lado, medidas despóticas contra os proprietários de escravos e, de outro, a aceitação do despotismo dos proprietários de escravos sobre sua propriedade, sobre seus escravos. Mesmo a história do socialismo é, em grande parte, a história de um conflito de liberdades provocado, no mais das vezes, pelo imperialismo e pelas agressões imperialistas.

NT: Mas, nessa conjuntura em que o senhor afirma que a democracia se tornou uma “segunda natureza”, será que combinar de modo indiferenciado a luta pela emancipação humana à luta pela ampliação da democracia não pode acarretar prejuízos à classe trabalhadora? Hoje, por exemplo, destacados pensadores de esquerda vêm afirmando que certos resultados da luta pela ampliação de direitos, à primeira vista positivos, contribuíram para a captura nos marcos da ordem burguesa de importantes movimentos que outrora lutaram pela emancipação, aprisionados nos limites de uma lógica contraditória: conquista de direitos, sim, mas apenas até o ponto em que as classes dominantes aceitaram concedê-los, amarrados por laços restritivos e corporativos e purificados de intenções de rutura com a ordem vigente. O que pensa o senhor dessa posição?

Domenico Losurdo: A resposta para esse problema não está em renunciar à luta pela democracia, nem em subestimá-la. Trata-se aqui de compreender a democracia em seu sentido verdadeiro e, para isso, deve-se pensar, como já mostrei noutra resposta, na dimensão internacional. Por exemplo: é ridículo pensar no problema da democracia em Cuba sem considerar o embargo enquanto expressão da tentativa dos EUA de exercer o direito de vida e de morte sobre um povo inteiro. Ou seja, devemos considerar os diversos aspetos e as diversas dimensões dos problemas ligados à democracia. Devemos também ter em conta outro aspeto do pensamento de Marx: a sua preocupação não é apenas com a solução da questão social. Marx mostra-nos, por exemplo, no Manifesto do Partido Comunista, que devemos examinar o problema da liberdade a partir da esfera da produção, onde tem lugar o despotismo mais explicito. Se analisarmos o mundo capitalista de hoje, veremos que a liberdade conheceu uma restrição muito grave devida a diversas razões, corno a precarização, o desemprego, a competição entre os trabalhadores... Por tudo isso, a luta pela democracia é falsa apenas se aceitarmos a visão burguesa e capitalista da democracia. Se não a aceitamos, temos de chegar à conclusão de que hoje-em-dia o inimigo mais encarniçado da democracia e dos direitos humanos é o capitalismo e o imperialismo.

NT: Existem hoje no mundo certos Estados que se reivindicam socialistas, como a China, a Coreia do Norte, Cuba e o Vietname. Qual o papel de cada um desses Estados na luta pela emancipação? E do conjunto desses países? O que pensa dos ataques frequentes contra esses Estados por parte dos grandes meios de comunicação dos países capitalistas? É possível encontrar relações entre esses ataques e medidas de sanção económica atualmente em curso contra algum desses países?

Domenico Losurdo: Vou começar a responder-lhe a partir de Kant, fim do século XVIII, com a Revolução Francesa em processo, estoura a guerra contrarrevolucionária conduzida pelos Estados do Antigo Regime contra a França. As coligações contra a França revolucionária são frequentemente dirigidas pela Inglaterra, que se declara liberal. Kant, polemizando com a Inglaterra liberal, coloca uma questão:   “em que circunstâncias se pode afirmar que um governo é despótico”? Ele responde que um governo é despótico se pode declarar a guerra sem controle. Isso quer dizer que, se um governo pode declarar a guerra de modo soberano e livre de outros controles, ele é despótico, e daí Kant conclui o governo da Inglaterra, que se pretendia liberal, era um governo despótico.

Hoje, quando o Ocidente, e, sobretudo, seu país-guia, os Estados Unidos pretendem declarar guerras de maneira soberana e mesmo sem a autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas, eles procedem de modo despótico. Eles são os déspotas de nossa época...

Mas não há somente a guerra. Em diversos de meus livros eu cito um artigo publicado há alguns anos na revista Foreign Affairs, muito próxima do Departamento de Estado dos Estados Unidos (uma fonte que não pode em hipótese alguma pode ser apontada como “de esquerda”!), que mostra que as sanções decididas pelo Ocidente e, sobretudo, pelos Estados Unidos – por exemplo, contra o Iraque, sob o argumento da luta contra as armas de destruição em massa, que hoje o mundo todo sabe que era falso, que o Iraque simplesmente não possuía as tais armas –, provocaram mais mortos ao longo da história do que todas as armas de destruição em massa somadas. No Iraque de Saddam Hussein, por exemplo, essas sanções provocaram centenas de milhares de mortes entre a população civil. Ou seja: tais sanções não são apenas guerra, mas uma modalidade de guerra particularmente bárbara e indiscriminada. E, se elas são decididas pelo Ocidente de modo soberano, temos mais uma vez uma situação de guerra decidida unilateralmente, ou um caso de despotismo.

Podemos também considerar o caso de Cuba e a sua relação com os Estados Unidos. Trata-se da relação entre uma superpotência que quer ser despótica – e que o é em suas atitudes – e um país que luta por sua liberdade. Mesmo se abstraíssemos do regime socialista em Cuba, a luta cubana já seria uma luta por sua liberdade e deveria servir de exemplo para o mundo todo. Isso nos conduz a outra questão:   porque é que nos últimos tempos as sanções decididas pelos Estados Unidos se tornaram um pouco menos assassinas? Isso não tem nada a ver com um suposto abrandamento do imperialismo... A chave para a resposta é o desenvolvimento tecnológico da China.

Esse desenvolvimento foi de tal maneira prodigioso que, por exemplo, as tentativas dos Estados Unidos de reduzir Cuba à inanição fracassaram graças à relação comercial entre Cuba e a China (e também entre Cuba e Venezuela). Portanto, seja Cuba, seja a China, desempenham um papel muito importante para a liberdade e para a democratização das relações internacionais. É por que a China e Cuba resistiram tão bem ao imperialismo? Nesse caso, o regime social interno, o socialismo, é a chave para a resposta. Mao e, depois dele, Deng Xiaoping já afirmava que somente o socialismo poderia salvar a China, e Castro sempre disse o mesmo sobre Cuba, vindo dessa compreensão a afirmação da alternativa “socialismo ou morte”, e mesmo daquela “pátria ou morte”.

Tudo isso me obriga agora a tocar no ponto da pretensa “restauração do capitalismo na China”. Em primeiro lugar, devo dizer que para mim tal afirmação parece muito académica. Para que se compreenda o que quero dizer com isso, pode ajudar estabelecer certos paralelos com a história da Rússia soviética. Se tomarmos os primeiros 15 anos da Rússia soviética – da Revolução de Outubro até 1932 – veremos que, no esforço para construir uma sociedade pós-capitalista, tivemos aí três sistemas diferentes:   no início, o comunismo de guerra; após alguns anos, a NEP, que tornou possíveis certas formas de propriedade capitalista nas cidades; e, depois, com a vinda do perigo de guerra mais agudo, a coletivização total sob Stalin. Temos então três sistemas sociais diferentes, mas todos pós-capitalistas, ainda que haja contradições entre um e outro.

Agora devemos considerar a história da China, que é um pouco diferente... Em primeiro lugar, o Partido Comunista Chinês já exercia o poder antes de sua conquista no nível nacional. Ele havia começado a exercê-lo em nível regional já a partir dos anos de 1920, ou seja, vinte anos antes de sua tomada ao nível nacional. Quando Edgard Snow visita a “China Soviética”, as “regiões libertadas” da China governadas pelo poder comunista, ele descreve empresas cooperativas públicas, estatais, privadas. Tudo misturado, ali a situação já era essa, e durante a Revolução Cultural nunca houve a estatização completa.

Para compreender essa característica da China comunista, podemos citar Mao Zedong. Nos anos de 1950, um pouco depois da conquista do poder, ele propôs a distinção entre a “expropriação política” e a “expropriação económica” da burguesia. Ele sustentava que os comunistas chineses precisavam conduzir a expropriação política da burguesia até o fim, ou seja, a burguesia não iria ser capaz de exercer nenhum poder político, nenhuma influência real. Entretanto, no que concerne à expropriação económica, seria impossível limitá-la para preservar alguma capacidade burguesa de administração e empreendedorismo. Essa foi a atitude constante do Partido Comunista Chinês e, nesse sentido, podemos ver uma linha de continuidade entre Mao Zedong e Deng Xiaoping.

Na China de hoje, na qual assistimos a uma grande decolagem económica e tecnológica, mesmo se certamente há uma burguesia, ela não exerce o poder, que está integralmente nas mãos do Partido Comunista. E digo mais: a China pôde realizar tantas conquistas formidáveis no plano tecnológico somente na medida em que se abriu ao mercado mundial, porque a tecnologia – sobretudo após a queda da URSS – se havia tornado monopólio das potências ocidentais. Mas a China, ao mesmo tempo em que se abriu, sempre controlou o seu mercado interno com as empresas estatais, que desempenham um papel fundamental.

(continua)

2º sem. 2014

Losurdo em resistir.info:
  • O que se passa na Síria?, Domenico Losurdo
  • As trombetas das classes dominantes e os sinos das classes subalternas, Domenico Losurdo
  • A esquerda ausente, Domenico Losurdo
  • A suposta "não violência" do Dalai Lama é desmentida pela CIA, Domenico Losurdo
  • [*] Filósofo (1941-2018). Ver Wikipedia e domenicolosurdoinfobrasil.blogspot.com

    O original encontra-se na revista Novos Temas, nº 11, publicada em S. Paulo pelo Instituto Caio Prado Jr.

    Esta entrevista encontra-se em resistir.info

    08/Dez/24