Uma impostura criminosa
Mesmo uma leitura rápida da resolução 1973 de 17 de
Março, com a qual foi decidida a "zona de interdição
de voo" contra a Líbia, é suficiente para encontrar uma
violação gravíssima da Carta das Nações
Unidas, além da do direito internacional geral.
O vento de revolta que sopra sobre os países do Maghreb e do Mashrek, da
Tunísia à Líbia, ao Egipto, ao Iémen e ao Bahrein,
não anuncia uma nova Primavera para as populações
árabe-muçulmanas. A liberdade, a democracia, a justiça, um
mínimo de bem-estar são um sonho ainda muito longínquo. Os
seus inimigos são poderosos. A guerra que desencadearam ante ontem os
aliados europeus, França e Grã-Bretanha, com os Estados Unidos
contra a Líbia é a prova da sua vontade de por sob o seu controle
a área mediterrânica, todo o Golfo e, em perspectiva, a
África.
A exaltação dos direitos humanos, a garantia da segurança
e da paz, são pura retórica, uma enésima impostura
sanguinária após as agressões trágicas contra o
Iraque e o Afeganistão e após os massacres que o Estado de Israel
aliado muito estreito dos EUA efectua e continua a efectuar
contra o povo palestino.
Os Estados Unidos, desta vez numa confusão aberta com seus aliados e
provavelmente no interior da sua própria administração,
tentam com grande esforços esconder a sua vocação
neo-colonial e neo-imperial sob o hábito da enésima
intervenção humanitária. A violação
desenvolta da Carta das Nações Unidas e a
utilização oportunista do Conselho de Segurança das
Nações Unidas são a prova da sua irreprimível
vontade de poder. Repete-se à letra o modelo da agressão
criminosa da NATO contra a Sérvia em 1999, desejada pelo presidente
Clinton para a "libertação" do Kosovo. Tratou-se de uma
intervenção "humanitária" que massacrou, a
partir do céu, milhares de pessoas inocentes. Mesmo uma leitura
rápida da resolução 1973 de 17 de Março, com a qual
foi decidida a "zona de interdição de voo" contra a
Líbia, é suficiente para encontrar uma violação
gravíssima da Carta das Nações Unidas, além da do
direito internacional geral. A violação da Carta é
evidente se se pensa que a cláusula 7 do artigo 2 estipula que
"nenhuma disposição do presente Estatuto autoriza as
Nações Unidas a intervirem em questões que pertencem
à competência interna de um Estado". É portanto
indiscutível que a "guerra civil" da competência interna
da Líbia não é um acontecimento de que o Conselho de
Segurança se possa ocupar militarmente.
Além disso, o artigo 39 da Carta das Nações Unidas
prevê que o Conselho de Segurança pode autorizar a
utilização da força militar só após ter
verificado a existência de uma ameaça internacional à paz,
uma violação da paz ou um acto de agressão (da parte de um
Estado contra outro Estado). Trata-se portanto de uma segunda razão,
absoluta, que torna criminoso o massacre de pessoas inocentes que os
voluntaristas aliados europeus e os Estados Unidos se preparam para fazer na
Líbia. E cobre de vergonha o governo italiano empenhado, com as suas
bases e seus aviões militares, em contribuir para derramar o sangue de
povo de que ele enfaticamente declarava-se amigo até às
últimas semanas. Já não há qualquer sentido em
servir-se como o faz em várias ocasiões a
resolução 1973 do Conselho de Segurança da dita
"responsabilidade de proteger"
(Responsability to protect).
Trata-se da muito contestada resolução 1674 de 28 de Abril do
Conselho de Segurança. Em caso de violação grave
confirmada dos direitos humanos por parte de um Estado, o Conselho de
Segurança sustenta-se pode declarar que se trata de uma
ameaça à paz e à segurança internacional. E pode
assim adoptar todas as medidas militares que julgar oportunas. Não
há necessidade de gastar muitas palavras para argumentar que o Conselho
de Segurança não é competente para dar origem a novas
normas de direito internacional. E também é evidente que a
"guerra civil" interna na Líbia não representava e
não representa uma ameaça à paz e à
segurança internacional, como de resto cinco membros do Conselho de
Segurança (Alemanha, Rússia, Índia, China e Brasil)
sustentaram implicitamente ao recusar votar a favor da resolução.
Além disso, estes deploraram a agressão que a França,
Inglaterra e Estados Unidos desencadearam contra a população
líbia em nome da vigilância sobre os direitos humanos. Assim como
a Liga Árabe que sustentou que, de qualquer modo, seu objectivo é
"salvar os civis e não matar outros". Doravante é
evidente que outras vias podiam ser tomadas para a busca de uma
mediação e para uma solução do conflito.
Até há pouco tempo estávamos convencidos de que os Estados
Unidos haviam mudado de rosto graças ao novo presidente Barack Obama.
Mas actualmente estamos certos de que o rosto não basta e que pode mesmo
servir de máscara, como mostram a continuidade da guerra no
Afeganistão, o silêncio aquiescente sobre o desastre do povo
palestino, o encerramento falhado apesar de prometido de
Guantanamo. Tudo a propósito de direitos humanos.
Nada mudou na estratégia hegemónica dos Estados Unidos e isso
terá consequências muito graves exactamente em
relação ao povo líbio que pareceu querer salvar-se da
violência de um ditador. É fácil prever que a guerra
não cessará enquanto Kadafi não for feito prisioneiro ou
morto (tal como o líder iraquiano Saddam Hussein foi enforcado pela
vontade do presidente dos Estados Unidos George W. Bush). E também
é fácil prever que, acaba a guerra, os Estados Unidos
exercerão o seu poder para garantir o controle da Líbia ou
do "Estado" da Cirenaica, tal como controlam hoje militarmente e
estrategicamente o Kosovo para explorar seus recursos energéticos
muito ricos, tal como ocorreu no Iraque.
Esta é, e será, a "guerra justa" do Mediterrâneo
de Barack Obama e da "falcoa" Hillary Clinton.
[*]
Professor de filosofia do direito internacional na Universidade de
Florença e director do
Jura Gentium Journal, Rivista di filosofia del diritto internazionale e della politica globale.
O original encontra-se em
il manifesto
, edição de 22/Março/2011. A versão em
francês em
http://www.legrandsoir.info/Une-imposture-criminelle.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|