A Líbia, a África e a Nova Ordem Mundial
Carta aberta aos povos da África e do mundo
"Carta assinada por mais de 200 africanos eminentes, incluindo Jesse
Duarte, membro executivo nacional do African National Congress (ANC), o
analista político Willie Esterhuyse da Universidade de Stellenbosch, o
antigo ministro da inteligência Ronnie Kasrils, o jurista Christine
Qunta, o antigo vice-ministro dos Negócios Estrangeiros Aziz Pahad, o
antigo ministro na presidência Essop Pahad, Sam Moyo do African Institute
for Agrarian Studies, o porta-voz do ex-presidente Thabo Mbeki, Mukoni
Ratshitanga e o poeta Wally Serote".
Concerned Africans Criticise Nato
, 24/Agosto/2011
Nós, os signatários, somos cidadãos comuns da
África que estão imensamente aflitos e irados por companheiros
africanos estarem e terem sido sujeitos à fúria da guerra por
potências estrangeiras, as quais repudiaram claramente a nobre e muito
relevante visão corporificada na Carta das Nações Unidas.
Nossa acção ao emitir esta carta é inspirada pelo nosso
desejo, não de tomar partido mas sim de proteger a soberania da
Líbia e o direito do povo líbio de escolher seus líderes e
determinar o seu próprio destino.
A Líbia é um país africano.
Em 10 de Março, o
Conselho de Paz e Segurança da União Africana
adoptou uma
importante Resolução (3) a qual explanava o roteiro para tratar o
conflito líbio, consistente com as obrigações da
União Africana (UA) sob o Capítulo VIII da Carta da ONU.
Quando o Conselho de Segurança da ONU adoptou a sua
Resolução 1973
, estava consciente da decisão da UA a qual fora anunciada sete dias
antes.
Ao decidir ignorar este facto, o Conselho de Segurança mais uma vez e
conscientemente contribuiu para a subversão do direito internacional bem
como para a impugnação da legitimidade da ONU aos olhos do povo
africano.
De outras formas desde então, ele ajudou a promover e fortalecer o
processo imensamente pernicioso da marginalização internacional
da África mesmo em relação à
resolução dos problemas do continente.
Contrariando as disposições da Carta da ONU, o Conselho de
Segurança da ONU declarou a sua própria guerra à
Líbia em 17 de Março de 2011.
O Conselho de Segurança permitiu-se ser informado [apenas] por aquilo
que o
International Crisis Group (ICG) no
Relatório de 6 de Junho de 2011 sobre a Líbia
caracteriza como o "mais sensacional relato de que o
regime estava a usar a sua força aérea para massacrar
manifestantes".
Sobre esta base ele adoptou a Resolução 1973 a qual mandatava a
imposição de uma "zona de interdição de
voo" sobre a Líbia e resolveu "tomar todas as medidas
necessárias ... para proteger civis e áreas populadas por civis
sob ameaça de ataque na Jamahiriya Árabe Líbia".
Portanto, em primeiro lugar, o Conselho de Segurança utilizou a
questão ainda não resolvida no direito internacional do
"direito a proteger", o chamado R2P, para justificar a
intervenção militar na Líbia sob o Capítulo VII.
Neste contexto o Conselho de Segurança da ONU cometeu uma lista
interminável de ofensas as quais enfatizaram a ulterior
transformação do Conselho num instrumento aquiescente dos mais
poderosos dos seus Estados Membros.
Portanto o Conselho de Segurança não produziu evidência
para provar que a sua autorização da utilização da
força sob o Capítulo VII da Carta da ONU era resposta
proporcionada e adequada para o que na realidade se havia desenvolvido na
Líbia: uma guerra civil.
Ele então procedeu à terciarização
(outsource)
ou sub-contratação da implementação das suas
resolução à NATO, mandatando esta aliança militar
para actuar como uma "coligação das vontades".
Ele não estabeleceu qualquer mecanismo e processo para supervisionar o
"sub-contratado", para assegurar que ele honrasse fielmente as
disposições das suas Resoluções.
Ele não fez qualquer esforço de outras formas para monitorar e
analisar as acções da NATO a este respeito.
Ele permitiu o estabelecimento de um legalmente não autorizado
"Grupo de Contacto", mais uma "coligação das
vontades", o qual deslocou-o como a autoridade que tinha a
responsabilidade efectiva de ajudar a determinar o futuro da Líbia.
Para confirmar esta realidade inaceitável, a
reunião de 15 de Julho de 2011 do "Grupo de Contacto", em Istambul
, "reafirmou
que o Grupo de Contacto permanece a plataforma adequada para a comunidade
internacional a fim de ser um ponto focal de contacto com o povo líbio,
coordenar a política internacional e ser um fórum para
discussão de apoio humanitário e pós conflito".
Devidamente autorizado pelo Conselho de Segurança, as duas
"coligações de vontade", a NATO e o "Grupo de
Contacto", efectivamente e praticamente reescreveram a
Resolução 1973.
Dessa forma eles concederam-se poderes a si próprios para abertamente
prosseguir o objectivo da "mudança de regime" e portanto para
a utilização da força e de todos os outros meios para
derrubar o governo da Líbia, objectivos completamente em desacordo com
as decisões do Conselho de Segurança da ONU.
Por causa disto, em desrespeito das Resoluções 1970 e 1973 do
Conselho de Segurança da ONU, eles atreveram-se a declarar o governo da
Líbia ilegítimo e a proclamar o "Conselho Nacional de
Transição" baseado em Bengazi como "a autoridade
governante legítima na Líbia".
O Conselho de Segurança deixou de responder à pergunta de como as
decisões tomadas pela NATO e pelo "Grupo de Contacto" tratam a
questão vital de "facilitar o diálogo para levar à
reformas políticas necessárias para encontrar uma
solução pacífica e sustentável".
As acções dos seus "sub-empreiteiros", a NATO e o
"Grupo de Contacto", posicionaram as Nações Unidas como
um partido beligerante no conflito líbio, ao invés de ser um
pacificador comprometido mas neutro posicionando-se de modo equidistante das
facções armadas líbias.
O Conselho de Segurança mais uma vez decidiu deliberadamente repudiar as
regras do direito internacional ao conscientemente ignorar as
disposições do Capítulo VIII da Carta da ONU relativas ao
papel das instituições regionais legítimas.
A guerra de George W. Bush contra o Iraque começou em 20 de Março
de 2003.
No dia seguinte, 21 de Março, o jornal britânico
The Guardian
publicou um artigo abreviado, do eminente neo-conservador estado-unidense
Richard Perle, intitulado "
Graças a Deus pela morte da ONU
".
Mas a arquitectura global pós Segunda Guerra Mundial para a
manutenção da paz e da segurança internacional centrava-se
no respeito pela Carta da ONU.
O Conselho de Segurança da ONU deve portanto saber que, pelo menos em
relação à Líbia, actuou de uma maneira que
resultará, e efectivamente levou, à perda da sua autoridade
moral para presidir sobre os processos críticos de alcançar a paz
global e a realização do objectivo da coexistência
pacífica entre diversos povos do mundo.
Ao contrário das disposições da Carta da ONU, o Conselho
de Segurança da ONU autorizou e permitiu a destruição e a
anarquia na qual desceu o povo líbio.
No fim de tudo isto:
-
muitos líbios morreram e foram mutilados
-
muita infraestrutura terá sido destruído, empobrecendo mais o
povo líbio
-
a amargura e a animosidade mútua entre o povo líbio terá
sido mais fortalecida
-
a possibilidade de chegar a um acordo negociado, inclusivo e estável
ter-se-á tornado muito mais difícil
-
a instabilidade terá sido reforçada entre os países
vizinhos da Líbia, especialmente os países do Sahel africano,
tais como o Sudão, Chade, Níger, Mali e Mauritânia
-
a África herdará um desafio muito mais difícil para
tratar com êxito da questão da paz e da estabilidade e, portanto,
da tarefa do desenvolvimento sustentado
-
aqueles que intervieram para perpetuar a violência e a guerra na
Líbia terão a possibilidade de estabelecer os parâmetros
dentro dos quais os líbios terão a possibilidade de determinar o
seu destino e, mais uma vez portanto, constrangerão o espaço para
os africanos exercerem o seu direito à auto-determinação.
Como africanos baseámos o nosso futuro como actores relevantes num
sistema equitativo de relações internacionais na expectativa de
que as Nações Unidas na verdade serviriam como "fundamento
da nova ordem mundial".
O Relatório ICG a que nos referimos diz:
"A perspectiva para a Líbia, mas também para a África
do Norte como um todo, é cada vez mais agourenta, a menos que algum
caminho possa ser encontrado para induzir os dois lados no conflito armado a
negociarem um compromisso permitindo uma transição ordeira para
um estado pós Kadafi, pós Jamahiriya que tenha legitimidade aos
olhos do povo líbio. Uma ruptura política é de longo o
melhor caminho de saída da custosa situação criada pelo
impasse militar..."
Quando Richard Perle escreveu em 2003 acerca do "fracasso abjecto das
Nações Unidas", ele estava a lamentar a recusa da ONU em
submeter-se ao ditado da única super-potência mundial, os EUA.
A ONU tomou esta posição porque era consciente e era inspirada
pela sua obrigação de actuar como uma verdadeira representante de
todos os povos do mundo, consistente com as palavras de abertura da Carta da
ONU "Nós os povos nas Nações Unidas..."
Contudo, tragicamente, oito anos depois, em 2011, o Conselho de
Segurança da ONU abandonou seu compromisso com esta perspectiva.
Punido pela humilhante experiência de 2003, quando os EUA demonstraram
que poder é direito, ele decidiu que era mais conveniente submeter-se
às exigências do poderosos ao invés de honrar sua
obrigação de respeitar o imperativo de defender a vontade dos
povos, incluindo as nações africanas.
Dessa forma ele comunicou a mensagem de que se tornou não mais do que um
instrumento nas mãos e ao serviço dos mais poderosos dentro do
sistema de relações internacionais e portanto do processo vital
do ordenamento pacífico dos assuntos humanos.
Como africanos não temos opção excepto defender e
reafirmar nosso direito e dever de determinar nosso destino na Líbia e
por toda a parte no nosso continente.
Pedimos que todos os governos, por toda a parte do mundo, incluindo a
África, os quais esperam respeito genuíno pelos governados, tais
como nós, actuem imediatamente para afirmar "o direito pelo qual
todas as nações podem viver em dignidade".
Pedimos que:
-
a guerra de agressão da NATO na Líbia cesse imediatamente
-
a UE seja apoiada para implementar seu Plano para ajudar o povo líbio a
alcançar paz, democracia, prosperidade partilhada e
reconciliação nacional numa Líbia unida
-
o Conselho de Segurança da ONU deve actuar imediatamente para
desempenhar suas responsabilidades tal como definidas na Carta da ONU.
Aqueles que hoje trouxeram uma chuva mortal de bombas à Líbia
não deveriam iludir-se a si próprios acreditando que o
silêncio aparente dos milhões de africanos significa a
aprovação da África à campanha de morte,
destruição e dominação que tal chuva representa.
Estamos confiantes em que amanhã emergiremos vitoriosos, apesar da busca
de poder mortal dos mais poderosos exércitos do mundo.
A resposta que devemos dar na prática, e como africanos, é
quando e de que modos actuaremos resolutamente e significativamente para
defender o direito dos africanos da Líbia a decidirem seu futuro e
portanto o direito e o dever de todos os africanos a determinarem o seu destino.
O Roteiro da União Africana permanece o único caminho de paz para
o povo da Líbia.
Esta carta aberta foi publicada primeiramente pelo
Pambazuka News
em 09/Agosto/2011.
Cf. Peace and Security Council of the African Union, "
AU Calls for Inclusive Transitional Government in Libya
" (MRZine, 26 August 2011).
O original encontra-se em
http://mrzine.monthlyreview.org/2011/libya270811.html
Esta carta aberta encontra-se em
http://resistir.info/
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