O que significa uma recuperação económica em "K"
por Jorge Figueiredo
Tempos atrás publiquei o artigo
Crises os desenlaces possíveis
, o qual listava os vários tipos possíveis de saída
de uma crise económica. Ali se menciona a gloriosa saída
"V"
; a deprimente saída
"L"
; a surpreendente e frustrante saída em
"W"
; a preocupante saída em
raiz quadrada
bem como a sua variante, a saída em
raiz ondulante
.
Todas estas tipologias espelham a aparência do fenómeno,
não constituem uma análise muito profunda nem muito
científica pois ignoram a taxa de lucro, a composição
orgânica do capital, o grau de monopolização de uma
economia, a apropriação da mais-valia, a
distribuição da propriedade e a consequente
distribuição do rendimento, a fracção da mais-valia
que vai para o capital financeiro, etc. No entanto, apesar de ser uma
caracterização superficial e sem grande poder explicativo ela tem
poder descritivo. A vantagem de ser facilmente compreensível e
visualizável não é de desprezar. Essa
é uma das razões porque os comentaristas económicos gostam
de utilizá-la.
Entretanto, o actual modo de produção em crise gera sempre
fenómenos novos e surpreendentes. A novidade agora de que se
começa a falar é uma saída em "K". Convém
examiná-la pois mostra uma tendência que talvez esteja em vias de
se consolidar.
A desaceleração da economia capitalista mundial, que já se
vinha verificando desde 2008 (com altos e baixos), em 2020 sofreu uma violenta
travagem com os confinamentos impostos a pretexto da pandemia do COVID-19 e
os consequentes reflexos nas actividades produtivas. Assim, este ano a
única economia do mundo que terá um PIB superior a zero
será a China. Dessa forma, muitos se perguntam que tipo de
recuperação será possível uma vez ultrapassada a
pandemia. Por outras palavras, qual poderá ser a nova
"normalidade".
É aqui que entra a letra "K". O que significa isso? Trata-se
de uma previsão de que a nova normalidade serão economias a duas
velocidades sectoriais. Ou seja, uma eventual recuperação
terá
ganhadores e perdedores. Alguns sectores seriam claramente fortalecidos ao
passo que outros afundariam ou estagnariam.
Neste cenário de duas velocidades, os sectores beneficiados poderiam
continuar a operar com normalidade total. É aqui que se encontram
aquelas actividades económicas que permitem o teletrabalho. Dessa forma,
entre os ganhadores estariam as companhias tecnológicas e de software;
empresas de telecomunicações; os monopólios do
entretenimento como a Netflix; os gigantes da distribuição como a
Amazon, a Ali-Baba, etc. Além disso, a necessidade obter remédios
e vacinas para o Covid-19 deu um grande impulso aos oligopólios da
BigPharma. Outros sectores que não permitem o teletrabalho mas
são indispensáveis, como as empresas de
alimentação, também seriam incluídos no grupo dos
ganhadores.
E quanto à perna descendente do "K", os perdedores? A
recuperação destes será mais difícil e mais lenta.
É o caso das companhias aéreas, agências de viagens, bares,
restaurantes, hotéis e serviços de catering. Trata-se actividades
que exigem maior contacto presencial, o que se pretende evitar em tempos de
pandemia. A implicação disto é que os países em que
o turismo tem maior peso na geração do PIB serão os mais
afectados.
Como a ajuda directa de governos às empresas tenderá a esgotar-se
ao longo do tempo, isto poderá relançar em debate uma ideia
antiga: um rendimento para cada cidadão, ou seja, cada cidadão
passaria a receber um rendimento pelo simples facto de ser cidadão,
independentemente do trabalho que prestasse. Esta proposta já fora
lançada por István Mészáros. Ver por exemplo
Desemprego e precarização
,
Crise dual
e
A única economia viável
.
Esta dualidade nas recuperações tem implicações
péssimas para os trabalhadores. A recuperação dos postos
de trabalho destruídos faz-se lentamente e os trabalhadores menos
qualificados terão mais dificuldade em obter um emprego. E se eles
ficarem fora de uma recuperação isso implicaria um agravamento
das desigualdades sociais e económicas já existentes.
Neste momento milhões de pessoas no terceiro mundo e até no
primeiro correm o risco de cair abaixo do limiar da pobreza. Mas, na verdade,
esta crise não é provocada pela pandemia e sim pelo capitalismo.
Enquanto não for revertido o capitalismo, a ideia de
Mészáros de um rendimento cidadão está na ordem do
dia. Ele deve ser considerada como um direito e não como filantropia.
24/Outubro/2020
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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