A negociação entre os EUA e a resistência iraquiana

por Carlos Varea

Apêlo internacional urgente para salvar os professores iraquianos. "A questão não é, seguramente se os EUA e a resistência militar iraquiana terão de negociar. A questão é se se há de negociar sobre a sobrevivência do processo político e económico patrocinado pelos EUA, ou sobre as condições em que os ocupantes se hão de retirar incondicional e totalmente do Iraque. Indubitavelmente, a primeira condição não se coloca, pelo menos para uma parte substancial da resistência, apesar dos termos do processo terem sido sobre a primeira e não sobre a segunda condição. Aos EUA nada mais resta do que assumir que o que há a negociar com a resistência não é a sua continuidade no Iraque, a substituição de uma ocupação por outra ocupação (uma coisa que ainda tentam conseguir com os colaboracionistas curdo-iraquianos e os religiosos xiitas), sem a sua saída do país. Enquanto isso, a guerra prossegue".

No passado dia 12 de Janeiro, o sítio web al-Moharer.net (juntamente com o al-Basrah [1] , o sítio da Internet reconhecido como o veículo de expressão dos sectores nacionalistas da resistência iraquiana), recolhia as declarações oficiais de um porta-voz de um dos principais grupos armados do Iraque, Jaysh Mohammed, o Exército de Mohammed [2] , formação que, pese a sua denominação (como ocorre com outras organizações da resistência), é essencialmente integrada por ex-militares e militantes Baaz.

Na suas declarações a al-Moharer, o porta-voz de Jaysh Mohammed negava qualquer implicação da sua organização e do comando militar nas supostas negociações entre a resistência iraquiana e os ocupantes, às quais fazem menção, cada vez mais explícita, alguns meios de comunicação internacionais, ocidentais e árabes [3] . Aí, o porta-voz da Jaysh Mohammed recusava as iniciativas de paz recentemente propostas, fora do Iraque mas a partir do campo árabe, concretamente a de Jair al-Din Hasib, fundador e ex-secretário geral do Congresso Nacional Árabe e, actualmente, director do Centro de Estudos para a Unidade Árabe, ambas sediadas em Beirute [4] . "Declaramos e advertimos novamente que ninguém está autorizado a negociar com os ocupantes, excepto a resistência e os seus dirigentes", assinalou o porta-voz desta organização [5] , ao mesmo tempo que negava que a detenção de alguns dos seus dirigentes tivesse debilitado a Jaysh Mohammed:

"Quem tem o controlo [militar] sobre o terreno é quem decide o rumo da revolução armada e é a actuação [da resistência] que trará a libertação do Iraque e não os pequenos serviços prestados, em declarações ou reuniões realizadas, fora do país. A nossa acção, realmente, é que levou os ocupantes ao seu actual e estrondoso fracasso. É por isso que apelamos a todas as forças patrióticas para que sejam cuidadosas e responsáveis nas suas declarações e que evitem misturar os problemas, o que, objectivamente, servirá a ocupação estadunidense."

O porta-voz da Jaysh Mohammed finalizou as suas declarações, dizendo:

"Os crescentes rumores sobre os contactos entre as forças de ocupação estadunidenses e algumas facções da resistência, com a interferência de alguns serviços de inteligência árabes neste jogo por pressão dos EUA, bem como as mentiras e a campanha de intoxicação de canais de televisão e de alguns sítios suspeitos da Internet (particularmente o jornal [saudita] editado em Londres, al-Hayat ) nesse sentido, não tem outro objectivo que não seja a deformação dos factos: trata-se de uma táctica para exercer pressão sobre nós e sobre a liderança da resistência, a fim de que aceite negociar à margem das resoluções dos seus dirigentes e da conhecida estratégia de libertação".

"Reiteramos por este meio que, até ao momento presente, a direcção da resistência não autorizou ninguém a contactar ou negociar com o ocupante. Qualquer partido que negoceie com o ocupante sem a autorização da direcção reconhecida da resistência está a colocar-se no campo do inimigo. Anularemos, com determinação e sem vacilar, qualquer iniciativa ou plano que marginalize as principais forças políticas e militares do lado iraquiano."

NEGOCIAR, MAS O QUE?

Como enfatizava o meio de comunicação que as difundiu, estas inéditas declarações da Jaysh Mohammed devem ser consideradas como um claro desmentido do Partido Baaz sobre a sua implicação em negociações com os ocupantes, tal como já havia sido feito pelo seu bureau político, nos comunicados que emite regularmente. Fica claro que, pelo menos um sector da resistência iraquiana, o que se articula, com a participação das correntes nacionalistas e comunistas dissidentes do anterior regime (a Aliança Patriótica Iraquiana dirigida por al-Kubaysi, a União do Povo, etc), o que articula com o Partido Baaz e a sua proposta de uma Frente de Libertação Nacional Islâmica [6] , não quer, por agora, ver-se implicado na cada vez mais explicita pretensão dos EUA de iniciar um processo de negociação com a resistência. No entanto, em fins de Dezembro, Salah al-Mujtar, um ex-diplomata iraquiano que foi embaixador do seu país no Vietname, Índia e Nações Unidas, agora exilado no Yémen, que apesar de não ser porta-voz do partido sintoniza com a sua linha oficial, afirmava a disposição do Partido Baaz e da resistência "[...] em negociar [com os EUA] uma solução pacífica para a guerra do Iraque" [7] . Não há aqui contradição: a questão é o que negociar, não que haja negociação.

Enquanto a resistência exige a retirada incondicional dos ocupantes do Iraque, os EUA, numa inflexão de charme, está a tentar abrir um processo de diálogo com os combatentes iraquianos que incorpore estes no processo político imposto por Bremer no Outono de 2003, momento em que a administração Bush pareceu dar-se conta de que o seu projecto de cómodo e hegemónico controlo do Iraque tinha fracassado devido, precisamente, à luta armada. Nesta lógica, devido às eleições de Dezembro passado, inicialmente tinham-se envolvido grupos armados das correntes sunitas que gravitam à volta do Partido Islâmico [8] , organização de novo totalmente implicada – esteve-o no início da ocupação – no processo promovido pelos EUA. Sublinhe-se que, inclusivamente, participou há semanas nas negociações para a formação do novo governo, e cedeu ao encerrar a polémica sobre a amplitude da fraude eleitoral.

O chamariz que administração Bush utiliza para chamar a atenção da resistência civil, política e militar inclui as duas principais consequências, derivadas da própria ocupação: a penetração no Iraque das correntes taqfiristas (ou anatemizadoras) da Al Qaeda e a hegemonia das formações confessionais xiitas, directamente comprometidas com o Irão [9] . A ser verdade o que foi publicado por al-Watan al-Arabi, a 17 de Dezembro passado, sobre o conteúdo da negociação entre a administração estadunidense e a resistência iraquiana [10] , que inclui, segundo este jornal árabe, também uma representação do Partido Baaz, os EUA estariam a oferecer a reinserção a ex-chefes militares do deposto regime nas novas forças de segurança iraquianas e tinham a intenção de suprimir, ou moderar a lei de desbaazificação que foi incorporada no projecto de nova Constituição, aprovada em Outubro de 2005. Inclusivamente chegou a afirmar-se que os EUA tinham negociado, nestes últimos meses, a cedência de áreas centrais do país à resistência, através de acordos com representantes civis e religiosos locais [11] .

Na sequência desta linha de actuação, os EUA encontraram a oposição frontal das formações agora hegemónicas nas instituições apadrinhadas pelos ocupantes, as confessionais xiitas, que inclusivamente convocaram a 6 de Janeiro uma manifestação em Bagdade, para rejeitar todo e qualquer diálogo com os "terroristas".

MUDANÇA DE RETÓRICA

Os dados confirmam que as primeiras escaramuças, em Novembro passado na província de al-Anbar (na sua própria capital, Ramadi), entre organizações da resistência iraquiana e a rede Al Qaeda de Al Zarqaui [12] no Iraque, estão a estender-se a outras províncias do país, como Diyala e Saladino, no norte ao norte de Bagdade. O próprio porta-voz do Pentágono, general Rick Lynch, dava conta destes confrontos [13] . Já em Janeiro, o anúncio na Internet pela Al Qaeda da criação de um "Conselho de Combatentes" para coordenação de grupos armados marginais, que não incluíam Ansar al-Sunna e outros grupos islamitas sunitas, foi entendido como o prelúdio de uma escalada de confrontos entre a rede de al-Zarqaui e a resistência iraquiana [14] .

Certamente a retórica dos ocupantes, como assinala o correspondente do Christian Science Monitor em Bagdade, Charles Levinson, mudou nas últimas semanas [15] , quando chefes militares e políticos estadunidenses distinguiram uma resistência que já chegam a considerar patriótica e nativa e os terroristas da Al Qaeda, vindos do exterior. O que é verdadeiramente relevante mas nebuloso, é que os porta-vozes da administração Bush começam, pela primeira vez, a incluir explicitamente os baazistas entre os primeiros, a quem os chefes militares dos EUA, desde o início da ocupação e ao longo destes dois anos e meio, atribuíram a responsabilidade fundamental da actividade armada e a sua reconhecida progressão logística, financeira, técnica e de informação. Porter, autor do artigo "Bush procura a ajuda dos seus inimigos no Iraque" traduzido em IraqSolidaridad, situa o ponto de inflexão da posição pública estadunidense na conferência de imprensa do general Lynch, a 8 de Janeiro em Bagdade, quando este evitou classificar a resistência iraquiana de baazista ou fundamentalista, como lhe pedia um jornalista, respondendo que as operações dos EUA no Iraque "...se centram em al Zarqaui e a sua rede" [16] . No entanto, os EUA continuam a desenvolver operações militares em várias zonas do país (a última em Janeiro contra Baji) e cada vez com um carácter mais maciço [17] , bem como iniciativas como o assalto, em Janeiro, à sede da Associação de Ulemas Muçulmanos, em Bagdade [18] , permitem adivinhar que as negociações entraram em ponto morto.

A mudança não é de somenos: está subtilmente avançando, o que desde há muitos meses é um segredo do conhecimento geral: Os EUA querem e estão a tentar negociar com os Baazistas, dentro e fora do Iraque [19] . Além disso, a subtil distinção mantida até agora entre Baazistas e Sadanistas é isso mesmo, uma distinção subtil, dado que no terreno, dentro do Iraque, não houve qualquer ruptura no Partido desde que começou a ocupação e os dissidentes Baazistas e de outras correntes nacionalistas e de esquerda do exílio aceitam a sua hegemonia interna.

SEM CALENDÁRIO DE SAÍDA

Os EUA nunca aceitaram fixar um calendário de saída das suas tropas, uma negativa que faz desconfiar do processo de negociação outros grupos armados islamitas [20] , mesmo que as suas formações políticas continuem a envolver-se no processo político. Os EUA incentivam um confronto directo da resistência com a Al Qaeda e a contenção da hegemonia confessional xiita, pró-iraniana, mas mantendo a sua lógica de dominação estratégica do Iraque. Ao contrário, a preocupação no Iraque de que a deriva social, económica e política pressupõe o depositar de confiança nas correntes fundamentalistas e sectárias é genuína e enorme [21] . E enquanto os ocupantes a consideram um "efeito não desejado" da sua invasão do Iraque, a resistência civil, política e militar iraquiana associa-a, como não pode deixar de ser, à lógica da própria ocupação, e só vê a sua contenção e erradicação associada à saída dos ocupantes.

A questão não é, seguramente, se os EUA e a resistência militar iraquiana terão, um qualquer dia, de negociar, como provavelmente já o fizeram numa primeira aproximação. A questão é se vão negociar sobre a sobrevivência do processo político e económico patrocinado pelos EUA ou sobre as condições em que os ocupantes haverão de se retirar total e incondicionalmente do Iraque. Naturalmente, a primeira alternativa pode dar-se como encerrada, pelo menos para uma parte substancial da resistência, tendo em conta que os termos do processo foram sobre a primeira e não sobre a segunda alternativa. Aos EUA apenas resta assumir que o que há que negociar com a resistência não é a sua continuidade no Iraque e a estabilização da ocupação, mesmo que com outra cara (uma coisa que ainda tentam alcançar com os colaboracionistas sectários curdo-iraquianos e os religiosos xiitas), mas a sua saída do país. Entretanto, a guerra prossegue.

Notas
1- www.albasrah.net
2- www.al-moharer.net
3- Provavelmente, pela primeira vez por parte da revista Time no número de 12/Dezembro/2005: "The New Rules of Engagement", de Michel Ware.
4- Conhecida como Proposta de Princípios para o Diálogo e o Acordo
5- As citações correspondem à tradução do árabe feita para Iraqsolidaridad por Hamoud El Khadiri.
6- Veja-se em Iraqsolidaridad: Reunião da Delegação CEOSI com o Partido Baaz, a União do Povo e a Aliança Patriótica Iraquiana – Projecto de criação da Frente de Libertação Nacional
7- Entrevista com Robert Dreyfuss e publicada em Uruknet: Robertdreyfuss.co.blog
8- Ver em Iraqsolidaridad: Un sector de la resistencia islamista ofrece negociar con EEUU su participación en el proceso. El Congreso Fundacional Nacional Iraquí anuncia que no participará en las elecciones de diciembre y 1.000 días de guerra. Elecciones bajo ocupación: Listas sectarias y fractura en el campo anti-ocupación
9- Ver em Iraqsolidaridad: Gerard Porter: Bush procura a ajuda dos seus inimigos no Iraque
10- Al Fanar, Revista de Imprensa Árabe, 17/Dezembro/2005
11- Paul Martin, "Washington seekspartial truce with Iraqui insurgents", The Washington Times, 21/Dezembro/2005
12- Ver em Iraqsolidariedad: Carlos Varea: "Enfratamientos entre la resistencia y Al Qaeda en Iraq"
13- Al-Jazeera, 19/Janeiro/2006. Além disso, The New York Times de 12/Janeiro/2006, que inclui entrevistas a chefes militares da resistência
14-Al Fanar, Revista de Imprensa Árabe de 16/Janeiro/2006 e Al-Jazeera de 15/Janeiro/2006
"15- US tries to loosen Shiite grip in Iraq", 17/Janeiro/2006
16- Asia Times, 17/Dezembro/2005
17- Ver Iraqsolidaridad: Carlos Varea: Abandonando o terreno – Atacado com mísseis o aeroporto de Basora
18- Ver Iraqsolidaridad: Cinco detidos no assalto à sede, em Bagdade, da Associação de Ulemas Muçulmanos
19- Ver em Iraqsolidaridad: "O importante não é o número de combatentes, mas o número de civis que os apoiam" Uma entrevista com um resistente iraquiano
20- The New York Times, 07/Janeiro/2005
21- Ver Iraqsolidaridad: Encontro da CEOSI com Relações Internacionais da Resistência Iraquiana – A meeting of the Spanish Campaign against Occupation and for the Sovereignt of Iraq and International Relations of the Iraqi Resistence .


O original encontra-se em
http://www.iraqsolidaridad.org/2006/docs/ocup_24-01-06_varea.html
Tradução de José Paulo Gascão.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
31/Jan/06