O testemunho de Yanis Varoufakis esmaga a ele próprio
As negociações secretas e as esperanças goradas de
Varoufakis com a China, Obama e o FMI
No capítulo 11 do seu livro, Yanis Varoufakis explica que interveio para
levar a bom porto a venda do terceiro terminal do Porto do Pireu à
sociedade chinesa Cosco que, desde 2008, geria os terminais 1 e 2. Como
Varoufakis reconhece, o Syriza tinha prometido, antes das
eleições, não permitir a privatização do
resto do porto do Pireu. Varoufakis acrescenta: "
O Syriza fazia campanha desde 2008 não apenas para impedir este novo
acordo, mas para correr completamente com a Cosco
". E acrescenta: "
Eu tinha dois colegas ministros que deviam a sua eleição a esta
promessa
". Varoufakis, apesar de tudo, apressa-se a tentar finalizar a venda
à Cosco. Empenha-se nisso com a ajuda de um dos principais conselheiros
de Alexis Tsipras, Spyros Sagias, que até ao ano precedente tinha sido o
conselheiro jurídico da Cosco. Havia, pois, um manifesto conflito de
interesses no caso de Sagias, o que Varoufakis reconhece (p. 313). Fora,
aliás, a empresa de Sagias que redigira a primeira
convenção com a Cosco em 2008. Sagias também tinha
aconselhado, nos anos 90, o primeiro-ministro PASOK Konstantinos Simitis que
havia organizado a primeira grande vaga de privatizações. Em
2016, depois de ter deixado as suas funções de secretário
do governo Tsipras, Sagias voltou ainda mais ativo ao seu
gabinete de negócios
, nomeadamente ao serviço da Cosco
[1]
. Varoufakis não se abstém de explicar que, no início de
março de 2015, reviu o processo do concurso para corresponder ao que a
Cosco queria: "
Sagias e eu fizemos o ponto da situação com Alexis
(Tsipras)
antes de nos dedicarmos aos preparativos
(da finalização do acordo com a Cosco sobre o Pireu).
O objetivo era reformular o processo do concurso para o Pireu de acordo com as
condições que os chineses tinham aceitado
" (p. 316).
Varoufakis resume assim a proposta que fez a Pequim, por intermédio do
embaixador chinês em Atenas: "
A Grécia possui uma mão-de-obra muito qualificada, cujos
salários diminuíram 40%. Porque não pedir a empresas como
a Foxconn para construir ou reunir instalações num pólo
técnico, beneficiando de um regime de impostos específicos,
não muito longe do Pireu?"
(p. 312). Nesta proposta, encontramos a pequena panóplia dos argumentos
dos governos neoliberais que querem atrair os investidores: uma
mão-de-obra qualificada, cujos salários diminuíram e
presentes fiscais aos patrões.
Varoufakis explica que propôs às entidades chinesas resgatar os
caminhos-de-ferro gregos, para a China ter um acesso mais fácil ao resto
do mercado europeu por via férrea, ficando assim com um elo suplementar
na Nova Rota da Seda. Este último projeto não se concretizou
[2]
].
Varoufakis esperou em vão que Pequim comprasse em março de 2015
títulos do Tesouro gregos
(treasury bills)
num montante de vários milhares de milhões de euros (estava a
contar com um total de 10 mil milhões, p. 315), que o governo iria
utilizar para reembolsar o FMI. Para grande desespero de Varoufakis, os
dirigentes chineses não cumpriram a promessa e contentaram-se com duas
compras de 100 milhões de euros.
As propostas que Varoufakis fez às entidades chinesas são
inadmissíveis: emprestar à China para reembolsar o FMI; abandonar
o controlo da Grécia sobre os caminhos-de-ferro; proceder a outras
privatizações!
O seu projeto fracassou porque as autoridades chinesas e alemãs entraram
em acordo para que a China não oferecesse um balão de
oxigénio ao governo de Tsipras. Varoufakis escreve: "
Berlim tinha ligado para Pequim com uma mensagem clara: evitem comercializar
com os gregos antes de nós termos acabado com eles
" (p. 317).
As empresas chinesas, alemãs, italianas ou francesas
fazendo aquisições a preços de saldos.
Por fim, a concretização do acordo com a Cosco não se fez
enquanto Varoufakis foi ministro. Teve lugar no início de 2016 e em
condições que, segundo ele, eram mais favoráveis à
empresa chinesa do que o pré-acordo que ele tinha tentado realizar (cap.
11, nota 8, p. 516). Isso demonstra que as autoridades chinesas se entenderam
com as autoridades de Berlim; deixaram asfixiar a Grécia e, depois,
aproveitaram-se disso para repartir o bolo com os outros predadores dos bens
públicos gregos. As empresas chinesas, alemãs, italianas ou
francesas fizeram aquisições a preços de saldos. Mas se as
autoridades chinesas tivessem concretizado em 2015 as esperanças de
Varoufakis, isso também não teria beneficiado a Grécia e a
sua população.
Do seu lado, as autoridades russas, que foram contactadas por Tsipras e
Panagiotis Lafazanis, pouco depois dos contactos de Varoufakis com Pequim,
também se recusaram a ajudar o governo grego
[3]
. Vladimir Putin negociou com Angela Merkel para ela suavizar as
sanções da União Europeia contra a Rússia ligadas
ao conflito com a Ucrânia, em troca da recusa de Moscovo em ajudar o
governo de Syriza.
Quanto às esperanças de Varoufakis e de Tsipras em obter ajuda de
Barack Obama, foi mais uma desilusão. Segundo Varoufakis, a
administração de Barack Obama fez saber que a Grécia fazia
parte da esfera de influência de Berlim e o próprio Obama
recomendou a Varoufakis que fizesse concessões à Troika
[4]
.
A ação da diplomacia secreta e duma comunicação
enganadora de que Tsipras e Varoufakis foram cúmplices.
Varoufakis esclarece a reunião do Eurogrupo que se seguiu à
capitulação de 20 de fevereiro apresentada à
opinião pública grega falsamente como um êxito: o fim da
troika e o fim da prisão da dívida para a Grécia. Aquando
do Eurogrupo que teve lugar a 9 de março em Bruxelas, Varoufakis
não conseguiu obter nenhum gesto, nenhuma concessão dos
dirigentes europeus, do Banco Central Europeu e do FMI. Apesar disso,
Varoufakis e Tsipras continuaram a dizer que a reunião fora um
êxito. Varoufakis relata que Tsipras lhe teria declarado: "
Vamos apresentá-la como um êxito: na sequência do acordo de
20 de fevereiro, as negociações políticas vão
começar em breve para sairmos do impasse
" (p. 330).
O que é chocante é o tempo passado por Varoufakis e Tsipras nas
intermináveis reuniões no estrangeiro para
negociações no decorrer das quais fazem concessões,
enquanto que a Troika prossegue metodicamente a sua obra de
demolição das esperanças do povo grego. Não ocorre
a Tsipras e a Varoufakis arranjar tempo para ir ao encontro do povo grego,
falar em reuniões convocadas para o povo grego. Não se deslocam
pelo país para ir ao encontro dos eleitores, para os escutar e lhes
explicar o que se passava no decorrer das negociações, apresentar
medidas que o governo pretendia tomar para lutar contra a crise
humanitária e relançar a economia do país.
Varoufakis e Tsipras não procuraram dotar-se dos meios de comunicar com
a opinião pública internacional e mobilizar a solidariedade
internacional com o povo grego. Nunca se aproveitaram da sua passagem por
Bruxelas ou por outras capitais para falar diretamente com os numerosos
ativistas que queriam compreender o que se passava realmente e que queriam
exprimir a sua solidariedade com o povo grego.
Varoufakis e Tsipras têm uma enorme responsabilidade na
evolução insuficiente duma solidariedade maciça e ativa
. Para uma mobilização de muitos cidadãos a favor da
Grécia, era preciso falar com eles, informá-los para contrariar a
enorme campanha de difamação e de estigmatização da
população grega, não apenas do seu governo.
Varoufakis e o FMI
Teria sido preciso anunciar a suspensão do pagamento da dívida.
A 12 de fevereiro de 2015, a Grécia reembolsou 747,7 milhões de
euros para um dos créditos concedidos pelo FMI no quadro do primeiro
memorando. Foi um erro grave. Devia ter sido anunciada a suspensão do
pagamento dessa dívida, evocando dois argumentos: 1. O estado de
necessidade
[5]
no qual se encontrava o governo grego e a urgência de dar a primazia
à luta contra a crise humanitária. 2. O arranque de um processo
de auditoria da dívida com a participação de
cidadãos, durante a qual era conveniente suspender o pagamento
[6]
. Era possível explicar esta auditoria pela aplicação do
regulamento 472 da União Europeia. Este artigo enuncia: "
Um Estado membro que tenha por objeto um programa de ajustamento
macroeconómico realiza uma auditoria completa das suas finanças
públicas a fim de, nomeadamente, avaliar as razões que levaram
à acumulação de níveis de endividamento excessivos,
assim como detetar qualquer eventual irregularidade
".
[7]
Nem Varoufakis nem Tsipras encararam seriamente a suspensão de
pagamento combinada com uma auditoria a fim de se determinar se a dívida
reclamada era legítima ou não, era odiosa ou não.
Teria sido possível começar uma campanha de
comunicação por parte do governo para tornar ilegítimos os
créditos do FMI concedidos à Grécia a partir de 2010.
Tsipras e Varoufakis tinham os documentos secretos do FMI que atestavam o
carácter altamente ilegítimo e odioso dos créditos em
questão. O problema é que Varoufakis estava convencido que
não fazia sentido falar da ilegitimidade e do carácter odioso das
dívidas reclamadas à Grécia.
O
Wall Street Journal
tinha colocado na praça pública os documentos secretos do FMI,
em outubro de 2012, conforme já mencionei
num artigo
. Uns dias depois da publicação, encontrei Tsipras para falar
duma possível colaboração do CADTM na
realização da auditoria da dívida. Disse a Tsipras e ao
seu conselheiro económico da época, John Milios: "
Vocês têm um argumento de peso para ir contra o FMI, porque se
têm a prova de que o FMI sabia que o programa dele não podia
funcionar e sabia que a dívida não era sustentável,
vocês têm o material que permite denunciar a ilegitimidade e a
ilegalidade da dívida
"
[8]
. Tsipras respondeu-me: "
Ouve
o FMI distancia-se da Comissão Europeia
". Percebi logo que ele achava que o FMI podia ser um aliado do Syriza, no
caso de o Syriza chegar ao governo. Mas isso não tinha nenhum fundamento
a sério.
Em fevereiro de 2015, Tsipras e Varoufakis ainda continuavam nessa. Pensavam
que conseguiriam cortejar o FMI, nomeadamente graças ao apoio de Barack
Obama e graças à influência dos conselheiros
norte-americanos que Varoufakis havia escolhido, ou seja, Jeffrey Sachs e Larry
Summers. Estavam redondamente enganados. Varoufakis testemunhou isso mesmo,
pela primeira vez, de forma evidente, a 20 de fevereiro e nos dias seguintes,
quando Christine Lagarde, diretora-geral do FMI, declarou no seio do Eurogrupo
que não havia nenhuma hipótese de fugir ao memorando em curso.
Apesar desta demonstração do comportamento hostil do FMI,
Varoufakis e Tsipras continuaram os reembolsos ao FMI, durante todo o mês
de março de 2015. Varoufakis explica que o seu Ministério
entregou ao FMI 301,8 milhões de euros a 6 de março, 339,6
milhões a 13 de março, 565,9 milhões a 16 de março
e 339,6 milhões a 20 de março. Ao todo, foram pagos mais de 1500
milhões de euros no decurso do mês de março de 2015,
utilizando toda a liquidez disponível e quando as esperanças de
Varoufakis de encontrar dinheiro do lado da China já se tinham
evaporado, que o Banco Central Europeu tinha confirmado que não
entregaria os juros devidos à Grécia nos títulos comprados
entre 2010 e 2012, que não restabeleceria o acesso dos bancos gregos
à liquidez normal. No entanto, o governo grego, para lutar contra a
crise humanitária e relançar o emprego, tinha necessidade desse
dinheiro que enchia os cofres do FMI. Varoufakis declara: "
que o meu ministério tenha conseguido encontrar 1500 milhões para
pagar ao FMI foi um milagre, sobretudo porque era preciso continuar a pagar as
reformas e os funcionários públicos
". (cap. 13, p. 348)
A decisão de suspender o pagamento da dívida ao FMI
Varoufakis conta-nos uma reunião surrealista entre Tsipras e os seus
ministros principais que ocorreu a 3 de abril de 2015. Explica que, antes da
reunião, tentou convencer Tsipras a não fazer o pagamento
seguinte ao FMI, previsto para 9 de abril de 2015 de um montante de 462,5
milhões de euros. O seu argumento: era preciso fazer pressão
sobre os dirigentes europeus e sobre o Banco Central Europeu a fim de obter
alguma coisa (por exemplo, a devolução à Grécia dos
dois mil milhões de euros de benefícios do BCE sobre os
títulos gregos de 2010-2010) porque nada tinha sido obtido da parte
deles no decurso do mês de março. Varoufakis declara que teve a
impressão de não ter conseguido convencer Tsipras. Relata as
propostas e o comportamento de Tsipras no "conselho informal de
ministros" (sic! p. 348) que se seguiu:
"Estávamos num caminho que não ia dar a nenhuma parte, disse
ele, mas quanto mais ele falava, mais lúgubre se tornava a atmosfera.
Quando ele acabou, havia uma sombra de resignação na sala.
Vários ministros usaram da palavra, mas traíam uma profunda
melancolia. Alexis retomou a palavra para concluir. Acabou como tinha
começado lento, sombrio, quase deprimido lembrando que a
situação era crítica e possivelmente perigosa, mas a pouco
e pouco ganhou ritmo e ganhou energia.
- Antes de vocês chegarem, estava a discutir com Varoufakis. Ele tentava
convencer-me que chegou o momento de não cumprir com o FMI. Os nossos
interlocutores não mostram nenhuma vontade de chegar a um acordo
honesto, economicamente viável e politicamente sustentável, era o
que ele me dizia. Eu respondi-lhe que ainda não chegou o momento
(
) Mas sabem uma coisa, camaradas? Penso que ele tem razão. O que
é demais é demais. Nós respeitámos escrupulosamente
as regras deles. Cumprimos com os seus procedimentos. Recuámos para lhes
mostrar que estamos prontos a aceitar compromissos. E eles, o que fazem? Adiam
para melhor nos acusarem de adiar. A Grécia é um país
soberano e hoje eles vêm ter connosco, com o gabinete ministerial e
declaram: "Basta!" Levantou-se da cadeira e com uma voz cada vez mais
forte, apontou o dedo para mim e gritou: "Não vamos apenas deixar
de cumprir, tu vais apanhar o avião, e vais a Washington
anunciá-lo pessoalmente à grande dama do FMI!"
Gritos de alegria soaram na sala. Alguns trocavam olhares estupefactos,
conscientes de viver um momento histórico. A tristeza e as sombras
tinham desaparecido, alguém tinha corrido as cortinas para deixar entrar
a luz. Como toda a gente, talvez até mais, eu deixei-me levar pela
exaltação. Dir-se-ia uma revelação, uma eucaristia,
por muito estranho que isso possa parecer a um grupo de ateus confessos".
(cap. 13, pp. 349-350)
Silêncio total de Varoufakis sobre a Comissão para a verdade da
dívida
Varoufakis ignora totalmente a existência da comissão
a que tinha prometido ajuda
A sequência desta história tem tanto de farsa como de
escândalo. Varoufakis parte no dia seguinte para Washington, via Munique,
a fim de se encontrar de urgência com Christine Lagarde, diretora-geral
do FMI. Enquanto Varoufakis conta em pormenor a reunião de 3 de abril e
o seu encontro com a diretora do FMI em Washington, a 5 de abril, mantém
um silêncio total sobre uma reunião em que participou a 4 de
abril. Isso não é anódino, porque nesse mesmo dia
realizou-se no Parlamento grego a sessão pública inaugural da
Comissão para a verdade sobre a dívida pública grega,
na presença de Alexis Tsipras, de Zoé Konstantopoulou, a presidente do parlamento, de Prokopis Pavlopoulos, presidente da República e de dez ministros, entre eles Yanis Vaoufakis, que usou da palavra
. Eu era o
coordenador científico desta comissão e, portanto, usei da
palavra logo a seguir às intervenções do presidente da
República e da presidente do Parlamento grego e antes das
intervenções de três dos meus colegas da comissão
assim como da de Varoufakis.
Na realidade, no seu livro volumoso, Varoufakis ignora totalmente a
existência da comissão à qual tinha prometido a sua ajuda.
Bem pode pretender, no seu blogue e em entrevistas posteriores à
publicação do seu livro, que apoiou a Comissão
é totalmente falso.
O que é igualmente significativo aos meus olhos, é que a 3 de
abril, dia em que ocorreu esta importante reunião em que foi decidido
suspender o pagamento da dívida devida ao FMI, George Katrougalos, que
era membro do governo, nem sequer estava ao corrente dela. Eu estava com ele no
Ministério durante essa reunião. Na tarde de 3 de abril,
também vi a presidente do Parlamento, durante muito tempo, a preparar os
últimos pormenores da sessão inaugural da Comissão e ela
também não tinha conhecimento da existência dessa
reunião e da decisão da suspensão da dívida.
Panagiotis Lafazanis, um dos seis "super" ministros (é a
expressão que era utilizada por Tsipras), não tinha sido
convidado para aquela reunião.
Isto mostra o tipo de funcionamento de Tsipras e do seu círculo:
tomavam-se decisões essenciais num pequeno grupo, em segredo, sem
consulta a uma grande parte dos membros do governo, sem consulta à
presidente do Parlamento e sem consulta à direção do
Syriza.
É preciso sublinhar também que os trabalhos da comissão
para a verdade sobre a dívida tiveram um enorme eco na
população grega, fui testemunha pessoal disso. Muitas vezes, as
pessoas demonstraram-me a sua simpatia ou o seu agradecimento quando eu me
deslocava a pé pela rua, nos transportes públicos ou ainda no
mercado semanal do bairro popular de Atenas onde morei entre abril e julho de
2015. Isso indica que numerosas pessoas acompanhavam os trabalhos da
comissão e reconheciam os seus membros principais que, por outro lado,
eram objeto duma sistemática campanha de difamação por
parte dos media de direita.
Da tragédia à farsa: só há um voo de avião
Nunca assisti a uma coisa tão absurda.
Retomemos a narrativa de Varoufakis. À sua chegada a Washington, no
domingo, 5 de abril, Tsipras comunica-lhe uma contra-ordem.
Eis o diálogo entre Tsipras e Varoufakis, tal como apresentado no livro
deste último:
"- Escuta, Yanis, a gente decidiu não entrar em incumprimento de
imediato, é demasiado cedo.
- Como assim "a gente"? respondi estupefacto. Quem foi a
"gente" que decidiu não entrar em incumprimento?
-Eu, Sagias, Dragasakis
achámos que era uma decisão
inadequada, mesmo antes da Páscoa.
- Obrigado por me prevenires, digo eu, fora de mim. Assumi o tom mais neutro e
mais desinteressado possível e perguntei-lhe: O que é que eu
faço agora? Apanho o avião e volto? Não vejo qual o
interesse de ver a Lagarde.
- Não, nada disso, não anules o encontro. Apareces como
combinado. Vais ver a grande dama e anuncias-lhe que vamos entrar em
incumprimento.
Eu nunca tinha ouvido uma coisa tão absurda.
- O que é que queres dizer exatamente? Eu anuncio-lhe que vamos entrar
em incumprimento enquanto me dizes que decidiram o contrário?
- Exatamente. Ameaça-a para ela ficar nervosa e chamar Draghi, para lhe
pedir que ponha fim à contração da liquidez. Nesse
momento, agradecemos-lhe e anunciamos que pagamos ao FMI".
E Varoufakis aceita ir representar uma comédia grotesca na sede do FMI e
declara a Christine Lagarde: "
Estou autorizado a informá-la que, dentro de quatro dias estaremos em
incumprimento do pagamento em relação ao nosso calendário
de reembolso ao FMI, e isso enquanto os nossos credores arrastarem as
negociações e o BCE limitar a nossa liquidez
".
Ora, a partida de Varoufakis para Washington tinha sido tornada pública.
O que Varoufakis não diz no seu livro é que Dimitris Mardas,
vice-ministro das Finanças, escolhida por Varoufakis
[9]
, tinha declarado à imprensa internacional que a Grécia pagaria
o que devia ao FMI a 9 de abril de 2015. A agência de notícias
oficial alemã,
Deutsche Welle,escreve
: "
O vice-ministro das Finanças Dimitris Mardas garantiu este sábado
que a Grécia dispunha de dinheiro suficiente.
'O pagamento devido ao FMI será efetuado a 9 de abril. Há o
dinheiro necessário para o pagamento dos salários, das
pensões e de todas as despesas que deverá ser feito na
próxima semana',
declarou Mardas
".
09/Fevereiro/2019
Notas
[1] Sagias voltou ao conselho comprometido com os grandes interesses
estrangeiros
para favorecer novas privatizações. Serviu os interesses do Emir
do Qatar, em 2016, que desejava adquirir uma ilha grega, a ilha de Oxyas em
Zakinthos, pertencente a uma zona Natura, Sagias também foi conselheiro
da Cosco em 2016-2017 num litígio com os trabalhadores do porto do
Pireu, quando se tratou de encontrar uma fórmula de partida antecipada
(ou seja, despedimento disfarçado) para mais de uma centena de
trabalhadores perto da idade da reforma. Fonte:
www.cadtm.org/...
[2] A empresa privada italiana Ferovialia resgatou os caminhos-de-ferro
públicos gregos OSE por 45 milhões de euros em junho de 2016, sob
a tutela do ministro Stathakis, um dos ministros próximos de Tsipras (
tvxs.gr/...
) na perspetiva duma subvenção de funcionamento de 250
milhões de euros do Estado grego durante os cinco anos seguintes (50
milhões por ano). Ver também:
net.xekinima.org/trainose-to-xroniko-mias-idiotikopoi/
[3] Ver p. 342 e nota 5, cap. 12, p.518.
[4] Ver as propostas de Obama, segundo Varoufakis, cap. 14, pp. 368-369.
[5] O estado de necessidade é reconhecido pelo direito internacional como
uma situação que permite suspender o pagamento da dívida.
[6Lembremos que, no programa do Syriza para as eleições de junho
2012 podia-se ler, entre as cinco prioridades: "a
constituição duma comissão internacional de auditoria da
dívida combinada com a suspensão do pagamento da dívida
até ao fim dos trabalhos desta comissão".
[7] "Regulamento (EU) N.º 472/2013 do Parlamento europeu e do Conselho
do 21 de maio de 2013", art. 7
eur-lex.europa.eu/legal-content/FR/TXT/PDF/?uri=CELEX:32013R0472&from=FR
[8] Em 2017, o CADTM publicou e comentou estes documentos secretos que foram
conhecidos graças às revelações do
Wall Street Journal
a partir de 2012:
www.cadtm.org/Documents-secrets-du-FMI-sur-la
[9] No que respeita a D. Mardas, é preciso saber que, a 17 de janeiro de
2015, oito dias antes da vitória do Syriza, Mardas publicou um artigo
particularmente agressivo contra a deputada do Syriza, Rachel Makri, com o
titulo "Rachel Makri vs Kim Jong Un e Amin Dada". O artigo terminava
com a pergunta muito eloquente (sublinhada por ele próprio): "
São estes que nos vão governar?
" Dez dias mais tarde, este mesmo Mardas vinha a ser, graças a
Varoufakis, ministro suplente das Finanças. Varoufakis explica no seu
livro que, ao fim de um mês como ministro, tinha-se apercebido que tinha
feito uma má escolha. Assinalemos que Mardas, que apoiou a
capitulação em julho de 2015, foi eleito deputado pelo Syriza nas
eleições de setembro de 2015.
Os capítulos anteriores desta série encontram-se em:
1 -
Les propositions de Varoufakis qui menaient à l’échec
2 -
Le récit discutable de Varoufakis des origines de la crise grecque et ses étonnantes relations avec la classe politique
3 -
Comment Tsipras, avec le concours de Varoufakis, a tourné le dos au programme de Syriza
4 -
Varoufakis s’est entouré de tenants de l’ordre dominant comme conseillers
5 -
Dès le début, Varoufakis-Tsipras mettent en pratique une orientation vouée à l’échec
6 -
Varoufakis-Tsipras vers l’accord funeste avec l’Eurogroupe du 20 février 2015
7 -
La première capitulation de Varoufakis-Tsipras fin février 2015
[*]
Historiador e cientista político,
doutorado pelas universidades de Paris VIII e Liège. É presidente
da CADTM (Comissão para a Anulação da Dívida do
Terceiro Mundo)
O original encontra-se em
www.les-crises.fr/
.Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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