Arte, verdade e política

por Harold Pinter [*]

Harold Pinter. Em 1985 escrevi:
'Não existe uma verdadeira distinção entre o que é real e o que é irreal, nem entre o que é verdadeiro e o que é falso. Uma coisa não é necessariamente verdadeira ou falsa; pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo'.

Creio que estas afirmações continuam válidas e se aplicam à exploração da realidade através da arte. Portanto, enquanto escritor defendo-as mas enquanto cidadão não posso fazê-lo. Enquanto cidadão tenho que perguntar: O que é que é verdadeiro? O que é que é falso?

A verdade no teatro é sempre fugidia. Nunca conseguimos encontrá-la totalmente mas somos forçados a procurá-la. Essa procura é, sem dúvida alguma, o que motiva tal esforço. A procura é a nossa missão. O mais das vezes tropeçamos na verdade no meio da escuridão, esbarrando com ela ou vislumbrando apenas uma imagem ou uma sombra daquilo que parece corresponder à verdade, muitas vezes sem nos apercebermos disso. Mas o que é verdade é que, na arte dramática, nunca é possível encontrar a verdade única. Há muitas verdades. Essas verdades desafiam-se umas às outras, esquivam-se umas das outras, reflectem-se umas nas outras, ignoram-se umas às outras, implicam umas com as outras, são cegas umas para com as outras. Às vezes sentimos ter na mão a verdade dum instante, mas depois ela escorrega por entre os nossos dedos e desaparece.

Perguntam-me muitas vezes como é que surgem as minhas peças. Não sei responder. Nem sequer consigo resumir as minhas peças, digo apenas que aconteceu assim. Foi isto o que disseram. Foi isto o que fizeram.

A maior parte das peças são geradas por uma frase, uma palavra ou uma imagem. Muitas vezes uma dada palavra é logo seguida por uma imagem. Vou dar dois exemplos de duas falas que me vieram à cabeça de repente, seguidas de uma imagem, seguidas depois por mim.

As peças são ' A Volta ao Lar ' (The Homecoming) e ' Antigamente' (Oldtimes). A primeira fala de ' A Volta ao Lar ' é 'Onde é que meteste a tesoura?' A primeira fala de ' Antigamente ' é 'Escuro'.

Em ambos os casos não tinha mais nenhuma informação.

No primeiro caso, alguém andava obviamente à procura duma tesoura e andava a perguntar o paradeiro dela a outra pessoa suspeita de provavelmente a ter roubado. Mas, não sei como, eu sabia que a pessoa a quem a pergunta era dirigida não se ralava com a tesoura nem com a pessoa que lhe fizera a pergunta.

Parti do princípio que 'Escuro' era a descrição do cabelo de alguém, o cabelo de uma mulher, e era a resposta a uma pergunta. Em ambos os casos, senti-me impelido a prosseguir o assunto. Foi um acontecimento visual, uma imagem desbotada que, muito lentamente, passou das sombras para a claridade.

Começo sempre uma peça designando as personagens por A, B e C.

Na peça que veio a ser ' A Volta ao Lar' , vi um homem a entrar num quarto sóbrio e fazer a pergunta a um homem mais novo sentado num sofá ordinário a ler um jornal sobre corridas. Não sei porquê, achei que A era o pai e que B era filho dele, mas não tinha a certeza. Pouco tempo depois, no entanto, a minha impressão confirmou-se quando B (que depois viria a ser Lenny) diz a A (que depois viria a ser Max), 'Pai, importa-se que eu mude de assunto? Queria perguntar-lhe uma coisa. O jantar que comemos há bocado, como é que se chamava? Como é que lhe chama? Porque é que não compra um cão? O pai dava um óptimo cozinheiro para cães. A sério. Parece que está a cozinhar para uma data de cães'. Portanto, como B trata A por 'Pai' pareceu-me lógico supor que se tratava de pai e filho. A, obviamente, era o cozinheiro e aparentemente os seus cozinhados não eram tidos em grande apreço. Isso queria dizer que não havia nenhuma mãe? Eu não sabia. Mas, como dizia para mim mesmo na altura, os nossos começos nunca sabem quais serão os nossos fins.

'Escuro'. Uma janela ampla. Um céu do entardecer. Um homem, A (que depois viria a ser Deeley), e uma mulher, B (que depois viria a ser Kate), estão sentados com bebidas. 'Gorda ou magra?' pergunta o homem. De quem estarão eles a falar? Mas depois vejo, em pé junto da janela, uma mulher, C (que depois viria a ser Anna), banhada por uma luz diferente, de costas para eles, de cabelo escuro.

É um momento estranho, o momento de criar personagens que até àquele momento não existiam. O que se segue é intermitente, incerto, quase alucinante, embora por vezes possa ser uma avalanche incontrolável. A posição do autor é bizarra. Num certo sentido não é bem recebido pelos personagens. Os personagens resistem-lhe, dificultam a convivência, não se deixam definir. Claro que é impossível dar-lhes ordens. Até certo ponto jogamos com eles um jogo interminável, de gato e rato, de cabra-cega, de escondidas. Mas por fim descobrimos que temos nas mãos pessoas de carne e osso, pessoas com vontade e sensibilidade individual próprias, formadas por componentes que nos é impossível modificar, manipular ou distorcer.

Assim, a linguagem na arte constitui uma transacção extremamente ambígua, é areia movediça, uma cama elástica, um lago gelado que pode ceder debaixo do autor, em qualquer momento.

Mas, como já disse, a procura da verdade nunca pode parar. Não pode ser interrompida, não pode ser adiada. Tem que ser encarada, ali mesmo, de frente.

O teatro político apresenta um conjunto de problemas completamente diferente. Tem que se evitar a todo o custo os sermões. A objectividade é essencial. Os personagens têm que respirar por si. O autor não pode delimitá-los e obrigá-los a satisfazer o seu gosto pessoal, a sua vontade ou os seus preconceitos. Tem que estar preparado para os abordar de ângulos diversos, duma total e desinibida série de perspectivas, apanhá-los de surpresa, talvez, de vez em quando, dando-lhes a liberdade de escolherem o caminho que quiserem. Isto nem sempre funciona. E a sátira política, claro, não obedece a nenhum destes preceitos; na realidade faz exactamente o oposto, pois é essa a sua missão.

Na minha peça ' A Festa de Aniversário ' (The Birthday Party) acho que deixo uma grande série de opções que funcionam numa densa floresta de possibilidades antes de me concentrar finalmente num acto de subjugação.

' Língua da Montanha' (Mountain Language) não apresenta a mesma linha de acção. É brutal, breve e incómoda. Mas os soldados na peça conseguem divertir-se um pouco. Por vezes esquecemo-nos que os torcionários se aborrecem facilmente. Precisam de se rir um bocado para manter o moral. Isto foi confirmado, claro, pelos acontecimentos de Abu Ghraib em Bagdad. ' Língua da Montanha' dura apenas 20 minutos, mas podia continuar horas a fio, sem parar, repetindo sempre o mesmo tema vezes sem conta, sem parar, horas a fio.

' Cinzas às Cinzas' (Ashes to Ashes), pelo contrário, parece-me desenrolar-se debaixo de água. Uma mulher a afogar-se, com a mão esticada no meio das ondas, afunda-se longe das vistas, procura alguém, mas não encontra ninguém, nem ao de cima de água, nem debaixo dela, apenas sombras, reflexos, a flutuar; a mulher, uma figura perdida num cenário de afogamento, uma mulher incapaz de escapar à perdição que parecia ser destinada apenas aos outros.

Mas tal como eles morreram, ela também tem que morrer.

A linguagem política, tal como usada pelos políticos, não se arrisca em nenhum destes territórios visto que a maioria dos políticos, conforme podemos verificar, não está interessada na verdade mas no poder e na manutenção desse poder. Para manter o poder é imprescindível que as pessoas se mantenham na ignorância, que vivam na ignorância da verdade, até mesmo da verdade das suas próprias vidas. Portanto, o que nos rodeia é uma enorme teia de mentiras, de que nos alimentamos.

Como todos nós aqui sabemos, a justificação para a invasão do Iraque foi que Saddam Hussein possuía um arsenal extremamente perigoso de armas de destruição maciça, algumas das quais podiam ser accionadas em 45 minutos, espalhando uma destruição pavorosa. Garantiram-nos que era verdade. Não era verdade. Disseram-nos que o Iraque mantinha relações com a Al Qaeda e era co-responsável nas atrocidades de Nova Iorque de 11 de Setembro de 2001. Garantiram-nos que era verdade. Não era verdade. Disseram-nos que o Iraque era uma ameaça para a segurança mundial. Garantiram-nos que era verdade. Não era verdade.

A verdade é uma coisa completamente diferente. A verdade tem a ver com o que os Estados Unidos acham que é o seu papel no mundo e com a forma que escolhem para o protagonizar.

Mas antes de voltar ao presente, gostaria de olhar para o passado recente, ou seja a política externa dos Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Creio que é nossa obrigação submeter este período a alguma análise mesmo que limitada, já que o tempo de que dispomos não permite mais.

Todos sabem o que aconteceu na União Soviética e em toda a Europa de leste durante o período pós-guerra: uma brutalidade sistemática, atrocidades frequentes, a supressão impiedosa do pensamento independente. Tudo isto está largamente documentado e comprovado.

Mas a minha acusação aqui é que os crimes americanos no mesmo período foram registados apenas de forma superficial, se é que foram documentados, se é que foram confirmados, se é que foram reconhecidos como crimes. Creio que há que denunciar isto e que a verdade tem um peso considerável sobre a situação mundial actual. Embora condicionadas, até certo ponto, pela existência da União Soviética, as acções dos Estados Unidos em todo o mundo tornaram evidente que achavam que tinham carta branca para fazerem o que bem entendessem.

A invasão pura e simples de um estado soberano nunca foi de facto o método favorito da América. Normalmente, preferiam aquilo que se designa por “conflito de baixa intensidade”. Um conflito de baixa intensidade significa que morrem milhares de pessoas, mas mais devagar do que se lhes lançássemos uma bomba num ataque destruidor. Significa que infectamos o coração do país, que implantamos nele um tumor maligno e ficamos a observar o alastramento da gangrena. Depois de subjugar a populaça – ou espancá-la até à morte – o que vem a dar no mesmo – nós e os nossos próprios amigos, os militares e as grandes empresas, instalamo-nos confortavelmente no poder, aparecemos frente às câmaras e dizemos que venceu a democracia. Este foi um lugar comum na política externa dos EUA nos anos a que me refiro.

A tragédia da Nicarágua foi um caso por demais significativo. Resolvi apresentá-lo aqui por ser um exemplo categórico do conceito que a América tem quanto ao seu papel no mundo, tanto nessa altura como agora.

Eu estive presente numa reunião na embaixada americana em Londres no final dos anos 80.

O Congresso dos Estados Unidos estava prestes a decidir se ia ou não dar mais dinheiro aos Contras para a sua campanha contra o estado da Nicarágua. Eu era membro de uma delegação que representava a Nicarágua mas o membro mais importante dessa delegação era um tal Padre John Metcalf. O chefe do corpo diplomático americano era Raymond Seitz (na altura o número dois da embaixada e que depois viria a ser o embaixador). O Padre Metcalf disse: 'Senhor embaixador, sou responsável por uma paróquia no norte da Nicarágua. Os meus paroquianos construíram uma escola, um centro de saúde, o centro cultural. Vivíamos em paz. Há alguns meses uma força dos Contra atacou a paróquia. Destruíram tudo: a escola, o centro de saúde, o centro cultural. Violaram enfermeiras e professoras, massacraram médicos, da forma mais brutal. Comportaram-se como selvagens. Por favor exija que o governo americano retire o seu apoio a essa revoltante actividade terrorista'.

Raymond Seitz tinha uma excelente reputação de homem racional, responsável e muito sofisticado. Era muito respeitado nos círculos diplomáticos. Ouviu, fez uma pausa e depois falou com uma certa gravidade. 'Padre', disse, 'deixe-me dizer-lhe uma coisa. Na guerra, os inocentes sofrem sempre'. Seguiu-se um silêncio glacial. Ficámos a olhar para ele. Ele nem pestanejou.

De facto, os inocentes sofrem sempre.

Por fim, alguém disse: 'Mas, neste caso, os “inocentes” foram vítimas de uma atrocidade terrível subsidiada pelo seu governo, entre muitas outras. Se o Congresso der mais dinheiro aos Contras, seguir-se-ão mais atrocidades deste género. Não é assim? Então não acha que o seu governo é responsável por apoiar a destruição e assassínios de cidadãos de um estado soberano?”

Seitz manteve-se imperturbável. 'Não concordo que os factos, tal como apresentados, justifiquem as suas afirmações”, disse.

Quando saíamos da Embaixada, um adido americano disse-me que tinha gostado das minhas peças. Nem lhe respondi.

Vale a pena lembrar que na época o presidente Reagan fizera a seguida declaração: 'Os Contras são o equivalente moral dos nossos Antepassados Fundadores'.

Os Estados Unidos apoiaram a ditadura brutal de Somoza na Nicarágua durante mais de 40 anos. O povo da Nicarágua, liderado pelos sandinistas, derrubou o regime em 1979, numa revolução popular impressionante.

Os sandinistas não eram perfeitos. Tinham a sua devida quota de arrogância e a sua filosofia política continha uma série de elementos contraditórios. Mas eram inteligentes, racionais e civilizados. Começaram a implantar uma sociedade estável, decente, pluralista. Foi abolida a pena de morte. Foram poupados à morte centenas de milhares de camponeses empobrecidos. Foram entregues terras a mais de 100 mil famílias. Foram construídas duas mil escolas. Uma campanha de alfabetização excepcional reduziu o analfabetismo no país a menos de um sétimo. Foi implantada a educação gratuita e um serviço de saúde gratuito. A mortalidade infantil foi reduzida a um terço. Foi erradicada a poliomielite.

Os Estados Unidos denunciaram estes feitos como sendo uma subversão marxista-leninista. Na opinião do governo americano, estava a ser dado um perigoso exemplo. Se fosse permitido que a Nicarágua implantasse normas básicas de justiça social e económica, conseguisse melhorar o nível dos cuidados de saúde e da educação e conquistasse a unidade nacional e o respeito próprio nacional, os países vizinhos iriam levantar os mesmos problemas e agir da mesma forma. Evidentemente, na época houve uma resistência feroz ao status quo em El Salvador.

Referi-me atrás a 'uma teia de mentiras' que nos envolve. O presidente Reagan descrevia habitualmente a Nicarágua como uma 'masmorra totalitária'. Em termos gerais, os media e, claro, o governo britânico consideraram que este comentário era preciso e correcto. No entanto, não havia registo algum de esquadrões da morte no governo sandinista. Não havia registos de tortura. Não havia registos de brutalidade sistemática ou de brutalidade militar. Nunca houve padres assassinados na Nicarágua. Havia mesmo três padres no governo, dois jesuítas e um missionário de Maryknoll. Na verdade, as masmorras totalitárias ficavam na porta ao lado, em El Salvador e na Guatemala. Os Estados Unidos derrubaram o governo da Guatemala, democraticamente eleito, em 1954 e calcula-se que mais de 200 mil pessoas tenham sido vítimas das sucessivas ditaduras militares.

Seis dos mais famosos jesuítas do mundo foram cruelmente assassinados na Universidade Centro-Americana em San Salvador em 1989 por um batalhão do regimento Alcatl treinado em Fort Benning, no estado americano da Georgia. O arcebispo Romero, um homem extremamente corajoso, foi assassinado enquanto dizia missa. Calcula-se que morreram 75 mil pessoas. E porque é que foram mortas? Foram mortas porque acreditavam que era possível uma vida melhor e queriam alcançá-la. Essa crença classificou-os imediatamente como comunistas. Morreram porque se atreveram a questionar o status quo, o quadro interminável de miséria, de doenças, de degradação e de opressão que haviam herdado ao nascer.

Os Estados Unidos acabaram por derrubar o governo sandinista. Demorou alguns anos e enfrentaram uma resistência considerável, mas a perseguição económica implacável e 30 mil mortos acabaram por minar o espírito do povo nicaraguense. O desânimo e a pobreza triunfaram novamente. Os casinos voltaram ao país. Os serviços de saúde e a educação deixaram de ser gratuitos. Os grandes negócios voltaram com toda a força. Vencera a 'democracia'.

Mas esta 'política' não se restringiu de forma nenhuma à América Central. Foi aplicada em todo o mundo. Nunca mais acabou. E é como se nunca tivesse acontecido.

Os Estados Unidos apoiaram e, em muitos casos, arquitectaram todas as ditaduras militares de direita no mundo depois do final da Segunda Guerra Mundial. Refiro-me à Indonésia, à Grécia, ao Uruguai, ao Brasil, ao Paraguai, ao Haiti, à Turquia, às Filipinas, à Guatemala, a El Salvador e, é claro, ao Chile. O horror que os Estados Unidos impuseram ao Chile em 1973 nunca poderá ser esquecido e nunca poderá ser perdoado.

Houve centenas de milhares de mortes em todos estes países. Será que houve mesmo? E serão atribuíveis à política externa americana em todos os casos? A resposta é: houve, sim senhor, e são atribuíveis à política externa americana. Mas não era possível sabê-lo.

Nunca aconteceu. Nunca aconteceu nada. Mesmo quando as coisas estavam a acontecer, não estavam a acontecer. Não importava. Não tinha interesse. Os crimes dos Estados Unidos são sistemáticos, constantes, cruéis, desumanos, mas na verdade muito pouca gente toca no assunto. A responsabilidade é da América. Ela exerce uma manipulação do poder bastante cirúrgica em todo o mundo, simulando ser uma força para o bem universal. É um acto de hipnose brilhante, genial mesmo, tremendamente bem sucedido.

Afirmo-vos que os Estados Unidos são sem dúvida o maior espectáculo itinerante. Brutal, indiferente, insolente e cruel mas também muito hábil. Como qualquer vendedor, anda por sua própria conta e o seu artigo mais vendável é o amor próprio. É um vencedor. Reparem em todos os presidentes americanos a dizer na televisão as palavras 'o povo americano', como na frase, 'Digo ao povo americano que chegou a altura de rezar e de defender os direitos do povo americano e peço ao povo americano para confiar no seu presidente nas acções que ele vai tomar brevemente no interesse do povo americano'.

É um estratagema brilhante. A linguagem é utilizada de facto para manter o pensamento bloqueado. As palavras 'o povo americano' funcionam como uma almofada confortável e tranquilizadora. Não precisamos de pensar. Basta encostarmos a cabeça na almofada. A almofada pode estar a sufocar a nossa inteligência e as nossas faculdades críticas mas é muito confortável. Claro que isto não se aplica aos 40 milhões de pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza e aos 2 milhões de homens e mulheres encarcerados no enorme gulag de prisões espalhadas por todos os EUA.

Os Estados Unidos já não se interessam pelo conflito de baixa intensidade. Já não vêem qualquer vantagem em serem contidos ou mesmo indirectos. Põem as cartas na mesa sem medo nem escrúpulos. Simplesmente estão-se nas tintas para as Nações Unidas, para o direito internacional ou para as opiniões críticas, que consideram impotentes e irrelevantes. Também têm o seu próprio cordeirinho que os segue, balindo, preso por uma corrente, a patética e passiva Grã-Bretanha.

O que aconteceu à nossa sensibilidade moral? Será que nunca a tivemos? O que é que significam estas palavras? Será que se referem a um termo raramente utilizado hoje em dia – consciência? Uma consciência que tenha a ver não só com os nossos próprios actos mas que tenha a ver com a nossa quota-parte de responsabilidade nos actos dos outros? Tudo isto desapareceu? Olhem para a Base Guantanamo. Centenas de pessoas detidas sem acusação há mais de três anos, sem qualquer representação legal ou processo legal, na prática detidas para sempre. Esta estrutura totalmente ilegal mantém-se a despeito da Convenção de Genebra. A chamada 'comunidade internacional' não só a tolera como nem sequer pensa nela. Este escândalo criminoso é perpetrado por um país que se intitula 'o líder do mundo livre'. Será que pensamos nos internados na Base de Guantanamo? O que é que os media dizem a esse respeito? Por vezes afloram o assunto – um pequeno parágrafo na página seis. Aquelas pessoas foram despachadas para uma terra de ninguém da qual talvez nunca venham a regressar. Actualmente há muita gente em greve da fome, a ser alimentada à força, inclusive residentes britânicos. Não há delicadezas neste processo de alimentação à força. Nada de sedativos nem anestésicos. Apenas um tubo enfiado pelo nariz e pela garganta abaixo. Vomita-se sangue. Isto é tortura. O que é que o secretário britânico dos Estrangeiros disse? Nada. O que é que o primeiro-ministro britânico disse? Nada. Porquê? Porque os Estados Unidos disseram: criticar a nossa conduta na Base de Guantanamo é um acto hostil. Ou estão connosco ou estão contra nós. Portanto Blair calou a boca.

A invasão do Iraque foi um acto de banditismo, um acto de puro terrorismo de estado, que demonstrou um desprezo total pelo conceito do direito internacional. A invasão foi uma acção militar arbitrária inspirada por uma série de mentiras atrás de mentiras e por uma grosseira manipulação dos media e, por seu intermédio, do público; um acto concebido para consolidar o controlo militar e económico americano do Médio Oriente, mascarando-o de libertação – em desespero de causa – já que todas as outras justificações não se conseguiram justificar por si próprias. Uma demonstração formidável de força militar responsável pela morte e mutilação de milhares e milhares de pessoas inocentes.

Levámos ao povo iraquiano a tortura, bombas de fragmentação, urânio empobrecido, numerosos actos de assassinatos sem sentido, miséria, degradação e morte e chamamos a isto 'levar a liberdade e a democracia ao Médio Oriente'.

Quantas pessoas é preciso matar para se ser considerado um assassino de massas e um criminoso de guerra? Cem mil? Mais do que o suficiente, pensava eu. Então é o suficiente para que Bush e Blair sejam levados perante o Tribunal Criminal Internacional de Justiça. Mas Bush foi esperto. Não ratificou o Tribunal Criminal Internacional de Justiça. Portanto, se qualquer soldado americano ou um político qualquer, for levado ao banco dos réus, Bush já avisou que enviará os fuzileiros navais em seu socorro. Mas Tony Blair ratificou o Tribunal e portanto pode ser processado. Podemos dar a morada dele ao Tribunal, se assim o quiserem. É o número 10, na Downing Street, em Londres.

Neste contexto, a morte é irrelevante. Tanto Bush como Blair colocam a morte bem longe, em lugar não prioritário. As bombas e mísseis americanos mataram pelo menos 100 mil iraquianos antes de começar a insurreição iraquiana. Essas pessoas não têm qualquer importância. As suas mortes não existem. São um espaço em branco. Nem sequer foram registadas como mortas. 'Não contamos cadáveres', disse o general americano Tommy Franks.

Logo no início da invasão os jornais britânicos publicaram na primeira página uma fotografia de Tony Blair a dar um beijo na cara dum menino iraquiano. 'Uma criança agradecida', dizia a legenda. Alguns dias depois apareceu, numa página interior, um artigo e uma fotografia doutro garotinho de quatro anos sem braços. A família dele tinha ido pelos ares com um míssil. Ele fora o único sobrevivente. 'Quando é que volto a ter braços?' perguntava. Esta história não teve seguimento. Claro, Tony Blair não estava com ele ao colo, nem com o corpo de qualquer outra criança mutilada, nem com o corpo de qualquer cadáver ensanguentado. O sangue mete nojo. Mancha a camisa e a gravata quando estamos a fazer um discurso sincero na televisão.

Os 2 000 americanos mortos são um empecilho. São transportados para as suas campas no escuro. Os funerais são discretos, em local seguro. Os mutilados apodrecem na cama, alguns para o resto da sua vida. Os mortos e os mutilados apodrecem juntos, em diferentes tipos de campas.

Eis um extracto do poema 'Explico algumas coisas' ('Explico algunas cosas'), de Pablo Neruda:

Y una mañana todo estaba ardiendo
y una mañana las hogueras
salían de la tierra
devorando seres,
y desde entonces fuego,
pólvora desde entonces,
y desde entonces sangre.
Bandidos con aviones y con moros,
bandidos con sortijas y duquesas,
bandidos con frailes negros bendiciendo
venían por el cielo a matar niños,
y por las calles la sangre de los niños
corría simplemente, como sangre de niños.

Chacales que el chacal rechazaría,
piedras que el cardo seco mordería escupiendo,
víboras que las víboras odiaran!

Frente a vosotros he visto la sangre
de España levantarse
para ahogaros en una sola ola
de orgullo y de cuchillos!

Generales
traidores:
mirad mi casa muerta,
mirad España rota:
pero de cada casa muerta sale metal ardiendo
en vez de flores,
pero de cada hueco de España
sale España,
pero de cada niño muerto sale un fusil con ojos,
pero de cada crimen nacen balas
que os hallarán un día el sitio
del corazón.

Preguntaréis por qué su poesía
no nos habla del sueño, de las hojas,
de los grandes volcanes de su país natal?

Venid a ver la sangre por las calles,
venid a ver
la sangre por las calles,
venid a ver la sangre
por las calles!

Que fique bem claro que, ao citar o poema de Neruda, não estou de forma nenhuma a comparar a Espanha republicana com o Iraque de Saddam Hussein. Cito Neruda porque em parte alguma da poesia contemporânea li uma descrição tão veemente e visceral sobre um bombardeamento de civis.

Disse mais atrás que os Estados Unidos são hoje totalmente francos a pôr as cartas na mesa. É este o caso. A sua política oficialmente expressa é hoje definida como um 'domínio de espectro total' ('full spectrum dominance'). Esta expressão não é minha, é deles. O 'domínio de espectro total' significa o controlo da terra, do mar, do ar e do espaço bem como de todos os respectivos recursos.

Os Estados Unidos ocupam actualmente 702 instalações militares espalhadas pelo mundo em 132 países, com a honrosa excepção da Suécia, claro. Não sabemos bem como é que eles lá se instalaram mas a verdade é que estão lá.

Os Estados Unidos possuem 8 000 ogivas nucleares activas e operacionais. Duas mil estão em alerta vermelho, prontas para ser lançadas 15 minutos após a autorização. Estão a aperfeiçoar novos sistemas de energia nuclear, chamados 'bunker busters' (destruidores de bunkers). Os britânicos, sempre cooperantes, têm intenção de substituir o seu míssil nuclear, o Trident. Quem é que eles pretendem atingir, pergunto eu? Osama bin Laden? Vocês? A mim? Ninguém em especial? A China? Paris? Quem sabe? O que sabemos é que esta loucura infantil – a posse de armas nucleares e a ameaça da sua utilização – está no âmago da actual filosofia política americana. Não podemos esquecer que os Estados Unidos estão em permanente pé de guerra e não dão mostras de descansar.

Há muitos milhares, ou mesmo milhões, de pessoas nos próprios Estados Unidos que estão visivelmente enojadas, envergonhadas e irritadas com as acções do seu governo mas, tal como estão as coisas, não formam uma força política coerente – por enquanto. Mas a ansiedade, a incerteza e o medo que podemos ver crescer todos os dias nos Estados Unidos não parece diminuir.

Sei que o presidente Bush tem muitos escritores extremamente competentes para escrever os seus discursos, mas gostaria de me oferecer para esse trabalho. Proponho a transmissão televisiva da seguinte comunicação à nação. Imagino-o com ar grave, cuidadosamente penteado, pensativo, convencido, sincero, por vezes sedutor, por vezes mostrando um sorriso amargo, interrogadoramente atractivo, um homem másculo.

'Deus é bom. Deus é grande. Deus é bom. O meu Deus é bom. O Deus de Bin Laden é mau. É um Deus mau. O Deus de Saddam era mau, o pior é que ele não tinha nenhum. Era um bárbaro. Nós não somos bárbaros. Não cortamos a cabeça às pessoas. Nós acreditamos na liberdade. Deus também. Eu não sou bárbaro. Eu sou o lider democraticamente eleito numa democracia amante da liberdade. Nós somos uma sociedade compassiva. Aplicamos a electrocussão compassivamente e a injecção letal compassivamente. Somos uma grande nação. Eu não sou um ditador. Ele sim. Eu não sou bárbaro. Ele sim. E é mesmo. Todos eles são. Eu tenho autoridade moral. Estão a ver este punho cerrado? Esta é a minha autoridade moral. E não se esqueçam disso'.

A vida de um escritor é uma actividade extremamente vulnerável, quase indefesa. Não precisamos de chorar por causa disso. O escritor faz a sua escolha e fica preso nela. Mas é verdade dizer que estamos expostos a todos os ventos, alguns deles bem glaciais. Andamos na rua por nossa conta e risco, à deriva. Não encontramos abrigo, nem protecção – a não ser que entremos pela mentira – situação em que, evidentemente, construímos a nossa própria protecção e, pode dizer-se, nos transformamos num político.

Referi-me à morte bastantes vezes esta noite. Agora vou citar um poema meu intitulado ' Morte' (Death).

Onde foi encontrado o cadáver?
Quem encontrou o cadáver?
O cadáver estava morto quando foi encontrado?
Como é que o cadáver foi encontrado?

Quem era o cadáver?

Quem era o pai ou a filha ou o irmão
Ou o tio ou a irmã ou a mãe ou o filho
Do cadáver abandonado?

O cadáver estava morto quando foi abandonado?
O cadáver foi abandonado?
Quem é que o abandonou?

O cadáver estava nu ou vestido para uma viagem?

Porque é que dizem que o cadáver estava morto?
Disseram que o cadáver estava morto?
Conheciam bem o cadáver?
Como é que souberam que o cadáver estava morto?

Lavaram o cadáver?
Fecharam-lhe os olhos?
Sepultaram o corpo?
Deixaram-no abandonado?
Beijaram o cadáver?

Quando nos vemos ao espelho julgamos que a imagem que está à nossa frente é exacta. Mas basta movermos um milímetro e a imagem muda. Na verdade estamos a olhar para uma série infindável de reflexos. Mas por vezes um escritor tem que estilhaçar o espelho – porque é do outro lado do espelho que a verdade nos espreita.

Creio que, apesar das tremendas desvantagens que existem, uma feroz determinação intelectual, resoluta e inabalável, enquanto cidadãos, para definir a verdadeira verdade das nossas vidas e das nossas sociedades é uma obrigação crucial que cabe a todos nós. É, de facto, um imperativo.

Se essa determinação não estiver incorporada na nossa perspectiva política, não nos resta qualquer esperança de reabilitar o que está quase perdido – a dignidade do homem.

[*] Discurso do Prémio Nobel, pré-gravado e exibido em 7 de Dezembro de 2005 em Börssalen, na Academia Sueca, Estocolmo.

O original encontra-se em http://www.nobelprize.org . Tradução de Margarida Ferreira.


Este discurso encontra-se em http://resistir.info/ .
09/Jan/06