O Marxismo, crítica da economia política ou economia
política?
O marxismo é uma das armas teórico-práticas mais poderosas
senão a mais poderosa de que as classes trabalhadoras
dispõem para travar as suas lutas. Isso explica simultaneamente a sua
presença marginal nas esferas académicas e intelectuais, onde
essas classes não estão (ou quase não estão)
representadas e onde a influência ideológica da burguesia é
asfixiante, e também o facto de o marxismo não desaparecer,
apesar de sinais evidentes de declínio e das esperanças dos seus
inimigos incluindo os sociais-democratas. No entanto, a sua
relação com a economia, enquanto disciplina científica,
não é evidente. Primeiro, porque a economia dita
"política", que apareceu na Europa ocidental entre os
séculos XVI e XVIII, é um subproduto da evolução
histórica do sistema capitalista.
A fórmula escolhida por Jean-Baptiste Say para definir a economia como a
ciência que estuda a forma como "se formam, se distribuem e se
consomem as riquezas"
[1]
, transmite a impressão de que isso acontece a estas últimas
"se não por si só, pelo menos, duma forma independente da
vontade do homem", segundo escreveu Léon Walras, que acrescentou:
"o que seduziu os economistas para esta definição [a
definição dada por Say], é precisamente esta cor exclusiva
de ciência natural que ela dá a toda a economia política.
Este ponto de vista ajudava-os especialmente na sua luta contra os socialistas.
Qualquer plano de organização da propriedade era rejeitado por
eles a priori e, por assim dizer, sem discussão".
[2]
O marxismo vai mais longe, mostrando, como sublinhava Engels, que "a
economia não trata de coisas, mas de relações entre
pessoas e, em última análise, entre classes; mas essas
relações estão sempre ligadas às coisas e aparecem
como coisas".
[3]
As ideologias dominantes do capitalismo consolidaram-se com as
mutações deste campo disciplinar que se transformou lentamente de
"economia política" em "economia pura".
"Economia política" é a forma sob a qual ela nasceu por
volta do século XVII, graças a autores como Antoine de
Montchrestien e William Petty
[4]
, traduzindo a predominância da economia sobre a política
consecutiva à afirmação do capitalismo: depois sob a que
foi aperfeiçoada a partir do século XVIII, por Adam Smith, David
Ricardo e as contribuições clássicas. "Economia
pura" é o que pretende passar a ser a partir do final do
século XX, e cada vez mais neste início do século XXI. A
parte central do tríptico cronológico que é representado
pela formulação duma "economia política pura" (a
teoria walrasiana do equilíbrio geral dos mercados) nos últimos
decénios do século XIX, num momento em que a disciplina se tinha
autonomizado (da filosofia e do direito, e depois da ciência
política e da sociologia) e já estava solidamente
institucionalizada.
É certo que o marxismo, primeiro que tudo, é uma crítica a
esta economia política. Marx e Engels têm uma
conceção histórica do capitalismo e criticaram aqueles que
o consideram uma interpretação "fetichista", atribuindo
um poder a simples objetos materiais. Insistem nas relações
sociais. O capital é uma relação social de
produção, ligado a uma determinada estrutura social e
historicamente determinada. São os meios de produção
monopolizados por uma parte da sociedade, e que comandam, numa
relação de domínio e de exploração, os
trabalhadores que vivem dos seus salários. Criticaram os
clássicos que identificaram "leis económicas" sem
perceberem que estas são históricas e exprimem as
contradições da sociedade e as tendências para
mudanças profundas nessa sociedade.
Mas o marxismo, dado ser uma crítica, também é o
fundamento dos conceitos chave dum saber científico autêntico,
radicalmente alternativo, em economia política. É com Marx e
Engels, no quadro duma conceção materialista da história,
que vão ser determinadas as características do modo de
produção capitalista, vão ser articuladas as forças
produtivas e as relações de produção, vão
ser traçados os contornos dos antagonismos de classes, vão ser
desvendados os segredos da exploração, incluindo os movimentos
complexos do capital, vai ser medida a gravidade das suas crises e, na
prática, vão ser abertos os horizontes das
revoluções proletárias que estavam a chegar.
Na altura dos processos de transição socialista, o recurso aos
instrumentos duma planificação baseia-se numa ciência
económica própria destes sistemas, adaptada ao seu funcionamento
para a propriedade social, o papel dos mecanismos dos mercados, a
organização institucional, etc. O ciclo é iniciado pelo
objetivo de atingir a melhor satisfação possível das
necessidades do conjunto da população. Já não
é o poder de compra dos agentes que é determinante, mas a
opção de satisfazer as necessidades sociais e o desenvolvimento.
As atividades produtivas devem ser efetuadas com uma eficácia crescente,
graças a este novo "cálculo económico".
Mobilizam-se termos bastante semelhantes aos utilizados no capitalismo
(excedentes, custos
), mas o seu conteúdo é distinto dada a
especificidade das relações em que se inserem. Os espaços
ocupados pelo mercado estão condicionados pela predominância de
critérios sociais e pelo objetivo de crescimento compatível com a
solidariedade. A lógica que guia a reprodução alargada da
economia já não é a do lucro e da exploração.
Que o marxismo é simultaneamente crítico da economia
política e da economia política alternativa, e confirmado pela
própria trajetória da ciência económica moderna. A
corrente neoclássica, atualmente hegemónica, apanhou o
hábito de se apresentar como a herdeira dos pensadores clássicos.
Ora, as roturas que foi obrigada a fazer, em relação a estes
últimos, foram decisivas e necessárias, perante os
desenvolvimentos marxistas, destruidores e criadores, simultaneamente: parentes
tão próximos das reflexões clássicas, mas levando,
pelos caminhos que Marx descobriu, à teoria da extorsão da mais
valia.
Estas roturas, que os neoclássicos escondem, são visíveis
a nível metodológico, teórico e conceptual. i) No
método: com o individualismo metodológico desaparece do
pensamento burguês toda a visão sócio-histórica do
capitalismo, bloqueando as análises em termos de classes sociais e de
tendências a longo prazo. ii) No plano teórico: dada a
fixação sobre a utilidade, que abandona a realidade social dum
conjunto de
homines conomici
, quebra-se a ponte entre a teoria do valor e a da exploração e,
ao mesmo tempo, uma certa ligação da economia com a
política. iii) Nos conceitos: dada a substituição de um
equilíbrio a curto-prazo por ajustamento dos preços por um
equilíbrio a longo-prazo por ajustamento das quantidades, fica condenada
a compreensão dos ciclos, e sobretudo das crises.
Atualmente, estas roturas (entre clássicos e neoclássicos)
são apresentadas de modo falacioso pela corrente predominante, como
continuidades que permitem transformar a correspondência
ideológica entre "harmonia universal" das teorias
(históricas, sociais) dos clássicos e "o equilíbrio
ótimo" dos pseudo-teoremas (a-históricos, a-sociais) dos
neoclássicos num contínuo puramente teórico. Ou como
pô-los em comunhão uns com os outros com
exceção de Marx! numa visão apologética
unificada de um capitalismo considerado como o único concebível
na teoria e no horizonte inultrapassável da história. Essa
corrente predominante, em apoio das suas pretensões a ciência, a
riqueza das suas "teorias novas", quando a investigação
que controla já não fornece, segundo a opinião de alguns
dos seus eminentes representantes [5], o mínimo resultado inovador.
[6]
Daí advém uma disciplina económica fictícia
"apolítica", mas esmagada por uma corrente hegemónica
dogmática que a faz pender para o que eu chamo uma
"ciência(ficção) económica".
[7]
O marxismo a que me refiro aqui é um pensamento liberto do economismo e
do determinismo em que muitos "ortodoxos" encerraram esta corrente
depois de Marx.
[8]
Este último, sobretudo no final da sua vida, em
investigações consagradas nomeadamente às
formações sociais pré-capitalistas e comunitárias
agrárias, insistiu na necessidade duma visão da história
não linear, sobre análises inovadoras em que as
relações de produção se interligassem noutras
relações, a fim de engrossar o exame das formas de propriedade,
de domínio e de exploração e, portanto também sobre
a multiplicidade das vias possíveis de passagem ao socialismo.
Para aprofundar: algumas referências do autor:
HERRERA (R.), "Critique de l'économie 'apolitique' ", L'Homme
et la Société, n° 135, p. 87-104, Paris, 2000.
"Y a-t-il une 'Pensée unique' en économie
politique?", La Pensée, n° 325, p. 99-111, Paris, 2001.
"The 'New' Development Economics: A Neoliberal Con?", Monthly
Review, vol. 58, n° 1, p. 38-50, New York, 2006.
"The Hidden Face of Endogenous Growth Theory", Review of
Radical Political Economics, vol. 38, n° 2, p. 243-257, New York, 2006.
"A Critique of Mainstream Growth Theory: Ways out of the
Neoclassical Science(-Fiction) and Towards Marxism", Research in Political
Economy, vol. 27, n° 1, p. 3-64, New York, 2011.
"Neoclassical Economic Fiction and Neoliberal Political
Reality", International Critical Thought, vol. 3, n° 1, p. 98-107,
Londres, 2013.
"A Marxist Interpretation of the Current Crisis", World Review
of Political Economy, vol. 5, n° 2, p. 128-148, Londres, 2014.
Penser les crises, (dir.) (avec A. Casanova), Le Temps des Cerises,
Paris, 2014.
Notas:
[1] SAY J.-B., Traité d'économie politique, Chapelet, Paris, 1803.
[2] WALRAS L., uvres économiques complètes, tome 8,
Economica, Paris, 1988.
[3] MARX K. et ENGELS F., Études philosophiques, Éditions
sociales, Paris, 1977.
[4] L'expression "économie politique" est arrivée avec
le Traicté de l'conomie politique (1615) de Montchestien.
[5] MALINVAUD E., "Pourquoi les économistes ne font pas de
découvertes", Revue d'économie politique, vol. 106, n°
6, p. 929-942, 1996.
[6] HERRERA R., La Maladie dégénérative de
l'économie: le "néoclassicisme", Delga, Paris, 2015.
[7] HERRERA R., "Dépenses publiques et croissance économique
- Pour sortir de la science(-fiction) néoclassique", L'Harmattan,
Paris, 2010.
[8] HERRERA R., Friedrich Engels Karl Marx - Sur le colonialisme,
Éditions critiques, Paris, 2018
[*]
Investigador do CNRS (Centro de Economia da Sorbonne),
remyherrera.com/index.php/fr/
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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