Recuo dos direitos humanos em França
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Cota ONU: A/HRC/40/NGO/56 |
1. De há meses a esta parte, a França entrou numa zona de forte
turbulência. A virulência dos conflitos sociais há muito que
é uma característica importante e marcante da vida
política deste país, um dado histórico duma
nação que se construiu, também e sobretudo, depois de
1789, na base duma revolução de dimensão universal e cujos
traços juntamente com as conquistas sociais de 1936, 1945 ou 1968
se mantêm ainda hoje impressas na memória coletiva e nas
instituições, quaisquer que tenham sido as tentativas para as
apagar. No entanto, em breve se completarão 40 anos em que a
França e com ela, as outras economias capitalistas do Norte, sem
exceção se encontra imobilizada no espartilho
mortífero de políticas neoliberais depredadoras. Estas não
podem ser interpretadas de outra maneira senão como uma
extraordinária violência social dirigida contra o mundo do
trabalho. Os seus efeitos de destruição dos
indivíduos, da sociedade, mas também do ambiente
propagam-se graças à cumplicidade do Estado com os poderosos do
momento. Ainda por cima, são agravados pela sujeição ao
conteúdo anti-social dos tratados da União Europeia, embora os
cidadãos franceses tenham dito, no referendo de 2005, que não a
queriam, e que lhes foi imposta numa negação da democracia. Foi
mais uma violência suplementar, contra todo um povo. É nesta
perspetiva particular, e no contexto geral duma crise sistémica do
capitalismo globalizado, que se explicam as vagas de revoltas populares que se
amplificaram no decurso das últimas décadas: as greves de 1995,
os motins dos subúrbios de 2005-2007, as manifestações dos
anos 2000 e 2010
Na hora presente, o sentimento de mal-estar e o
descontentamento são generalizados. A partir do fim de outubro de 2018,
a mobilização dos "coletes amarelos" representa uma das
expressões disso, mas esbarra na pior recrudescência de
violências policiais desde a guerra da Argélia. Perante as
diversas contestações que reclamam sobretudo justiça
social, as autoridades optaram por responder com mais repressão, ao
ponto de fazer recuar, de modo extremamente preocupante, os direitos humanos.
O estado de urgência, ponto de partida da escalada repressora
2. O momento da mudança para esta escalada repressora é
facilmente identificável: é o estado de urgência, decretado
no território metropolitano a 14 de novembro de 2015 (na sequência
dos atentados terroristas que haviam atingido o país na véspera),
e depois no dia 18 de novembro, nos departamentos ultramarinos. Não
pretendemos aqui, obviamente, minimizar as ameaças das atividades
terroristas da extrema-direita do Islão político da
Al-Qaeda ao Daesh. Mas convém sublinhar que a política de
segurança, adotada a partir de 2015, foi simultaneamente a
ocasião de obrigar o povo francês a aceitar
restrições drásticas dos seus direitos civis e
políticos, que ultrapassam a exigência de reação aos
simples riscos terroristas. Depois de ter sido renovado cinco vezes seguidas, o
estado de urgência foi levantado a 1 de novembro de 2017, mas o essencial
das disposições excecionais que o mesmo previa passou a adquirir
força de lei: detenções e interpelações
preventivas, perímetros de proteção, fixação
individual de residência, controlos nas fronteiras, etc., passaram a ser
autorizados no quadro da "lei que reforça a segurança
interna e a luta contra o terrorismo", de 30 de outubro de 2017. A partir
daí, observa-se em França, o desvio inquietante deste imponente
arsenal jurídico de exceção, que teve como
consequência fazer recuar as liberdades públicas, em especial os
direitos de exprimir as opiniões, de livre reunião, ou de
manifestação pacífica, mas também os direitos
sindicais, e até o direito à integridade física, todos
eles postos seriamente em perigo.
3. Homens e mulheres, que participaram recentemente em
manifestações em França, foram sem dúvida
testemunhas daquilo que tem sido denunciado já há meses por
organizações de defesa dos direitos humanos franceses ou
internacionais: um número desproporcionado de intervenções
das forças da ordem, excessivamente violentas recorrendo mesmo,
por vezes, a armas de guerra. Tornou-se assim sistemático o uso de
granadas lacrimogéneas e canhões de água de alta
pressão, contra manifestantes pacíficos; muito frequentes, os
tiros à altura de homem de lançadores de balas de defesa (LBD e
outras
armas ditas "de letalidade limitada"), a utilização de
granadas de atordoamento ou de dispersão, a prática de cerco para
impedir o encontro com outros manifestantes, interpelações
aleatórias e arbitrárias, intimidações verbais,
provocações gratuitas, ou mesmo agressões físicas.
Nas ruas da capital foram colocados veículos blindados, polícias
a cavalo, brigadas cinófilas
Várias vezes, foram infligidos
tratamentos degradantes a manifestantes, incluindo a menores. Aconteceu com
frequência que pessoas fossem atingidas com bastões ou mantidas em
detenção sem terem praticado nenhum ato repreensível. Foi
confiscado material de socorro a "médicos de rua",
pacíficos, que acompanhavam os desfiles e socorriam os feridos
Factos que chocaram os franceses. Era o que se pretendia, para acabar com a
revolta deles. Tais violências policiais são totalmente
inaceitáveis e violam as normas internacionais no que se refere aos
direitos humanos em vigor.
Primeira etapa: a repressão dos movimentos sociais e dos sindicatos
4. Desde a eleição para a presidência da República
de Emmanuel Macron ex-associado-gerente do banco de investimentos
Rothschild, depois ministro da Economia do presidente François Hollande
e autor das leis epónimas impondo a flexibilização do
mercado de trabalho o mundo sindical voltou a mobilizar-se.
Multiplicaram-se as manifestações e greves, em especial nos
transportes públicos (SNCF, Air France
), na energia (gás e
eletricidade), no setor automóvel (Peugeot, Renault), nas
telecomunicações (Orange), na grande distribuição
(Carrefour), nos serviços de saúde (hospitais públicos,
lares de pensionistas, segurança social), no ensino (liceus,
universidades), na cultura (museus), na justiça (advogados,
magistrados), na recolha do lixo e até na auditoria financeira e no
Tribunal de Contas. Estes diversos movimentos sociais, muito seguidos, duraram
durante toda a primavera de 2018. A atitude do poder foi intensificar a
repressão, que afeta espetacularmente os estudantes
(evacuações dos
campus
), os militantes ecologistas que ocupam zonas a defender (ZAD) e, antes deles,
os manifestantes que se opõem às leis de
flexibilização do mercado de trabalho.
5. Evidentemente, esta espiral repressiva atingia já os sindicatos
há vários anos, violando o direito ao trabalho. Multiplicaram-se
os obstáculos que entravam as atividades sindicais:
discriminações salariais contra os sindicalistas, despedimento
abusivo de grevistas, pressões exercidas através de
ameaças ou sanções disciplinares, restrições
dos direitos sindicais ou do direito à greve, ou mesmo
criminalização da ação sindical (como na Goodyear,
na Continental ou na Air France).
Além disso, recentes reformas governamentais do código de
trabalho penalizam ainda mais os movimentos sociais: encurtamento do prazo de
arbitragem no tribunal do trabalho e instituição de um teto para
as indemnizações no caso de despedimento abusivo,
limitação do papel das instâncias representativas do
pessoal e redução dos seus meios, mecanismo de rotura das
convenções coletivas, contornando os planos de salvaguarda do
emprego ou favorecendo a saída dos mais velhos, inversão da
hierarquia das normas, colocando o acordo da empresa acima das
convenções de trabalho e da lei, definição do
perímetro nacional para o despedimento económico que permite a
demissão de assalariados de filiais francesas (quando a casa-mãe
faz benefícios à escala nacional).
Segunda etapa: a repressão dos "coletes amarelos"
6. O presidente Macron escolheu "não mudar de
posição". Desprezando o sofrimento e as expetativas das
classes trabalhadoras, o seu governo exacerba as políticas neoliberais
e, para isso, afunda-se cada vez mais na via da violência social e da
repressão policial. O resultado é de pesadelo, indigno de um
país que se pretende democrático e tolerante. Desde o
início da mobilização dos coletes amarelos, já
ocorreram 11 mortes acidentais. Ficaram feridas mais de 2000 pessoas. Destas,
pelo menos uma centena foram feridas gravemente médicos
declararam estados de traumatismos classificados como "ferimentos de
guerra" (mãos arrancadas, cegueira, desfiguração,
fraturas múltiplas e mutilações diversas
), devidas
nomeadamente a tiros de LBD ou a estilhaços de granadas, visando
frequentemente manifestantes pacíficos. Várias pessoas ainda hoje
se encontram em coma. E que dizer do choque psicológico sofrido por
jovens adolescentes tratados como terroristas pela polícia,
forçados a ajoelhar-se, de cabeça baixa, mãos atrás
da nuca, empilhados em furgões, em celas?
7. Para onde vai este poder que marcha contra o seu povo e desencadeia contra
ele uma tal violência? No dia 1 de dezembro, por exemplo, foram atiradas
7940 granadas lacrimogéneas, 800 granadas de dispersão e 339
granadas do tipo GLI-F4 (munições explosivas), 776 cartuchos de
LBD, e ainda 140 mil litros de água lançada por canhões.
Para só
considerar o período de 17 de novembro de 2018 a 7 de janeiro de 2019,
um cálculo provisório e certamente não exaustivo
registaram-se 6475 detenções e 5339 pessoas presas
preventivamente. Em todo o território nacional, os tribunais já
pronunciaram mais de mil condenações. Embora a maior parte das
sanções sejam trabalhos de interesse geral ou outras do mesmo
tipo, muitas delas são penas de prisão. Contam-se 153 mandados de
captura (implicando o encarceramento), 519 convocações por
agentes da polícia judiciária e mais 372 em audiências de
correção. Em Paris, 249 pessoas foram julgadas em julgamento
imediato, 58 condenadas a penas de prisão efetiva, 63 a penas de
prisão suspensa. No departamento francês de La Réunion, as
penas médias de prisão para os coletes amarelos locais são
de oito meses de prisão efetiva. A 10 de janeiro de 2019, cerca de 200
pessoas ligadas a estes acontecimentos continuavam presas em França.
A legitimidade das reivindicações populares
8. As reivindicações dos coletes amarelos correspondem, em muitos
aspetos, às do mundo de trabalho. Exigem a melhoria imediata e concreta
das condições de vida, a revalorização do poder de
compra das receitas (salários, pensões, abonos sociais
), o
reforço dos serviços públicos, a
participação direta do povo nas decisões relativas ao seu
futuro coletivo. Ou seja, a instituição efetiva em especial dos
direitos económicos, sociais e culturais, assim como o direito do povo
de decidir do seu futuro. Reclamando sobretudo justiça social, respeito
pelos direitos humanos e democracia económica e política, estas
reivindicações são profundamente legítimas e
encontram um grande eco favorável na população.
9. A mãe de toda a violência, que deve cessar urgentemente e
contra a qual o povo se vê obrigado a defender-se como lhe sugere
a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no
preâmbulo da Constituição francesa é a que
gera a imposição de medidas neoliberais iníquas,
implacáveis, anti-sociais e antidemocráticas; a que, no
silêncio dos ajustamentos de preços dos mercados capitalistas, faz
morrer de frio os sem-abrigo, leva ao suicídio os agricultores
endividados, destrói indivíduos e as suas famílias,
privando-os de empregos, cortando-lhes a eletricidade, expulsando-os das suas
casas; a que obriga
os reformados, por falta de meios, a deixarem de aquecer a sua
habitação ou as crianças a saltar uma
refeição; a que destrói toda a solidariedade, fecha as
escolas, as maternidades ou os hospitais psiquiátricos, mergulha no
desespero os pequenos comerciantes e artesão, subjugados sob os
impostos, condena os assalariados ao trabalho sem conseguirem ganhar para as
despesas de um mês. A verdadeira violência reside neste sistema
extraordinariamente injusto e insustentável. Perante isto, montras de
bancos ou de supermercados partidas por alguns indivíduos isolados ou
desesperados, embora condenáveis, não podem servir de
justificação para as violências das forças da ordem.
10. Perante o atrás exposto, o CETIM [Centro Europa Terceiro
Mundo] exorta o governo francês a cessar imediatamente a repressão
sobre os manifestantes e a honrar os seus compromissos internacionais em
matéria dos direitos humanos e do direito ao trabalho, nomeadamente:
11. O CETIM requer igualmente ao Conselho dos Direitos do Homem que ative os
seus mecanismos apropriados a fim de realizar um inquérito neste
país sobre as violações de que são vítimas
os manifestantes pacíficos.