Carta à ministra francesa do Orçamento
(que permite uma leitura portuguesa)
Michel Cialdella, antigo administrador da
Caisse Primaire d'Assurance Maladie (CPAM) de Grenoble
Rua Joseph Bertoin, nº 6
38600 Fontaine
michel.cialdella@orange.fr
Fontaine, 25 de Outubro de 2011
Senhora Valerie Pécresse
Ministra do Orçamento
communication.dgme@finances.gouv.fr
Senhora Ministra
Como sempre acontece quando se trata do seu orçamento, os
adversários da Segurança Social evocam fraudes que, na sua
opinião, seriam maciças. Uma primeira reacção
é que a
ENA
e a
HEC
não contribuem necessariamente para uma
melhor compreensão da instituição Segurança Social.
O ministro sob cuja responsabilidade foi montada,
Ambroise Croizat
, era um operário metalúrgico comunista e pertencia à
Resistência. A senhora, de calculadora na mão, trata os segurados
com um desprezo total. A senhora, e todos os que seguem o seu pensamento,
quando evocam a Segurança Social é somente através do que
chamam "O buraco", quando, na verdade, ela é um meio de aceder
aos cuidados de saúde.
Saiba, senhora ministra, que se trata em primeiro lugar de uma conquista das
forças progressistas contra a direita e o patronato. A CGT e o Partido
Comunista Francês, que eram membros do Conselho Nacional da
Resistência, tiveram, ainda que esse facto a incomode, um papel
determinante na implementação do sistema. Facto que é
confirmado por Henry C. Galant, investigador americano:
"Os defensores mais activos do novo plano de segurança social e da
sua aplicação eram os comunistas e a CGT... Foi devido aos
esforços da CGT que as Caixas ficaram prontas a funcionar na data
prevista"
[1]
Pierre Laroque, que era conhecedor da matéria, disse:
"Na concepção francesa, a segurança social deve,
não apenas dar aos trabalhadores um sentimento de segurança, mas
também fazer-lhes compreender que esta segurança é um
resultado da sua actividade, que é mérito seu e sua
responsabilidade"
[2]
Dizia também em 1946:
"O plano de segurança social não pretende apenas melhorar a
situação material dos trabalhadores, mas sobretudo criar uma
ordem social nova, na qual os trabalhadores assumam a sua plena
responsabilidade. Foi isso que levou a conceber o plano de segurança
social no quadro de organização única gerida pelos
interessados e cobrindo o conjunto da segurança social".
[3]
Em 1995, numa entrevista à revista
O Direito Operário,
dirá:
"Tivemos a sorte, se é que de sorte se trata, de a CGT ser, em
1945, praticamente a única representante do mundo do trabalho, e de nos
ter apoiado sem reservas, porque se sentia responsável"
[4]
Ouvi, na RTL, o ministro Xavier Bertrand. Atacava veementemente as faltas ao
trabalho, afirmando que seis em cada dez eram ilegais. Estes números
são, para mim, fantasistas. Em primeiro lugar porque são os
médicos que as prescrevem. Vão portanto dizer-lhes que
estão a cometer fraudes. Para além disso, se as pessoas
são controladas na véspera da retoma do trabalho (o que acontece
frequentemente) parece evidente que o doente está em
condições de retomar o seu trabalho. Neste caso, falar de abusos
é, no mínimo... abusivo. O senhor Bertrand certamente nunca
pôs os pés numa fábrica... para trabalhar, claro. O que
é que ele conhece das condições de trabalho que fazem com
que um operário tenha uma esperança de vida inferior em sete anos
à de um quadro superior? Este discurso reaccionário era já
o que os adversários da segurança social pronunciavam desde o
início. É preciso dizê-lo com clareza, trata-se de um
discurso de
luta de classes.
Esta luta de classes que só existiria no imaginário dos
marxistas é evocada por um dos homens mais ricos do planeta, Warren
Buffett, nestes termos:
"A guerra de classes existe, é um facto, mas é a minha, a
classe dos ricos, que conduz esta guerra, e estamos a ganhá-la"
[5]
Exemplos de 1948:
[6]
a Câmara de Comércio de Paris, num relatório aprovado
em 10 de Novembro de 1948:
"A segurança social tornou-se para a economia uma carga
considerável que... se arrisca a comprometer a recuperação
económica do país".
"Os trabalhadores... quiseram aproveitar-se de tratamentos de que
não tinham necessidade absoluta. A mínima doença foi o
pretexto para um repouso mais ou menos prolongado. O absentismo aumentou".
"... razão deste aumento de despesas: os acidentes insignificantes
para os quais outrora as pessoas se limitavam a colocar um simples penso,
enquanto que agora vão ao médico".
"Um médico dará facilmente 15 dias de baixa para uma pequena
gripe ou para um pequeno acidente. A fraude é portanto tanto maior
quanto mais a Caixa está concentrada".
Querem dar lições de modernidade e fazem discursos que os
reaccionários já faziam há 63 anos!
É lamentável que um ministro do Trabalho não se debruce
com seriedade sobre as razões que fazem com que um trabalhador seja
considerado doente. Será que sabe que 70% dos operários trabalham
em contacto com produtos tóxicos? Será que sabe que os problemas
músculo-esqueléticos (que ele não corre o risco de sofrer)
são a maior causa de doença profissional? O que é que faz
para que não haja 400 suicídios por ano ligados ao trabalho?
É público e notório que há um insuficiente
reconhecimento das doenças profissionais. O que é que ele faz?
É mais fácil insultar os trabalhadores na Assembleia Nacional do
que resolver os problemas de sofrimento no trabalho.
Afirma que o conjunto das fraudes sociais é
"de aproximadamente 20 mil milhões de euros",
ou seja, cerca de 10% do orçamento da Segurança Social! Seria
interessante saber como é que chega a este número. E depois
gostaríamos de o ver, como ministro do Orçamento, atacar a fraude
fiscal, que é no mínimo o dobro! Poderíamos evocar os
milhares de milhões que concedeu aos banqueiros fraudulentos. E parece
pronto para reincidir, com o risco de encorajar a fraude! Antes de dar
lições, comece portanto por bater às portas dos seus
amigos vorazes por dinheiro.
"Mas será que a cobiça basta para explicar o que leva
alguém a querer ganhar ainda mais milhões quando já
arrecadou milhares de milhões? Talvez estejamos perante algo mais
próximo da gula, uma necessidade psicótica de se empanturrar
quando já não se tem fome"
[7]
"O défice da Segurança Social deve ou não ser
reduzido, e, se sim, em quanto? Não cabe ao economista responder, mas ao
cidadão",
afirma o professor Albert Jacquard
[8]
. Também não cabe aos ministros, que são servidores
(será que o esqueceram?), mas ao Povo (o soberano) e designadamente aos
trabalhadores, que para além disso são maioritários. O
senhor não tem qualquer legitimidade para destruir a nossa
Segurança Social, ela pertence-nos! Em nome de que é que os que
produzem as riquezas do nosso país (que vos paga) deveriam ser
espoliados da sua conquista?
Como escrevia Pierre Laroque em 1946!
"Queremos que os trabalhadores, amanhã, considerem as
instituições de Segurança Social como
instituições suas, geridas por eles e onde se sentem em
casa".
Que estragos se seguiram!
A realidade é que vivemos uma enorme crise que lhe serve de pretexto
para massacrar as nossas conquistas, que não devem nada à
direita, mas apenas às lutas de gerações de trabalhadores.
Nem o governo, nem os seus economistas, conseguiram prever esta crise (governar
é prever?). Esta crise é a vossa e quer que sejamos nós a
pagá-la!
"Até hoje, a arte de governar foi apenas a arte de espoliar e
escravizar a maioria em proveito da minoria, e a legislação o
meio de transformar estes atentados numa coisa normal..."
afirmou Ropespierre, a quem se chamou o Incorruptível.
Diríamos que a coisa continua.
"Os males da sociedade nunca vêm do povo, mas do governo",
disse ainda Ropespierre.
[9]
Michel Cialdella
cidadão em cólera
------------------
(1)
"Histoire politique de la sécurité socialefrançaise
1945-1952",,
Henry C. Galant
(2)
Pierre Laroque,
"De l'assurance sociale à la sécurité social
", citado por Henry C. Galant.
(3)
"Recueille d'écrits de Pierre Laroqu".
La documentation française, Maio de 2005.
(4)
"Le Droit Ouvrier",
Outubro de 1995.
(5)
"La guerre des classes",
François Ruffin, Fayard, 2008
(6)
"Histoire de la sécurité sociale (1945-1967)"
, Bruno Valat, Éditions Economica, Outubro de 2001.
(7)
"La menace américaine",
Théodore Roszak; Le cherche midi, 2004.
(8)
"Mon utopie",
Albert Jacquard, Stock, 2006.
(9)
"Robespierre: Sur la République",
discurso na Convenção, a 10 de Maio de 1793.
Esta carta encontra-se em
http://resistir.info/
.
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