A França no rumo do modelo colonial latino-americano
por Philippe Chatelin
[*]
Qualificar a Revolução francesa de "revolução
burguesa" é um lugar comum, mas exprime uma realidade: a
formação de uma burguesia nacional portadora de ideais liberais e
igualitários. Em França, foi esta combinação
ideológica que caracterizou nossa luta de classes e nossa
história. Se no século XIX o proletariado estava na Inglaterra e
as classes na Prússia (na constituição prussiana), a luta
de classes estava em França! Em França, a burguesia nacional
não é completamente autónoma e não deve se tornar.
Seu comportamento depende das lutas e portanto da articulação das
relações entre classes populares e classes médias.
O que poderia se tornar o nosso país sem o ideal da nação
e a realidade de uma burguesia nacional? A França dos anos 2010
começa a aproximar-se perigosamente do modelo latino-americano
tão bem descrito por Eduardo Galeano.
O desmoronar de uma nação
A desindustrialização da França parece hoje coincidir com
a desaparição da democracia. Desde o estabelecimento do euro, a
França instalou-se no défice comercial, processo que é
acompanhado por uma decomposição da vida política. Eis uma
entrada em matéria económica bastante conveniente para questionar
as ligações entre economia e vitalidade da nação.
Pode-se imaginar um país desenvolvido sem indústria, sem
capitalismo e sem burguesia?
Retornemos rapidamente ao passado e à ascensão, antes da queda.
Em França, como alhures, o desenvolvimento económico repousou
amplamente numa colaboração entre o Estado e a burguesia
nacional. Durante a Primeira revolução industrial, o governo deu
os impulsos e decidiu grandes investimentos, depois deixou os actores
económicos capitalistas agirem livremente para explorar as
infraestruturas.
Este período corresponde, com um pouco de atraso em
relação à Inglaterra, ao momento do desenvolvimento dos
ideais democráticos. Crises económicas começaram a surgir,
a partir do Segundo império, quando o capitalismo pretendeu libertar-se
das regulações estatais. Mas este capitalismo permaneceu
nacional, com elites ansiosas por moderar as políticas que afectavam
ramos industriais. Uma vida ideológica intensa, iniciada sob a
Revolução francesa, acompanhou o desenvolvimento industrial e
permitiu conciliar capitalismo e melhoria do nível de vida. O
afrontamento entre princípios de liberdade e de autoridade, de igualdade
e desigualdade acabou por favorecer a luta de classes, a democracia liberal e
um controle nacional do capitalismo. Sua vida política muito rica fez da
França, então em posição central, um modelo de
inovação.
Ainda que a França nunca tenha sido um grande país industrial,
ela foi por excelência o país da luta de classes e o ensaio
clássico de Marx chama-se com efeito "As lutas de classe em
França". Esta definição da nação por
classes que ali estão em luta durou, ainda que amortecendo, até
ao século XX. Uma inventividade social real decorreu da mesma, incluindo
um sistema de extracção na fonte da mais-valia do capital, o
sistema das contribuições para a Segurança social, ainda
em vigor.
Apanhado nesta dinâmica de longo prazo, o patronato, domado
temporariamente em 1945, desde então silenciosamente reconstituiu suas
forças, para finalmente querer sair da dialéctica de classes e
da nação, avançando com a "construção
europeia". Esta construção revelou-se uma arma de
destruição maciça da democracia liberal, através do
contorno do quadro nacional da luta de classes. A criação da
União Europeia foi o culminar deste processo: em 1992, ao inventar o
euro, nossas classes superiores renunciaram a conduzir uma política
económica independente. Os franceses, ao votarem o Tratado de
Maastricht, por sua vez renunciaram a existir enquanto nação. A
sua tradicional luta de classes não é mais possível, o
seu mundo operário vai-se tornar outra vez força de trabalho
atomizada.
Mas segue-se um verdadeiro desastre económico, revelado pelo surgimento
de um défice comercial estrutural. Um "1940" de longa
duração está inscrito nos tratados europeus
TUE
e
TFUE
que constitucionalizam as políticas económicas. A entrada na era
pós-nacional certamente desembaraçou as classes superiores da
democracia e da luta de classes, mas o preço económico desta
vitória social terá sido elevado: libertado da sua
nação, o nosso capitalismo implode. Entretanto não se pode
estar seguro de que a nossa regressão industrial seja um acidente, uma
consequência não desejada por classes burguesas pouco conscientes
da ligação entre vitalidade da Nação e força
da economia. Pois, com efeito, as políticas efectuadas desde 1992
parecem realmente como sabotagem. A escolha da Siemens em detrimento da Alstom
e a destruição programada do SCNF talvez não sejam
senão elementos planificados de uma escolha anti-nacional em
acção.
Fazer política e pretender governar é hoje ocupar-se da
"redução dos défices" da gestão da
polícia. A introdução do sistema da Dívida evoca a
sorte dos países do Terceiro Mundo pressionados pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI) nos anos 1970. Os franceses, talvez por
vaidade, querem continuar a crer que vivem numa das democracias do mundo livre
e dominante. A sua situação real é aquela do elo fraco num
novo género de sistema colonial, esta União Europeia que abrange
países dominados e um país dominante, a Alemanha, que
impõe suas regras e seus homens.
Ora, existe um continente que vive esta situação desde há
duzentos anos, próximo da França culturalmente, pela
língua e pelo temperamento, a América Latina cujo estudo pode nos
informar acerca do nosso futuro.
O nacionalismo como projecto social: o caso da América Latina
A sociedade latino-americana repousa numa dinâmica portadora dos ideais
de liberdade e igualdade, como a França. Estes encarnam-se em
forças sociais que tomam uma forma bastante diferente desta que existe
na Europa: as guerrilhas, os movimentos indigenistas, os cartéis, os
grupos paramilitares. Estes dispositivos, cujo funcionamento é
horizontal, regulam o clima de violência inter-individual que caracteriza
o continente, na ausência de Estado.
Enquanto o Estado-nação construiu-se num longo período em
França, a América Latina não tem nem o Estado nem a
nação. O nacionalismo, que não é um estado,
portanto também faz parte da dinâmica geral: "a causa
nacional latino-americana é, antes de tudo, uma causa social"
afirma Eduardo Galeano [1]
. No século XIX, a América Latina inspirou-se muito nas ideias
saídas da Revolução francesa. As correntes liberais,
independentistas, afirmavam-se em oposição ao sistema
hierárquico da monarquia espanhola. Mas este modelo
anti-autoritário não permitiu organizar o Estado: a
relação do indivíduo com o Estado é demasiado
frouxa.
Esta fraqueza estrutural do Estado favoreceu a manutenção de um
modelo económico de tipo colonial e impediu a constituição
de capitalismos nacionais. Ela impediu a formação de burguesias
nacionais capazes, como em França no prolongamento da sua
Revolução, que se sentissem responsáveis pelo conjunto da
população, tal como a nobreza.
A descrição de um continente que conservou seu estatuto colonial
apesar dos movimentos de independência está no cerne da obra
"As veias abertas da América Latina", de Eduardo Galeano
(1970) [NR]
, painel sobretudo económico da História deste continente.
A história da América Latina opõe-se à dos Estados
Unidos, cujo modelo económico repousa na autonomia em
relação à Europa, não sendo expatriadas as riquezas
produzidas. Aparentemente, o valor da igualdade, da horizontalidade,
enfraqueceu a relação de autoridade necessária para um
mínimo de eficácia económica.
Assim, a América Latina permaneceu pouco desenvolvida, conservando seu
sistema de grande propriedade: em 1910, na véspera da reforma
agrária impulsionada pela Revolução, as terras mexicanas
eram detidas por cerca de 800 proprietários, dos quais muitos eram
estrangeiros a viverem na Europa ou nos Estados Unidos. Dos 15 milhões
de habitantes, 12 milhões trabalhavam nas
haciendas
[2]
. Em 1911, o escritor americano John Kenneth Turner lamentava que seu
país tivesse transformado em vassalo o ditador Porfirio Diaz e
transformado o país numa colónia escravizada [3]
. Diante do governo nacionalista de Lazaro Cardenas, cujas reformas sociais
são comparáveis àquelas da Frente Popular em
França, o cartel petrolífero dos EUA impôs um embargo entre
1939 e 1942!! [4]
A Standard e a Shell partilhavam o território mexicano. Cardenas
nacionaliza a exploração do petróleo. Mais ao Sul, a
economia da Venezuela repartira-se no século XX entre o petróleo
e os latifúndios tradicionais. Nos anos 1950, a Venezuela, considerada
como o grande lago de petróleo da Standard Oil Company, era a maior base
militar americana presente na América Latina. Já no século
XIX a indústria na América do Sul repousava na boa vontade dos
capitalistas europeus, que controlavam o comércio.
O livre comércio, tal como o "bom" nacionalismo, é um
privilégio das potências económicas. As
independências beneficiaram assim as grandes potências comerciais,
organizando a indústria e destruindo as produções locais
tradicionais. Durante esta época, os Estados Unidos consolidavam sua
economia através do proteccionismo. O exemplo dos Estados Unidos a
sairem da Guerra civil revela assim, sublinha Galeano, a existência de
dois modelos históricos, um baseado no livre comércio e na
escravidão, o outro no proteccionismo e na economia intensiva,
"duas concepções do destino nacional".
Na América Latina, esta situação impediu a
emergência de burguesias nacionais. Os burguesas não são
senão os comissários de um capitalismo estrangeiro dominador (os
marxistas falam de "burguesia compradora"). Para eles, a
nação não é portanto um objecto a defender:
"A nação não é senão um
obstáculo a ultrapassar pois a dependência por vezes
desagrada e um fruto delicioso a devorar. (...) A grande galopada do
capital imperialista encontrou a indústria local indefesa e sem
consciência do seu papel histórico. Quanto ao Estado, sua
influência sobre a economia latino-americana, que se enfraquece desde
há duas décadas [em 1970] foi reduzida ao mínimo
graças aos bons ofícios do FMI. (...) Na América Latina, o
processo de desnacionalização foi muito mais rápido e mais
económico e tem tido consequências incomparavelmente mais
terríveis"[5]
.
Ao contrário da Europa, cuja burguesia industrial se tornou
hegemónica, a empresa na América Latina foi essencialmente obra
do Estado: "O Estado ocupa o lugar de uma classe social (...): ele encarna
a nação e impõe o acesso político e
económico das massas populares aos benefícios da
industrialização. Nesta matriz, obra dos caudilhos populistas,
não se forma uma burguesia industrial radicalmente de classes
até então dominantes".[6] E, com excepção do
México, os populistas, como Péron na Argentina, não
tocaram na estrutura latifundiária.
Na América Latina, a burguesia, subordinada às potências
económicas, portanto teme mais a pressão popular do que aquela do
imperialismo estado-unidense. Na Europa e nos Estados Unidos, ela se desenvolve
de maneira muito diferente.
Esta realidade explica a capacidade da burguesia latino-americana de sabotar as
economias dos seus próprios países quando consideram
necessário, por razões políticas, em geral com o apoio dos
Estados Unidos: a história do continente é assim pontuada por
movimentos de desestabilização económica interna, com o
objectivo de se opor às reivindicações populares e
à democracia liberal: no México dos anos 1920, um dos aspectos da
guerra dos Cristeros contra a Reforma Agrária é a
execução de um boicote económico para reverter o governo
revolucionário. No Chile, em 1973, um bloqueio económico interno,
nomeadamente de produtos de primeira necessidade, visava o derrube do governo
de Salvador Allende. As desestabilizações deste tipo pontuam
desde 1999 a história da revolução bolivariana.
Retorno à Europa
Entregar-se de pés e mãos atados a uma potência dominante,
com menosprezo de um capitalismo nacional, quer actue a partir dos Estados
Unidos, para a América Latina, ou da Alemanha, para a Europa, não
faz senão arrastar nações já constituídas
para uma situação de tipo colonial na qual as burguesias
ex-nacionais voltam-se contra os seus povos. A ideia de "nacionalismo como
causa social", conforme a expressão de Galeano, deverá
portanto retomar seu caminho.
Este desvio pela América Latina revela de maneira empírica o erro
fundamental dos ideólogos de esquerda que pretendem que a saída
do capitalismo passaria pela destruição do
Estado-nação.
O paradoxo actual é que as convicções europeias das
classes verdadeiramente médias, que incluem as profissões
intermediárias e os professores universitários, são muito
superficiais. Contentando-se em estigmatizar, aquando de movimentos sociais ou
nos seus programa políticos, o Presidente da República ou a
Constituição da Vª República, elas mostram que
não encaram a luta senão no quadro nacional. Trata-se de uma
estratégia de evitamento da questão europeia ou simplesmente de
uma incapacidade visceral em se projectar mentalmente fora das fronteiras
nacionais para analisar os mecanismos de dominação? Parece em
qualquer caso existir um sério "fosso teórico" sobre a
questão da inserção das lutas nas relações
internacionais. Mas sejamos optimistas. Não será preciso muita
coisa para que as classes verdadeiramente médias se juntem às
classes populares, numa rejeição comum do desmantelamento do
Estado-nação.
24/Março/2018
1. Eduardo Galeano,
Les veines ouvertes de l'Amérique latine,
1970, Pocket/Terre humaine, p. 330.
2. Ibid., p. 167.
3. John Kenneth Turner, "Mexico barbaro", 1911.
4. Eduardo Galeano, op. cit., p. 221.
5. Ibid., p. 289.
6. Ibid., p. 291.
[NR]
"As veias abertas da América Latina" pode ser descarregado
aqui
.
[*]
Historiador
O original encontra-se em
www.les-crises.fr/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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