O que se segue é acerca do significado económico e
político da prisão de Dominique Strauss-Kah (DSK), o presidente
do Fundo Monetário Internacional. Nada direi acerca dos méritos
(ou falta deles) das acusações contra DSK. Todos os casos de
alegado assalto sexual contra homens altamente colocados apresentam duas
exigências igualmente importantes (embora muitas vezes contrapostas) a
todos nós: a importância de respeitar a aflição da
alegada vítima (bem como de respeitar a sua luta com o espectro do
terror que todas as mulheres enfrentam quando se decidem a acusar um homem
poderoso) e a obrigação de respeitar a presunção de
inocência do acusado. É neste espírito que nada direi
acerca do caso e concentrar-me-ei numa parte importante da política
económica contemporânea.
Normalmente, a "eliminação" de um presidente do FMI
não teria senão um efeito passageiro sobre a
instituição. Suspeito que o afastamento de DSK será
diferente. Não se trata apenas de DSK ser um peso pesado que pressionou
o FMI a um modo diferente de pensar (adoptando uma abordagem mais subtil quanto
às causas mais profundas de crises). Muito mais significativa é a
maneira como ele parece entender o que faz a economia global funcionar.
Para abreviar, darei um exemplo pungente um exemplo cujo significado
transcende todas as anedotas acerca da maior "condescendência"
que DSK teria demonstrado durante as negociações UE-FMI-governo
grego sobre os termos dos empréstimos maciços de salvamento da
Grécia. Para reforçar meu argumento vou citá-lo
directamente, ao invés de basear minha argumentação no
ouvi dizer.
Em Janeiro de 2011 DSK foi entrevistado por uma jornalista da BBC Radio 4 no
contexto de um documentário sobre a história do FMI.
[1]
Próximo do fim do programa, ouvi a voz inconfundível de DSK a
responder a uma pergunta da jornalista sobre como a economia global pode ser
reconfigurada na sequência da Crise de 2008. A sua espantosa resposta foi:
Nunca no passado uma instituição como o FMI foi tão
necessária como hoje ... Keynes, sessenta anos atrás, já
previa que era necessária, mas era demasiado cedo. Agora é o
momento de avançar. E penso que já estamos a fazê-lo!
Isto foi, na minha opinião, uma declaração
programática explosiva, vinda do presidente do FMI. A que é que
se estava a referir? Estava, naturalmente, a referir-se ao argumento
poderosamente colocado por Keynes (no contexto da conferência de Bretton
Woods em 1944) de que um sistema de taxas de câmbio fixas não pode
sobreviver por muito tempo sem um mecanismo automático que trate (a) de
excedentes comerciais sistemáticos e (b) de défices comerciais
sistemáticos como os dois lados da mesma moeda problemática.
A recomendação de Keynes era que, para tratar do efeito
desestabilizador do sistema de défices e excedentes, o mundo precisava
de um mecanismo que os reequilibrasse pela transferência de excedentes
dos países excedentários para os deficitários. Em suma, o
mundo precisava de um Mecanismo de Reciclagem de Excedentes (Surplus Recycling
Mechanism, SRM). Clique
aqui
para um extenso, embora académico, relato dos argumentos em favor de
um SRM.
Isto era, muito naturalmente, uma sugestão radical. Os Estados Unidos,
como era de esperar, rejeitaram a proposta não, contudo, porque
os new dealers no poder naquele tempo não reconhecessem a
importância de um SRM a nível global, mas porque não
gostavam da ideia do automatismo da reciclagem (que Keynes estava a propor).
[2]
Como tenho explicado alhures a função de um SRM (e as
consequências da sua
ausência
) com algum pormenor (ver
aqui
por
exemplo), desistirei de repeti-las aqui. Basta destacar a significância
política e económica do endosso de DSK à sugestão
de Keynes e, em particular, a sua declaração de que Keynes estava
à frente do seu tempo mas que é oportuna agora após o
Crash de 2008: "Agora é o momento de avançar. E penso que
estamos prontos para fazê-lo!".
Se o leitor precisar de um pouco mais de persuasão sobre a
significância daquela declaração, considere isto: No
contexto europeu, a declaração de DSK significa que, do seu ponto
de vista, a Alemanha é um problema para a eurozona na mesma medida que a
Grécia. Pois se excedentes sistemáticos têm a capacidade de
minar uma área de divisa comum (ou de câmbios fixados),
então o modelo de desenvolvimento da Alemanha está a minar a
eurozona tanto quanto os défices crónicos da Grécia.
Penso que DSK fez uma excelente observação. Mas o problema
não é se o leitor concorda ou não comigo. A questão
é a morte política de DSK (o anúncio da qual pode
revelar-se prematuro) transmite um significado sem precedentes dentro e fora da
Europa.
Dentro da Europa, a perspectiva de um presidente francês que acredita
fortemente (e está pronto a apoiar a sua convicção com uma
formidável panóplia analítica) que a eurozona não
pode sobreviver sem um Mecanismo de Reciclagem de Excedentes (que canalize
excedentes alemães para países em défice sob a forma de
investimento produtivo) tem o potencial para alterar radicalmente a agenda
política e económica do continente. Tal presidência, em
particular, apresentaria um contraponto estimulante à actual
incapacidade mental para encarar as causas mais profundas da crise do euro e
para reconhecer, finalmente, que a crise da dívida é um sintoma,
não a causa, da cadeia de fracassos que ameaça a própria
existência da eurozona.
Mais amplamente, o debate global acerca do que fazer com os crescentes
excedentes da China também está destinado a tomar uma rota
diferente conforme o presidente do FMI acredite, como DSK declarou
fazê-lo, na importância de criar mecanismos automatizados,
supranacionais, para reciclar excedentes (em oposição à
insistência de Tim Geithner de desequilíbrios globais serem
tratados apenas com ajustamentos nas taxas de câmbio).
Em suma, DSK é um dos raros responsáveis a encabeçarem uma
instituição extremamente poderosa que possuem visões
refrescantes atípicas de cinzentos burocratas mastigadores de
números. Sua passagem política pode ficar desapercebida
simplesmente porque o seu mandato no FMI foi curto e a sua presidência
francesa agora é improvável que se concretize. Contudo, suspeito
fortemente de que possa revelar-se como o mais significativo presidente
francês já visto, bem como o mais influente presidente que
já houve no FMI.
1. BBC Radio 4,
Inside the IMF
, Part Two, broadcast on 17th January 2011.
2. Os Estados Unidos demonstraram que não rejeitaram a ideia da
própria reciclagem de excedentes ao implementarem o Plano Marshall (um
exemplo fabuloso de reciclagem maciça de excedentes) e ao tomarem uma
miríade de outros passos entre 1947 e 1970 para reciclar uma ampla
percentagem de excedentes americanos na Europa e no Japão. O que
rejeitarem foi a ideia de uma instituição supranacional que
fizesse a reciclagem foram do controle político de Washington.
[*]
Professor de Teoria Económic da Faculdade de Ciências Económicas da
Universidade de Atenas. Autor de:
The Global Minotaur: The True Origins of the Financial Crisis and the Future of
the World Economy
(Zed Books, 2011); (com S. Hargreaves-Heap)
Game Theory: A Critical Text
(Routledge, 2004);
Foundations of Economics: A Beginner's Companion
(Routledge, 1998); e
Rational Conflict
(Blackwell Publishers, 1991).
O original encontra-se em
http://mrzine.monthlyreview.org/2011/varoufakis170511.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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