Não, o coronavirus não é o responsável pela queda
das cotações bolsistas
Assiste-se a uma grande crise das bolsas da Wall Street, da Europa, do
Japão e de Shangai e alguns atribuem a responsabilidade ao coronavirus.
Na última semana de Fevereiro/2020, a pior semana desde Outubro/2008, o
Dow Jones baixou 12,4%, o S&P 500 baixou 11,5% e o Nasdaq Composite baixou
10,5%. O mesmo cenário na Europa e na Ásia durante a
última semana de Fevereiro. Na bolsa de Londres, o FTSE-100 baixou
11,32%, em Paris o CAC40 caiu 12%, em Francoforte o DAX perdeu12,44%, na bolsa
de Tóquio o Nikkei baixou 9,6%, as bolsas chinesas (Shangai, Shenzhen e
Hong Kong) baixaram igualmente.
Na segunda-feira 2/Março, a seguir a (promessas de)
intervenções maciças dos bancos centrais para sustentar as
bolsas, os índices retomaram a alta salvo na de Londres. Na
terça-feira 3/Março, o banco central dos Estados Unidos, o Fed,
entrou em pânico, baixou em 0,5% sua taxa directora, o que constitui uma
redução considerável. A nova taxa directora do Fed
situa-se doravante num intervalo de 1 a 1,25%. É preciso saber que a
taxa de inflação nos Estados Unidos entre Fevereiro/2019 e
Janeiro/2020 atingiu 2,5%, o que quer dizer que a taxa de juro real do FED
é negativa. A grande imprensa escreve que esta medida visa sustentar a
economia americana ameaçada pela epidemia COVID-10. O diário
francês
Le Figaro
titula: "O coronavirus precipita uma forte baixa da taxa directora do
Fed" (
www.lefigaro.fr/...
ver também em inglês
edition.cnn.com/...
).
Ora, a má saúde da economia americana data de bem antes dos
primeiros casos de coronavirus na China e destes efeitos sobre a economia
mundial (ver
www.cadtm.org/...
). Em resumo, o Fed e a grande imprensa não dizem a verdade quando
explicam que a medida é destinada a enfrentar o coronavirus. Apesar da
decisão do Fed, na terça-feira 3/Março o S&P 500 baixou
novamente 2,81%, o Dow Jones baixou 2,9% (
edition.cnn.com/2020/03/03/investing/dow-stock-market-today/index.html
). Nos dias 3 e 4 de Março, várias bolsas asiáticas
experimentaram igualmente uma baixa. Não se pode excluir uma
reascensão da bolsa de Nova York em 4/Março para saudar o retorno
de Joe Biden à corrida presidencial nos Estados Unidos aquando das
primárias democratas de 3/Março pois isto representa para eles um
alívio frente a Bernie Sanders, que entretanto continua à frente.
Joe Biden é claramente o candidato do establishment democrata e dos
miliardários que apoiam este partido. De notar igualmente que Donald
Trump, num tweet da semana passada, ligou a sua sorte àquela da bolsa na
Wall Street. Em 26/Fevereiro ele conclamou seus colegas dos 1% mais ricos a
não venderem suas acções e a sustentarem a bolsa. Ele
além disso afirmou que se fosse reeleito à presidência dos
Estados Unidos em Outubro/2020 a bolsa ascenderia enormemente mas que se
perdesse assistir-se-á a um crash bolsista de uma amplitude nunca vista
(segundo o Financial Times, Trump anunciou que "The market will 'jump
milhares e milhares de pontos se eu vencer', ... "and if I don't, you're
going to see a crash like you've never seen before. I really mean it".
www.ft.com/content/399783e2-57e9-11ea-a528-dd0f971febbc
). O que se vai passar precisamente nos mercados bolsistas nos próximos
dias e semanas é imprevisível mas é muito importante
analisar as verdadeiras causa da crise financeira em curso.
Os grandes media afirmam de maneira ultra simplificadora que esta queda
generalizada das bolsas de valores é provocada pelo coronavirus e esta
explicação é retomada amplamente nas redes sociais. Ora,
não é o coronavirus e sua expansão que constituem a causa
da crise, a epidemia é apenas um elemento detonador. Todos os factores
de uma nova crise financeira estão reunidos há vários
anos, pelo menos desde 2017-2018 (ver
www.cadtm.org/Tout-va-tres-bien-madame-la
datado de Novembro/2017,
www.cadtm.org/Tot-ou-tard-il-y-aura-une-nouvelle-crise-financiere
datado de Abril/2018, ver mais recentemente
pour.press/...
). Quando a atmosfera está saturada de matérias
inflamáveis, a qualquer momento uma fagulha pode provocar a
explosão financeira. Era difícil prever de onde a fagulha iria
partir. A fagulha desempenha o papel de detonador mas não é ela
que é a causa profunda da crise. Não sabemos ainda se a forte
queda bolsistas do fim de Fevereiro/2020 vai "degenerar" numa enorme
crise financeira. É uma possibilidade real. O facto de que a queda
bolsista coincide com os efeitos da epidemia do coronavirus sobre a economia
produtiva não é fortuito, mas dizer que o coronavirus é a
causa da crise é uma contra-verdade. É importante ver de onde vem
realmente a crise e não ser enganado pelas explicações que
lançam uma cortina de fumo diante das causas reais.
O Grande Capital, os governantes e os media a seu serviço têm todo
o interesse nas costas de um vírus o desenvolvimento de uma grande crise
financeira e económica, pois isto lhes permite lavar as mãos
(desculpem-me a expressão).
A queda das cotações bolsistas estava prevista bem antes que o
coronavirus fizesse a sua aparição.
As cotações das
acções
e o preço dos
títulos de dívida
(também chamados
obrigações
) aumentaram de um modo totalmente exagerado em relação à
evolução da produção no decorrer dos últimos
dez anos, com uma aceleração no decorrer dois últimos dois
ou três anos. A riqueza dos 1% mais ricos também cresceu
fortemente pois ela está baseada amplamente no crescimento dos
activos
financeiros.
É preciso sublinhar que o momento em que intervém a queda das
cotações bolsistas é o resultado de uma escolha
(não falo de complot): uma parte dos muito ricos (o 1%, o Grande
Capital) decidiu começar a vender as acções que adquiriu
pois considera que toda festa financeira tem um fim e, ao invés de a
sofrer, ele prefere tomar a dianteira. Estes grandes accionistas preferem ser
os primeiro a vender a fim de obterem os melhores preços
possíveis antes de a cotação das acções
baixar muito fortemente. Grandes sociedade de investimentos, grandes bancos,
grandes empresas industriais e miliardários dão a ordem aos
traders
para venderem uma
parte
das acções ou do títulos de dívidas privadas (ou
seja, obrigações) que possuíam a fim de embolsar os 15% ou
20% de alta dos últimos anos. Eles dizem que é o momento de
fazê-lo: chamam a isto tomar os "seus ganhos". Segundo eles,
tanto pior se isto implica um efeito de venda em manada. O importante ao seu
ver é vender antes dos outros. Isto pode provocar um efeito
dominó e degenerar numa crise generalizada. Eles o sabem e dizem para si
próprios que acabarão por se safar sem demasiado prejuízo
como aconteceu para grande número dentre eles em 2007-2009. É o
caso nomeadamente nos Estados Unidos dos dois principais fundos de investimento
e de gestão de activos Black Rock e Vanguard que se saíram bem,
assim como do Goldman Sachs, Bank of America, Citigroup ou a Googloe, Apple,
Amazon, Facebook, etc.
Outro elemento importante a sublinhar: os 1% vendem acções de
empresas privadas, o que provoca uma queda das suas cotações e
arrasta a queda das bolsas. Ou ao mesmo tempo eles compram títulos da
dívida
pública considerados como valores seguros. É nomeadamente o caso
nos Estados Unidos onde o preço dos títulos do tesouro
estado-unidense aumentou na sequência de uma procura muito forte. De
notar que um aumento do preço dos títulos do tesouro que se
vendem no mercado secundário tem como consequência baixar o
rendimento destes títulos. Os ricos que compram estes títulos do
Tesouro estão dispostos a um rendimento fraco, pois o que procuram
é a segurança num momento em que a cotação das
acções das empresas está em baixa. Em consequência,
há que sublinhar que mais uma vez são exactamente os
títulos dos Estados que são considerados pelos mais ricos como os
mais seguros. Mantenhamos isto na cabeça e estejamos prontos a
dizê-lo publicamente pois há que esperar que dentro em breve
retorne o refrão bem conhecido da crise das dívidas
pública e dos temores dos mercados em relação a
títulos públicos.
Mas vejamos outra vez o que se passa repetitivamente desde há pouco mais
de trinta anos, ou seja, desde o aprofundamento da ofensiva neoliberal e da
grande desregulamentação dos
mercados financeiros
[1]
: o Grande Capital (os 1%) reduziu a parte que ele investe na
produção e aumentou a parte que ele põe em
circulação na esfera financeira (isto inclui o caso de uma firma
"industrial" emblemática como a Apple). Ele fez isso no
decorrer dos anos 1980 e isso produziu a crise do mercado obrigacionista de
1987. Ele fez mais uma vez isso no fim dos anos 1990 e isso produziu a crise
das dot-com e da Enron em 2001. Ele refez isso entre 2004 e 2007 e isso
produziu a crise das
subprimes,
dos
produtos estruturados
e uma série de falências fulminantes como a do Lehman Brothers em
2008. Desta vez, o Grande Capital especulou principalmente com a alta dos
preços das acções em
bolsa
e com o preço dos títulos da dívida no mercado
obrigacionista (ou seja, o mercado onde vendem as acções das
empresas privadas e os títulos de dívidas emitidos pelos Estados
e outros poderes públicos). Dentre os factores que provocaram a alta
extravagante dos preços dos activos financeiros (acções em
bolsas e títulos de dívidas privadas e públicas), é
preciso considerar a acção nefastas dos grandes bancos centrais
desde a crise financeira e económica de 2007-2009. Analisei isto em
www.cadtm.org/...
.
Portanto, este fenómeno não data da véspera da crise de
2008-2009, ele é recorrente no quadro da financiarização
da economia capitalista. E antes disso o sistema capitalista também
havia experimentado fases importantes de financiarização, tanto
no século XIX como nos anos 1920, o que conduziu à grande crise
bolsista de 1929 e ao período prolongado de
recessão
dos anos 1930. Assim, o fenómeno da financiarização e
desregulamentação foi parcialmente abafado durante 40 anos
após a grande depressão dos anos 1930, a Segunda Guerra Mundial e
a radicalização da luta de classes que se seguiu. Até o
fim dos anos 1970, não houve mais grandes crises bancárias ou
bolsistas. As crises bancárias e bolsistas ressurgiram quando os
governos deram todas as liberdades ao Grande Capital para fazer o que quisesse
no sector financeiro.
Retornemos à situação dos últimos anos. O Grande
Capital, o qual considera que a taxa de rentabilidade que ele extrai da
produção não é suficiente, desenvolve as
actividades financeiras não directamente ligadas à
produção. Isto não quer dizer que ele abandone a
produção, mas que desenvolve proporcionalmente mais as suas
aplicações na esfera financeira do que os seus investimentos na
esfera produtiva. É o que se chama a financiarização ou a
mundialização
financiarizada. O capital
"faz lucro"
a partir do capital fictício por actividades grandemente especulativas.
Este desenvolvimento da esfera financeira aumentar o recurso ao endividamento
maciço das grandes empresas e inclusive firmas como a Apple (escrevi uma
série de artigos acima
www.cadtm.org/...
).
O capital fictício é uma forma do capital, ele se desenvolve
exclusivamente na esfera financeira sem verdadeira ligação
à produção (ver caixa: O que é o capital
fictício?). É fictício no sentido de que não
repousa directamente sobre a produção material e sobre a
exploração
directa
do trabalho humano e da natureza. Digo bem exploração directa
pois evidentemente o capital fictício especula sobre o trabalho humano e
sobre a natureza, o que geralmente degrada as condições de vida
dos trabalhadores e da própria natureza.
O que é o capital fictício?
"O capital fictício é uma forma de capital (títulos
da dívida pública, acções, créditos) que
circula ao passo que os rendimentos da produção aos quais ele
dá direito não são senão promessas cujo desfecho
é por definição incerto". Entrevista com
Cédric Durand realizada por Florian Gulli, "Le capital fictif,
Cédrid Durand",
La Revue du projet:
projet.pcf.fr/70923
.
Segundo Michel Husson, "o quadro teórico de Marx permite-lhe a
análise do 'capital fictício', o qual pode ser definido como o
conjunto dos activos financeiros cujo valor repousa sobre a
capitalização de um fluxo de receitas futuras: "Chama-se
capitalização a constituição do capital
fictício" [Karl Marx, O Capital, Livro III]. Se uma
acção proporciona um rendimento anual de 100£ e a taxa de
juro é de 5%, seu valor capitalizado será de 2000£. Mas este
capital é fictício, na medida em que "não lhe resta
absolutamente nenhum traço de uma relação qualquer com o
processo real de valorização do capital" [Karl Marx, O
Capital, Livro III]. Michel Husson, "Marx et la finance: une approche
actuelle",
À l'Encontre,
Dezembro/2011,
alencontre.org/economie/marx-et-la-finance-une-approche-actuelle.html
Para Jean-Marie Harribey: "As bolhas explodem quando o afastamento entre
valor realizado e valor prometido se torna demasiado grande e certos
especuladores compreendem que as promessas de liquidação
lucrativa não poderão ser honradas para todos; por outras
palavras, quando as mais-valias financeiras jamais poderão ser
realizadas por falta de mais-valia suficiente na produção".
Jean-Marie Harribey, "A inconsistência do capital fictíci,
leitura do Capital fictif de Cédrid Durand",
Les Possibles,
Nº 6, Primavera 2015.
france.attac.org/...
Ler igualmente François Chesnais, "Capital fictício,
ditadura dos accionistas e dos credores: questões do momento
presente",
Les Possibles,
Nº 6, Primavera 2015:
france.attac.org...
Estou de acordo com Cédric Durand quando ele afirma: "Uma das
consequências políticas importantes desta análise é
que a esquerda social e política deve tomar consciência do
conteúdo de classe da noção de estabilidade financeira.
Preservar a estabilidade financeira é actuar de modo a que as
pretensões do capital fictício se realizem. Para libertar nossas
economias do império do capital fictício, precisamos nos empenhar
numa desacumulação financeira. Concretamente, isto remete de modo
claro para a questão da anulação das dívidas
pública e da dívida privada das famílias modestas, como
também para a diminuição dos rendimentos de accionistas, o
que se traduz mecanicamente por uma diminuição da
capitalização bolsista. Não nos enganemos, tais objectivos
são muito ambiciosos: eles implicam inelutavelmente socializar o sistema
financeiro e romper com a liberdade de circulação do capital. Mas
eles permitem dominar precisamente certas condições
indispensáveis para virar a página do neoliberalismo".
Cédrid Durand, "Sobre o capital fictício, Resposta a
Jean-Marie Harribey",
Les Possibles,
Nº 6, Primavera 2015:
france.attac.org/
|
O capital fictício deseja captar uma parte da riqueza produzida na
produção (os marxistas dizem uma parte da mais-valia produzida
pelos trabalhadores na esfera da produção) sem sujar as
mãos, ou seja, sem passar pelo facto de ser investido directamente na
produção (sob a forma de compra de máquinas,
matérias-primas, pagamento da força de trabalho humana sob a
forma de salários, etc). O capital fictício é uma
acção cujo possuidor espera que lhe traga um dividendo. Ele
comprará uma acção Renault se esta prometer um bom
dividendo mais poderá também revender esta acção
para comprar uma acção General Electric ou Glaxo Smith Kline ou
Nestlé ou Google se esta prometer um melhor dividendo. O capital
fictício é também uma obrigação de
dívida emitida por uma empresa ou um título da dívida
pública. É também um
derivado,
um produto estruturado... O capital fictício pode dar a ilusão
de que gera lucros por si mesmo ainda que estando destacado da
produção. Os
traders,
os
brokers
ou dirigentes das grandes empresas estão convencidos de que
"produzem". Mas, num certo momento, uma crise brutal explode e uma
massa de capitais fictícios esfuma-se (queda das cotações
bolsistas, quedas dos preços no mercado obrigacionista, queda dos
preços do imobiliário...).
O Grande Capital, de maneira repetida, quer acreditar ou fazer acreditas que
ele é capaz de transformar o chumbo em ouro na esfera financeira, mas de
maneira periódica a realidade chama-o à ordem e a crise explode.
Quando a crise explode é preciso distinguir entre o elemento detonador
de uma parte (hoje, a pandemia do coronavirus pode constituir o detonador) e as
causas profundas, de outra parte.
No decorrer das últimas duas década houve um enfraquecimento
muito importante da produção material. Em várias grandes
economias como as da Alemanha, do Japão (último trimestre de
2019), da França (último trimestre 2019) e da Itália, a
produção industrial recuou ou enfraqueceu-se fortemente (China e
Estados Unidos). Certos sectores industriais que haviam experimentado um
ressurgimento após a crise de 2007-2009, como a indústria do
automóvel, reentraram numa crise muito forte nos anos 2018-2019 com uma
queda muito importante das vendas e da produção. A
produção na Alemanha, o principal construtor automóvel
mundial, baixou 14% entre Outubro/2018 e Outubro/2019
[2]
. A produção automóvel caiu fortemente em França em
2020. A produção de outra jóia da economia alemã, o
sector que produz as máquinas e os equipamentos, baixou 4,4% só
no mês de Outubro/2019. É caso igualmente do sector da
produção de máquinas-ferramenta e de outros equipamentos
industriais. O comércio internacional estagnou. Num período mais
longo, a taxa de lucro baixou ou estagnou na produção material,
os ganhos de produtividade também baixaram.
Em 2018-2019, estes diferentes fenómenos da crise económica na
produção manifestaram-se muito claramente, mas como a esfera
financeira continuava a funcionar em regime pleno, os grandes media e os
governos faziam tudo para afirmar que a situação era globalmente
positiva e que aqueles e aquelas que anunciavam uma próxima grande crise
financeira acrescentando-se ao nítido abrandamento da
produção eram apenas profetas da desgraça.
O ponto de vista de classe social também é muito importante: para
o Grande Capital, enquanto a roda da fortuna na esfera financeira continuar a
girar, os jogadores permanecem na pista e felicitam-se pela
situação. Passa-se o mesmo para todos os governantes pois
actualmente eles estão ligados ao Grande Capital, tanto nas velhas
economias industrializadas como a América do Norte, a Europa ocidental
ou o Japão como na China, na Rússia ou nas outras grandes
economias ditas emergentes.
Apesar do facto de que em 2019 a produção real cessou de crescer
de maneira significativa ou começou a estagnar ou a baixar, a esfera
financeira continuou a sua expansão: as cotações em bolsa
continuaram a aumentar, atingiram mesmo topos, o preço dos
títulos das dívidas privadas e públicas continuou a sua
progressão para o alto, o preço do imobiliário
recomeçou a crescer numa série de economias, etc.
Em 2019, a produção enfraqueceu (China e Índia), estagnou
(uma boa parte da Europa) ou começou a baixar no segundo semestre do ano
(Alemanha, Itália, Japão, França) nomeadamente porque a
procura global baixou: a maior parte dos governos e do patronato intervêm
para fazer baixar os salários, as pensões, o que reduz o consumo
pois o endividamento das famílias, em aumento, não basta para
aliviar a baixa de rendimentos. Da mesma forma, os governos prolongam uma
política de austeridade que implica uma redução das
despesas públicas e dos investimentos públicos. A
conjunção da queda do poder de compra da maioria da
população e a baixa das despesas públicas implicam uma
queda da procura global e, portanto, uma parte da produção
não encontra saídas suficientes, o que implica uma baixa da
actividade económica
[3]
.
É importante precisar em que ponto de vista se situa: falo de crise da
produção não porque sou um adepto do crescimento da
produção. Sou pela organização (a
planificação) do decrescimento a fim de responder nomeadamente
à crise ecológica em curso. Portanto, pessoalmente, a queda ou a
estagnação da produção a nível mundial
não me aflige, ao contrário. Esta muito bem se se produzem menos
carros individuais e se as suas vendas caírem. Em contrapartida, para o
sistema capitalista, não se passa o mesmo: o sistema capitalista tem
necessidade de desenvolver sem cessar a produção e de conquistar
sem cessar novos mercados. Quando ele não consegue ou quando
começa a atrasar-se, responde à situação
desenvolvendo a esfera da
especulação
financeira e emitindo cada vez mais capitais fictícios não
ligados directamente à esfera produtiva. Isto parece funcionar durante
anos e depois, num momento dado, as bolhas especulativas explodem. Em
vários momentos da história do capitalismo a lógica da
expansão permanente do sistema capitalista e da produção
exprimiu-se por guerra comerciais (e é novamente o caso hoje,
nomeadamente entre os Estados Unidos e os seus principais parceiros) ou por
guerras verdadeiras e esta questão hoje não está de todo
excluída.
Se se situa do ponto de vista das classes sociais exploradas e espoliadas que
constituem a esmagadora maioria da população (daí a imagem
dos 99% opostos aos 1%), é claro que a conclusão é de que
é preciso romper radicalmente com a lógica da
acumulação de capital quer ele seja produtivo ou financeiro, ou
produtivo financiarizado, pouco importam os nomes. É preciso encetar de
imediato e planificar de maneira urgente o decrescimento para combater a crise
ecológica. É preciso produzir menos e melhor. A
fabricação de certos produtos vitais para o bem-estar da
população deve crescer (construções e
renovações de habitações decentes, transportes
colectivos, centros de saúde e hospitais, distribuição de
água potável e tratamento das águas residuais, escolas,
etc) e outras produções devem baixar radicalmente (viaturas
individuais) ou desaparecer (fabricação de armas). É
preciso reduzir radicalmente brutalmente as emissões de gás de
efeito estufa
[NR]
. É preciso reconverter toda uma série de indústrias e de
actividades agrícolas. É preciso anular uma grande parte das
dívidas pública e, em certos casos, a totalidade destas. É
preciso expropriar sem indemnização e transferir para o
serviço público os bancos, as seguradoras, o sector da energia e
outros sectores estratégicos. É preciso atribuir outras
missões e outras estruturas aos bancos centrais.
Existem outras medidas, tais como a execução de uma reforma
fiscal global com uma forte tributação do capital, uma
redução global do tempo de trabalho com empregos
compensatários e a manutenção dos níveis de
salário, a gratuidade dos serviços de saúde
pública, educação, transportes públicos, medidas
eficazes para garantir a igualdade entre os sexos. É preciso repartir as
riquezas respeitando a justiça social e fazendo primar os direitos
humanos e o respeito dos frágeis equilíbrios ecológicos.
A grande massa da população que vê os seus rendimentos
reais diminuírem ou estagnarem (o seja, o seu poder de compra real)
compensa esta baixa ou esta estagnação pelo recurso ao
endividamento a fim de manter seu nível de consumo e, inclusive, sobre
questões vitais (como encher seu frigorífico, como garantir a
escolaridade das crianças, como se deslocar para ir ao trabalho se for
preciso comprar um carro por não haver transportes em comum, como pagar
certos cuidados de saúde, etc). É preciso dar
soluções radicais a este endividamento crescente de uma maioria
da população nos quatro cantos do planeta e recorrer a
anulações de dívida. É preciso portanto anular uma
grande parte das dívidas privadas das famílias (nomeadamente das
dívidas estudantis, as dívidas hipotecárias abusivas, as
dívidas abusivas de consumo, as dívidas ligadas ao
micro-crédito abusivo...). É preciso aumentar os rendimentos a
maioria da população e melhorar fortemente a qualidade dos
serviços públicos na saúde, educação,
transportes colectivos, praticando a gratuidade.
Estamos confrontados com uma crise multidimensional do sistema capitalista
mundial:
crise económica, crise comercial, crise ecológica, crise de
várias instituições internacionais que fazem parte do
sistema de dominação capitalista do planeta
(OMC, NATO, G7, crise no Fed o banco central dos Estados Unidos ,
crise no Banco Central Europeu),
crise política nos países importantes
(nomeadamente nos Estados Unidos entre os dois grandes partidos do grande
capital),
crise de saúde pública, guerras...
No espírito de um grande número de pessoas em numerosos
países, a rejeição do sistema capitalista é mais
elevada do que nunca no decorrer das últimas cinco décadas, desde
o princípio da ofensiva neoliberal sob Pinochet (1973), Thatcher (19798)
e Reagan (1980).
A abolição das dívidas ilegítimas, esta forma de
capital fictício, deve ser inscrita num programa muito mais vasto de
medidas suplementares. O eco-socialismo deve ser posto no cerne das
soluções e não deixado de lado. Devemos travar a luta
contra a crise multidimensional do sistema capitalista e nos empenharmos
resolutamente no caminho de uma saída ecologistda-feministra-socialista.
Trata-se de uma necessidade absoluta e imediata.
04/Março/2020
[1] Ver Éric Toussaint,
Bancocratie
, 2014, chapitre 3 « De la
financiarisation/dérèglementation des années 1980 à
la crise de 2007-2008 ».
[2] A indústria automóvel alemã emprega 830 mil
trabalhadores e 2 milhões de empregos conexos dela dependem directamente
(Fonte:
Financial Times,
, « German industrial output hit by downturn », 7-8
décembre 2019).
[3] Quanto à explicação das crises, entre os
economistas marxistas, "duas grandes escolas" se defrontam: aquela
que explica as crises pelo sub-consumo das massas (a
super-produção de bens de consumo); e aquela que as explica pela
"super-acumulação" (a insuficiência do lucro para
prosseguir a expansão da produção dos bens de equipament).
Esta querela não é senão uma variante do velho debate
entre os partidários da explicação das crises pela
"insuficiêncvia da procura global" e os da
explicação pela "desproporcionalidade". Ernest
Mandel.
La crise 1974-1982. Les faits. Leur interprétation marxiste
, 1982, Paris, Flammarion, 302 p. Na sequência de Ernest Mandel,
considero que a explicação da crise actual deve ter em conta
vários factores que não se podem reduzir ou a uma crise produzida
pela super-produção de bens de consumo (e portanto uma
insuficiência da procura) ou à super-acumulação de
capitais (e portanto a insuficiência do lucro).
[NR] Um falso problema como resistir.info tem afirmado numerosas vezes.
Acerca do Capital fictício, ver também:
Verbete da Grande Enciclopédia Soviética
Reflexões sobre a crise
, Remy Herrera
Crise: algumas perguntas e respostas
, Jorge Figueiredo
Crises, os desenlaces possíveis
, Jorge Figueiredo
O capital fictício, como a finança se apropria do nosso futuro
, Daniel Vaz de Carvalho
[*]
Doutorado em ciências políticas pelas universidade de Liège
e de Paris VIII, porta-voz do CADTM internacional e membro do Conselho
científico do ATTAC França.
O original encontra-se em
www.cadtm.org/...
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
.
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