Notícias podres do reino da Dinamarca

por Sven Tarp [*]

Ao defender uma falsa liberdade de expressão, o governo dinamarquês viola e limita a verdadeira

. No dia 24 de Fevereiro, o Serviço de Informações da Polícia Dinamarquesa (PET) pôs-se em contacto com o fornecedor de Internet do Arbejderen (O Trabalhador) , jornal diário publicado pelo Partido Comunista da Dinamarca ML em versão impressa e electrónica. A polícia obrigou o fornecedor a retirar um Apelo, redigido pela associação Rebelião, da página web do jornal, sob a ameaça de, caso não o fizesse, ser julgado segundo a legislação "antiterrorista".

Violação das leis dinamarquesas

A acção da polícia constitui uma clara violação da actual legislação dinamarquesa. Nesse mesmo dia, a polícia tentou retirar o Apelo de várias outras páginas web, das quais duas – a página da Juventude Vermelha e a do grupo parlamentar da Aliança Vermelha-Verde – foram parcial ou totalmente encerradas. Todas estas acções constituem claras violações da liberdade de expressão, tão hipocritamente elogiada pelos reaccionários círculos dominantes durante a chamada crise dos cartoons.

No entanto, a censura levada a cabo pela polícia contra a página web do Arbejderen é ainda mais séria e de especial gravidade pois, segundo a Constituição Dinamarquesa, é expressamente proibido reintroduzir a censura na Dinamarca. Além disso, a Lei de Responsabilidade Mediática estabelece que o director é o único responsável pelo que se publica no seu jornal, e caso a polícia suspeite que o material publicado constitui uma infracção à lei, não pode agir por sua própria conta, devendo responsabilizar o director – e não o fornecedor de Internet – e levar o caso perante um juiz, antes de agir.

Como vemos, a lei dinamarquesa é muito clara neste domínio, mas no dia 24 de Fevereiro a polícia actuou sem um mandado judicial e sem informar quer os proprietários quer os editores do jornal. Conhecidos especialistas jurídicos estão de acordo em que a censura feita pela polícia contra o Arbejderen constitui uma flagrante violação da legislação dinamarquesa. Até a Associação de Diários Dinamarqueses, à qual o Arbejderen pertence, confirmou a ilegalidade da acção policial.

O Partido Comunista da Dinamarca ML, através do director do seu jornal, enviou uma carta de protesto à polícia, a qual até agora não comentou. Outra carta foi enviada ao primeiro ministro, Anders Fogh Rasmussen, que é também ministro da Comunicação Social. No entanto, o primeiro ministro que, em nome da liberdade de expressão, durante a crise dos cartoons defendeu muito activamente o alegado direito de o Jyllands-Posten insultar os muçulmanos, deu a entender que só responderá daqui a um mês.

A legislação "antiterrorista"

O Partido Comunista da Dinamarca ML considera que a censura contra o seu jornal representa mais um sintoma da transformação totalitária que se tem operado no Estado dinamarquês durante as duas últimas décadas. Este processo acelerou-se nos últimos anos, especialmente depois do 11 de Setembro de 2001, com a subsequente introdução das leis "antiterroristas", que constituem um fenómeno mais ou menos comum em todas as "democracias" ocidentais.

É bem sabido que estas leis não pretendem somente combater terroristas, reais ou imaginários, mas também os comunistas e outras forças progressistas que, de uma forma ou outra, constituem um desafio à ordem actual. Como tal, representam uma restrição dos direitos cívicos e das liberdades fundamentais. Não constitui surpresa que a primeira organização condenada segundo a versão dinamarquesa da legislação "antiterrorista" tenha sido a Greenpeace, por ter colocado um cartaz num edifício de Copenhaga!

A legislação "antiterrorista" estende-se a cada vez mais esferas da vida quotidiana. Na semana passada, por exemplo, a ministra da Justiça, Lene Jespersen, anunciou uma série de novas leis que, entre muitas outras coisas, permitirão aos Serviços de Informações da Policia e do Exército o livre acesso – sem mandado judicial – a todos os registos públicos que contenham dados pessoais de todo o tipo, desde o pagamento de impostos até à saúde de cada indivíduo. Como a Dinamarca é um dos países com mais registos em todo o mundo, estas leis significarão que o Estado poderá dispor de informações quase completas sobre cada cidadão do país. A ministra da Justiça anunciou que se podem aguardar mais leis deste tipo no futuro.

Na semana passada também vimos outra expressão da evolução totalitária do Estado dinamarquês. Durante uma reunião na Cidade do Cabo, na África do Sul, do Grupo de Acção Financeira (GAFI), que é um grupo de tipo "antiterrorista" instituído pelo G-8, o governo dinamarquês, juntamente com outros 33 países membros da OCDE, comprometeu-se a vigiar " as associações voluntárias e os seus membros, para evitar que estas associações sejam utilizadas por terroristas para transferir dinheiro ". Ou seja, esta nova medida "antiterrorista" foi decidida por uma organização internacional e aceite pelo governo dinamarquês sem nenhum tipo de discussão no Parlamento dinamarquês. Parece que os tradicionais procedimentos democráticos já não convêm ao muito "democrático" Estado dinamarquês e aos igualmente "democráticos" Estados da OCDE.

A oposição à legislação "antiterrorista"

É compreensível que a totalitária legislação "antiterrorista" tenha gerado uma oposição cada vez maior. Uma expressão desta oposição é a associação de base Rebelião, fundada em 2004, para desafiar as leis "antiterroristas" que, entre outras coisas, criminalizam a solidariedade com os movimentos revolucionários e de libertação nacional que os EUA e a União Europeia, de forma arbitrária, colocaram nas suas chamadas listas "antiterroristas".

Pela sua história e pelos seus objectivos seculares, democráticos e humanistas, a Rebelião decidiu desde o princípio concentrar o seu trabalho em duas organizações deste tipo, as FARC da Colômbia e a FPLP da Palestina, e apoiá-las moral e financeiramente. Meses depois, a Rebelião, desafiando as leis "antiterroristas" dinamarquesas, enviou publicamente significativas somas de dinheiro a essas duas organizações.

No verão de 2005, a Rebelião publicou um Apelo Internacional às organizações democráticas de toda a Europa para que tomassem " partido no desafio constante contra a legislação europeia antiterrorista e contra a 'lista de terroristas' da União Europeia ". Pouco depois, o porta-voz da associação, Patrick Mac Manus, foi detido e acusado, ao abrigo da secção "antiterrorista" do Código Penal Dinamarquês, de apoiar organizações constantes da "lista de terroristas" da União Europeia, uma acusação que pode mantê-lo preso durante dez anos. Ao mesmo tempo, a polícia retirou – desta vez com um mandado judicial – o Apelo da página web da Rebelião, depois de a associação se ter negado a fazê-lo.

Como resposta a tudo isto, o Arbejderen, juntamente com outros partidos e organizações democráticas e da esquerda, decidiu colocar o Apelo na sua própria página web. Três meses depois, o seu director recebeu uma carta na qual a polícia de Copenhaga lhe pedia que retirasse o Apelo da página web do jornal. No dia 13 de Dezembro, o Arbejderen e outras onze organizações, que hospedavam o Apelo, reuniram-se e decidiram não acatar o pedido da polícia.

Oito dias depois, o Arbejderen decidiu procurar "asilo político" para o Apelo, que imediatamente foi colocado, em três línguas, num total de 25 páginas web de toda a Europa, além de numa série de outras páginas de organizações comunistas e progressistas. A directora do jornal, Birthe Sorensen, afirmou na altura:

"Tomámos esta medida para sublinhar que pensamos que a questão da liberdade de expressão deve ser levada a sério. Discute-se em todo o mundo se o Jyllands-Posten tem o direito de insultar os muçulmanos, e enquanto isso o governo dinamarquês está a introduzir a censura".

Desde então, e até ao dia 24 de Fevereiro, altura em que a polícia interveio de forma claramente ilegal, retirando o Apelo da página web do Arbejderen, não houve nenhum tipo de comunicação entre o jornal e a polícia. Mas quatro dias antes, sete activistas – entre os quais um militante do Partido Comunista da Dinamarca ML– foram detidos e acusados por vender t-shirts de apoio às FARC e ao FPLP. Já estão em liberdade mas, tal como o porta-voz da Rebelião, Mac Manus, podem ser condenados a até dez anos de prisão.

Contradições dentro dos círculos dominantes na Dinamarca

A repressão da liberdade de expressar solidariedade com os movimentos revolucionários e de libertação nacional tem lugar num momento muito especial da história recente da Dinamarca. A crise dos cartoons, que por um lado é uma consequência de décadas de humilhações aos povos muçulmanos e, por outro, o resultado da arrogância e estupidez do actual governo de direita e dos editores do Jyllands-Posten, provocou sérios desentendimentos dentro dos círculos dominantes na Dinamarca.

A revolta dos muçulmanos já se traduziu em importantes perdas económicas para uma série de grandes empresas dinamarquesas, que agora descarregam as suas frustrações sobre o governo. Tanto a Confederação das Indústrias Dinamarquesas como o Conselho Dinamarquês de Agricultura, vieram a público criticar o governo pela forma como lidou com a crise. O director executivo da Grundfos, fabricante de mais de metade das bombas de água a nível mundial, declarou que a sua empresa está a considerar deslocalizar a produção para o exterior, caso o governo não altere a sua posição arrogante.

Por outro lado, tanto dentro do governo, especialmente no Partido Conservador, como entre os restantes partidos parlamentares, com excepção do extremista Partido Popular Dinamarquês, notam-se manifestações de uma frustração crescente e críticas contra a rígida posição do governo durante a crise dos cartoons. Também uma larga série de intelectuais ilustres e até editores de alguns dos principais meios de comunicação se juntaram ao coro de críticas.

Como resposta, o primeiro ministro Anders Fogh Rasmussen e outros ministros e dirigentes do seu Partido Liberal – numa acção sem precedentes na recente história política da Dinamarca – lançaram-se num contra-ataque, acusando o mundo dos negócios de corrupção moral e de só pensar em dinheiro, acusando de hipocrisia os meios de comunicação e os intelectuais e de não defenderem a liberdade de expressão, da qual beneficiam para viver e trabalhar. Desta forma, estamos perante uma dessas raras situações em que um partido político enfrenta a classe social que o apoia.

Até agora, no entanto, a sobrevivência do governo não está em causa, e uma das razões é exactamente o facto de o governo, noutras frentes, tal como a da redução das prestações sociais, das privatizações e da repressão das ideias progressistas, estar a fazer aquilo que o Grande Capital espera dele. Desta forma, resulta que a situação política, apesar das profundas contradições, continua relativamente estável, embora futuramente não se possa descartar uma possível remodelação do governo e do parlamento.

A liberdade de expressão é um conceito de classe

Não é possível ver televisão, escutar rádio e ler um jornal sem assistir ao grande debate que se está a desenvolver na sociedade dinamarquesa, em consequência da crise dos cartoons. Na sua essência, o debate é saudável, mas também encerra grandes perigos, devido à forma como os grandes meios de comunicação entendem a liberdade de expressão.

Por um lado, não perdem nenhuma oportunidade para louvar a liberdade de expressão que se pratica na Dinamarca, especialmente durante a actual crise. Por outro lado, mantêm um forte controlo sobre o debate e esforçam-se por evitar que certas ideias progressistas e comunistas tenham acesso aos grandes meios, privados e públicos, de comunicação. Não se diz quase nada sobre a real ameaça contra a liberdade de expressão. Desta forma, o conceito de tolerância repressiva, formulada há quatro décadas por um filósofo norte-americano, adquire, nas presentes condições, um novo significado e actualidade.

Há alguns dias, o director do Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet, publicou um comentário sobre a crise dos cartoons e a liberdade de expressão, no qual, entre outras coisas, escreveu:

"A liberdade de expressão – pilar fundamental da democracia – não está hoje ameaçada na Europa pelo Islão. Como sabemos, essa liberdade está em perigo por outras causas: a concentração mediática, o poder do dinheiro e os consensos ideológicos".

Ignacio Ramonet tem mil vezes razão quanto à liberdade de expressão "dos de baixo", mas ao mesmo tempo é um facto que a liberdade de expressão "dos de cima" é reforçada pela actual concentração da propriedade nas suas mãos. A liberdade de expressão é um dos termos polémicos e polissémicos que – tal como a democracia – representam dois conceitos diferentes. Embora compartilhem uma origem comum e, até certo ponto, também uma base comum, jamais devemos esquecer que um dos conceitos pertence à classe operária e aos comunistas, enquanto que o outro pertence à burguesia e aos seus ideólogos.

Há alguns anos, a classe dominante da Dinamarca contentava-se com o facto de a concentração mediática aumentar o seu controlo sobre os media, marginalizando a imprensa progressista e revolucionária como o Arbejderen. Depois, começou a proibir a linguagem da verdade, ou seja, as palavras exactas para caracterizar os fenómenos sociais modernos como, por exemplo, chamar racista a um partido racista. Agora, vemos como o Estado intervém para apagar documentos inconvenientes em nome da chamada guerra contra o terrorismo.

Talvez alguém considere que a eliminação de um documento das páginas web do Arbejderen – e de outras organizações – não tem assim tanta importância, e que não vale a pena fazer tanto alarido por isso. No entanto, a verdade é que se trata de uma questão de princípio. Se hoje permitirmos que a polícia dinamarquesa abra um precedente, praticando uma censura arbitrária, isso significará a perda de mais uma batalha na secular luta de classes entre o Trabalho e o Capital, que o Estado utilizará mais tarde para implementar mais medidas reaccionárias contra a imprensa progressista e revolucionária.

Solidariedade internacional

O Partido Comunista da Dinamarca ML considera que a acção policial contra o seu jornal diário – e contra outras organizações progressistas na Dinamarca – faz parte da criminalização geral das forças comunistas e progressistas da Europa, desde a ameaça de proibir a União da Juventude Comunista (KSM) da República Checa, passando pela ilegalização dos comunistas nos países bálticos, até à moção anticomunista parcialmente aprovada pelo Parlamento do Conselho da Europa, no passado mês de Janeiro. É parte integrante da ofensiva geral contra a classe operária e os povos europeus.

Tudo isto mostra que os sectores mais prudentes da burguesia europeia compreendem que o capitalismo moderno, apesar da sua superfície relativamente estável, se caracteriza por uma crise estrutural que, mais tarde ou mais cedo, conduzirá a uma agudização das contradições de classe, pelo que já se estão a preparar para as inevitáveis batalhas do futuro. Em tal situação, ganha uma extrema importância a solidariedade internacional entre os Partidos Comunistas e os movimentos progressistas, solidariedade que deve encontrar formas cada vez mais amplas.

[*] Secretário Internacional do Partido Comunista da Dinamarca ML . Tradução de LP.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
12/Mar/06