Sócrates bebeu a cicuta
mas as convulsões serão sentidas por toda a parte
No Teatro do Absurdo o dramaturgo utiliza o bizarro, um elemento de surpresa,
ambiguidades copiosas e inconsistências frequentes, fundido com
mudanças dramáticas no estado de espírito e algumas
grandes confrontações, a fim de iluminar os nossos lugares
comuns, as vidas correntes. Em contraste, a Europa está a escrever um
roteiro diferente. Algo que tendo a pensar como o Ritual do Absurdo. Nesse
ritual os actores não estão a personificar papéis. Ao
invés disso, ele representam-nos no contexto de peças a que falta
qualquer qualidade dramática mas são embrulhadas em bodes
expiatórios e sacrifícios rituais que muitos antropólogos
associam a comunidades degeneradas.
Tome-se por exemplo o infeliz primeiro-ministro português. Durante meses
ele esteve a apostar a sua carreira política numa posição
de desafio às perspectivas de um "salvamento" do EFSF. Pelo
menos desde Janeiro, ficou claro que o "salvamento" era
inevitável. O BCE de Trichet adiou o inevitável ao comprar
activamente bastantes títulos portugueses a fim de prologar o acto de
Sócrates enquanto houvesse possibilidade de uma solução
abrangente da UE. Quando os nossos grandes líderes se conluiaram para
sabotar qualquer esperança de uma tal solução, Trichet
puxou a tomada. Aterrado pela infindável procura de liquidez por parte
dos bancos da Europa, que é o resultado da crise em curso do euro, ele
decidiu acelerar o ritmo. Com dois movimentos (paragem da compra de
títulos portugueses por tempo suficiente para elevar as taxas de juro
para além dos 7,5 por cento; e pré-anunciando uma alta da taxa de
juro para a eurozona como um todo) ele empurrou Portugal borda fora. Era como
gritar do telhado do BCE: "Deixem começar os jogos
principais!".
O comportamento de Sócrates é indicativo do estado degenerado da
política europeia. Uma vez que se tornou claro para ele que a sua aposta
estava perdida, ele apresentou um conjunto de medidas de austeridade ao
Parlamento sabendo que a oposição as rejeitaria. Ao invés
de uma forma de veneno, a cicuta (isto é, o pedido de um salvamento do
EFSF) oferece a Sócrates uma segunda oportunidade. A
oposição, tendo pretendido abominar as medidas de austeridade de
Sócrates, deve agora convencer o eleitorado português de que a sua
subida ao poder não virá juntamente com medidas de austeridade
ainda mais cruéis. Não há qualquer possibilidade de que
tenha êxito. Portanto a cicuta deu a Sócrates um pouco de
esperança.
Enquanto isso, no centro da Europa, o Ritual do Absurdo assume a sua mais
elevada forma. A Alemanha e a Finlândia pretendem estarem relutantes em
estenderem a mão a Portugal, a troika FMI-UE-BCE está
a ameaçar a Grécia de que a prestação de Abril do
"salvamento" pode não ser paga (mencionando o fracasso de
Atenas em atingir seus objectivos de receitas fiscais) e, mais comicamente,
Atenas e Lisboa estão a fingir temer que os seus respectivos
"salvamentos" estejam em causa. Na realidade, os pagamentos do
"salvamento" tanto a Portugal como à Grécia são
resultados inevitáveis; pois se não forem efectuados o sistema
euro será estraçalhado em poucas horas.
Em suma, nada é como parece. A Europa está presa numa teia de
confusões da sua própria lavra. Enredada nesta teia de
subterfúgios rituais que ela própria fez, a Europa é
absolutamente incapaz de enfrentar a crise. Mas, ai de nós, a realidade
está à espreita no virar da esquina. O movimento de taxa de juro
de Trichet ficará na história como o segundo erro grave do homem
o primeiro deles tendo sido o seu erro assombroso de elevar taxas de
juro em Julho de 2008, sinal seguro de um banqueiro central inconsciente. Desta
vez, a elevação da taxa de juro (a qual ele tenciona aumentar no
próximo par de meses) é um erro ainda mais grave. Por si mesmo,
isto nada fará para travar pressões inflacionárias na
Alemanha ou para aliviar a crise no sector bancário ou na periferia.
Excepto se vier com um raio de esperança. Quanto mais rápido isto
ajudar a propagar o mal-estar à Espanha, maiores as possibilidades de
que a Europa venha a despertar da sua letargia, corte um buraco na teia da
confusão que ela criou tão idiotamente e avance para uma
solução racional da crise. É o que se pode esperar...
08/Abril/2011
[*]
Do Departamento de C. Económicas, Universidade de Atenas.
O original encontra-se em
yanisvaroufakis.eu/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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