A crise sistémica do euro

por Heiner Flassbeck [*]
e Costas Lapavitsas [**]

3. O balanço dos custos e benefícios de ser membro da UEM altera-se rapidamente

Com a dominância alemã sobre os mercados de exportação e a relutância do país em mudar o seu modelo de política económica, a espécie de condicionalidade ligada aos programas de ajustamento nas economias em crise e o respectivo ajustamento disfuncional significa que o custo de permanecer como membro da União Económica e Monetária (UEM) está a aumentar rapidamente. Face a isto, os benefícios de ser membro da UEM, como descrito no princípio deste estudo, são pequenos e estão em contracção.

A desintegração dos mercados de capitais na UEM, após a crise financeira, reduziu rapidamente o benefício de fazer parte desta união monetária e sujeitar-se à política monetária comum. O BCE empenha-se em conter a divergência nas taxas de juro a longo prazo através da introdução do programa LTRO e da intervenção verbal mencionada na última secção. Apesar de isto ter ajudado a estabilizar a situação por algum tempo, os diferenciais de taxa de juro entre países permaneceram, somando-se ao padrão desfavorável de competitividade externa. Os resultados são condições monetárias (taxas de juro e taxas de câmbio reais) que são piores em termos absolutos nos países em défice, onde a situação económica exige estímulos muito mais fortes do que nos países excedentários. Ao mesmo tempo, o recorde de baixa nas taxas de juro dos títulos governamentais dos países excedentários prepara o terreno para uma consolidação facilitada dos seus orçamentos, dadas as condições monetárias benignas que ali estimulam a economia geral.

Isto implica que a divergência original e a direcção geral dos programas de ajustamento desestabilizam a união monetária numa extensão em que a própria sobrevivência da união é gravemente posta em causa. Contudo, os decisores políticos europeus não parecem reconhecer este facto. Nem tão pouco estão desejosos de se empenharem num esforço político para dar meia volta na economia geral e travar o crescimento da divergência. Portanto, a desintegração e o colapso final da união tem de ser considerado seriamente.

O BCE, em particular, teria de seguir muito mais consequentemente uma abordagem política que travasse a divergência de taxas de juro a longo prazo. Mas até agora tem actuado sem muito entusiasmo. Por um lado, o BCE aponta a possibilidade de adoptar medidas rigorosas e pontuais ("seja quais forem as que toma..."). Por outro lado, esquiva-se a realmente implementar tais medidas. Ainda pior: durante as negociações com Chipre o BCE obrigou directamente o governo de Chipre a aceitar a condicionalidade imposta pelo Eurogrupo com a ameaça de cessar a provisão de liquidez aos bancos mais vulneráveis do país. Isto foi um erro grave e uma violação do papel do banco central numa união monetária. O banco central tem de ser o banco central para cada país de um modo absolutamente imparcial e não deveria empenhar-se em chantagear governos. A condicionalidade política ligada aos fundos de salvamento (bail-out) proporcionados por outros países europeus é uma coisa. É o resultado de negociações entre estados soberanos, pelo menos no significado formal da palavra "soberano". Mas a provisão de liquidez pelo banco central é um assunto diferente.

Se o modelo de negócio de bancos individuais se revelar já não viável estes bancos teriam de ser desactivados gradualmente pelas autoridades de supervisão de uma maneira ordenada que incluísse a protecção de depositantes tal como estabelecido nas regras e regulamentos europeus. Mas se os modelos de negócios dos bancos afectados ficarem sujeitos a negociações entre governos e o banco central tomar o partido destes governos e fizer pressão adicional sobre os bancos para reestruturar ou fechar num período de tempo muito curto, isto estabelece um mau precedente e destrói a confiança de depositantes na divisa comum. Igual tratamento dos clientes de bancos por toda a união monetária, e da mesma forma entre depositantes e investidores, é uma pré-condição para um funcionamento monetário ordenado. Esta condição foi violada no caso de Chipre.

4. Uma saída ordeira da UEM dentro da UE

Chipre é o primeiro caso de um país destacado da convertibilidade geral acordada no interior da eurozona. Foram impostas restrições aos movimentos de capitais pelas autoridades de Chipre mas estas restrições foram acordadas com a troika. Isto significa que a divisa da união efectivamente cessou de existir a partir do momento em que uma única entidade não honra as suas obrigações. Além disso, o choque desferido a Chipre e a imposição sobre o país da obrigação de abandonar sua estratégia económica nacional, virtualmente da noite para o dia, levou a preocupações profundas quanto ao futuro de Chipre no interior da eurozona. Pela primeira vez na história da crise europeia, cidadãos foram abalados em tamanha medida que já não é mais tabu falar acerca de uma saída da união monetária.

Na verdade, quando os custos económicos da condição de membro estão a aumentar e os benefícios a contraírem-se, vários países têm de considerar a opção da saída. Não há, entretanto, caminho fácil para a saída de uma união monetária tal como a UEM. Desvalorizar uma divisa que já está em circulação e romper sua convertibilidade fixada com outra divisa, como na Argentina em 2002, é fácil em comparação com os enormes desafios logísticos e políticos de introduzir uma nova divisa.

O maior problema, de longe, é preparar a população. Seria extremamente difícil manter secreto um passo tão importante, ou executá-lo da noite para o dia, ainda que algumas acções tivessem de ser feitas rapidamente. Mas no caso do euro, o medo de perder parte das suas poupanças induziria depositantes a retirarem depósitos dos bancos internos e transferirem-nos para fora. O resultado seria uma corrida bancária que ameaçaria provocar o colapso do sistema bancário. Para evitar um colapso do sistema bancário, seria necessário impor severos controles administrativos sobre os bancos bem como controles sobre fluxos de capitais. No caso de Chipre, contudo, a troika já impôs enormes perdas aos depositantes dos dois maiores bancos. Além disso, a troika e as autoridades cipriotas já impuseram restrições sobre transacções bancárias e sobre fluxos de capitais. O choque para a população já está próximo daquele de uma saída plena da eurozona.

Além do choque imediato e da necessidade de impor controles sobre a banca e os fluxos de capitais, sair do euro também criaria problemas de circulação monetária, particularmente quando o papel-moeda leva tempo a imprimir. A moeda electrónica poderia ser convertida rapidamente, dependendo da lei que governa contratos particulares. Contudo, provavelmente seria necessário para o estado fomentar moeda fiduciária junto à circulação local – notas promissórias (IOUs) de variadas características, muitas vezes emitidas por autoridades locais – para atender às necessidades de liquidez até a nova divisa estar firmemente em vigor. Por algum tempo haveria turbulência monetária e sistemas paralelos de fixação de preços a operarem.

Entretanto, o problema técnico mais complexo no retorno a uma divisa nacional seria encontrar um novo regime cambial viável. A nova divisa podia ser introduzida a uma taxa administrativa de 1:1 em relação ao euro, mas obviamente depreciar-se-ia rapidamente nos mercados de câmbios externos. Para um país pequeno como Chipre que depende vitalmente de importações, a magnitude da desvalorização da nova divisa nacional seria crucial. Se a nova divisa fosse deixada inteiramente ao mercado, haveria um risco significativo de uma queda no seu valor que fosse muito além do que seria justificado para restaurar a competitividade das exportações do país. Uma desvalorização tão profunda provocaria constrangimentos do lado das importações que dificilmente seriam suportáveis. A perspectiva de ter de recorrer ao FMI, pouco depois de a troika ter perdido controle sobre o país seria um pesadelo. Mas esta perspectiva não poderia ser excluída quando os azares de uma saída e a incerteza acerca do futuro do país podem conduzir a procura pela sua divisa a um nível significativamente baixo no curto prazo. Para impedir uma consequência tão insatisfatória seria valioso considerar uma rede de segurança proporcionada por outros países da UE.

Países a considerarem sair da UEM numa situação semelhante àquela de Chipre pensariam duas vezes antes de sair também da UE. A condição continuada de membro da UE poderia mostrar-se importante na manutenção de laços com o mercado comum europeu e portanto dos benefícios do acesso a mercados de exportação uma vez restabelecida a competitividade. A UE tem obrigação moral e prática de preparar-se para uma tal situação, oferecendo assim a países desejosos de dar este grande passo uma saída segura. A UE poderia facilmente proporcionar uma rede segura na forma de um mecanismo monetário conectado à UEM. Seria mesmo possível ressuscitar aspectos do Sistema Monetário Europeu (SME) que foram praticados antes da criação da UEM e que formalmente ainda existem. O novo SME poderia permitir a países ligarem sua nova divisa ao euro a uma taxa razoável, reduzindo portanto o risco de a mesma se tornar um saco de pancada nos mercados financeiros internacionais. Uma tal "saída ordenada" ajudaria a preservar algumas das realizações e o espírito de parceria europeu, sem manter países no colete de força da UEM. A crise tem mostrado que esta tem tendido a destruir as relações amistosas que foram construídas entre países europeus ao longo das últimas cinco décadas.

5. Nem uma união política nem uma união e transferências constituem saídas

Muitas pessoas ainda sonham com uma Europa politicamente unificada que ajudasse a ultrapassar as dificuldades actualmente enfrentadas pela UEM. Do nosso ponto de vista esse sonho não deveria guiar a política. Dada a óbvia incapacidade das instituições europeias para administrar adequadamente a divisa da união, observadores realistas têm de admitir que a sua criação foi um objectivo demasiado ambicioso. A tentativa de avançar mais rapidamente nesse caminho rumo à união política por meio de uma divisa da união não funcionou. Agora, paradoxalmente, a Europa tem de recuar se quiser progredir outra vez.

No cerne do fracasso da UEM jaz o modelo económico mercantilista alemão e a incapacidade dos demais países europeus para questionarem este modelo abertamente e convencer a Alemanha de que não é sequer do próprio interesse do país optar pela competição ao invés da cooperação entre países, em particular entre os membros da união monetária. O reconhecimento de que a falta de um espírito de cooperação será um facto da vida no futuro previsível tem de moldar uma reforma dos arranjos institucionais para uma divisão pacífica do trabalho na Europa. Isto não exige necessariamente uma divisa da união. Sem uma tal divisa da união tornar-se-ia possível utilizar outra vez a desvalorização como um instrumento de política económica e defender-se das tentativas de alguns países de ocupar economicamente outros. A desvalorização na verdade tem sido o mecanismo da história moderna mais frequentemente utilizado para responder aos ataques de um parceiro comercial agressivo sem entrar no proteccionismo directo. Um sistema de desvalorização ordeira (e revalorização no outro lado) pode preservar muito melhor a ideia nuclear sobre a qual foi fundada a integração económica na Europa, nomeadamente o livre comércio, ao invés das disposições actuais (UNCTAD TDR, 2010).

Uma união de transferências, que alguns também vêem como saída, não é factível entre países independentes e soberanos. Nenhum membro da UE quer ficar dependente de um país, a Alemanha, que poderia transferir moeda aos seus vizinhos a fim de lhes permitir comprarem os seus produtos, o que levaria a um ditame alemão quanto às condições de vida diária na Europa.

[*] Heiner Flassbeck: PhD pela Universidade Livre de Berlim, professor honorário da Universidade de Hamburgo, do secretariado da UNCTAD e economista chefe do Instituto Alemão de Investigação Económica, em Berlim.
[**] Costas Lapavitsas: Professor de Teoria Económica na Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, autor de Crisis in the Eurozone .


Excerto do capítulo 5 (Conclusões) de Studien: The systemic crisis of the euro – true causes and effective therapies , publicado pela Fundação Rosa Luxemburgo em Maio/2013.   O texto integral, com 45 pgs. (610 kB), pode ser descarregado aqui . Tradução de JF.


Este estudo encontra-se em http://resistir.info/ .
17/Jul/13