O Euro entre a vida e a morte
por Philippe Prigent,
c/ Sébastien Cochard e Régis Castelnau
O euro, a moeda única, está entre a vida e a morte. Uma
sentença do Tribunal Constitucional Alemão adoptada em 5 de Maio
veio tornar frontais e irredutíveis as divergências no interior da
Zona Euro e que implicam com os mecanismos possíveis de ajuda aos
Estados membros para combater a crise económica decorrente da pandemia
do COVID-19. Como a seguir se explica, a situação resultante da
sentença do Tribunal criou um quadro no qual ou a Alemanha sai do euro
ou as suas posições ditadas constitucionalmente têm ganho
de causa no Banco Central Europeu terminando com as compras de
dívida dos Estados membros. Mas se isto acontecer, países como
França e a Itália terão de por em causa a continuidade no
euro porque as suas economias não sobrevivem sem as compras de
dívida e os mecanismos (não assumidos) de financiamento
monetário através do BCE. O euro, tal como o conhecemos,
está entre a vida e a morte.
Num artigo publicado no seu blog em 21 de Abril, intitulado "Euro, o
milagre ou a morte", Fréderic Lordon disse o seguinte:
"Para que o euro não acabe desta vez existe apenas uma
possibilidade fora da estratégia "círios e milagre":
que a própria Alemanha seja obrigada à solução de
anulação das dívidas para evitar ficar como os parceiros.
A única coisa que pode salvar o euro é que a Alemanha se veja ela
própria incapaz de resistir ao choque titânico decorrente das suas
próprias receitas. E que ela se encontre em situação de
ter de arbitrar entre a manutenção dos seus princípios e a
preservação dos seus interesses essenciais a saber: conter
o desmembramento económico e social. Aquilo que a Alemanha é
rigorosamente incapaz de fazer acertar os seus princípios com os
dos outros talvez possa fazê-lo com ela própria. Ainda
assim, seria necessário que fizesse a arbitragem correcta, que a
tornasse suficientemente forte e rápida para que outros não
passem à frente e que não venha tudo a explodir antes do
Pentecostes alemão. Então, e apenas então, o euro teria
uma derradeira, uma última oportunidade".
É mais que provável que a morte do euro provoque rapidamente a
desintegração da União Europeia.
Em plena crise do COVID, o Tribunal Constitucional Alemão de Karlsruhe
acaba de tomar, em 5 de Maio, uma decisão extraordinária na qual
se mostra que a via germânica é a da recusa da solidariedade
europeia. Em termos simples, esta jurisdição declarou o
princípio da primazia do direito alemão sobre o direito europeu
supranacional. A arbitragem de que fala Lordon parece ter sido determinada pela
decisão de 5 de Maio. Em favor unicamente dos interesses alemães.
Não nos enganemos, o Supremo Tribunal Alemão não tomou
esta decisão de quase 80 páginas por razões de
oportunidade política ou económica mas por razões de
princípio jurídico. Dir-se-á que a missa ficou dita.
Pedi a Philipp Prigent, advogado em Paris, e Sébastien Cochard,
conselheiro de banco central, que nos fizessem um comentário sobre esta
decisão.
Agradeço-lhes por isso
Régis de Castelnau
BCE: O Tribunal Constitucional Alemão lembra a primazia do direito
nacional sobre o direito da União Europeia e inicia o processo de
desmantelamento da Zona Euro
Por Philippe Prigent, advogado de Paris
[1]
e Sébastien Cochard, conselheiro de banco central
[2]
A decisão do Supremo constitucional alemão
("Karlsruhe") de 5 de Maio de 2020
[3]
é histórica.
Por um lado, recorda a primazia do direito nacional sobre o direito da
União Europeia, primazia que resulta das Constituições e
que os Tratados Europeus não podem limitar. Esta decisão é
essencial naquilo em que sublinha a predominância dos princípios
de democracia e de soberania popular, únicas fontes de legitimidade
aceitáveis num Estado de direito.
Por outro lado, esta decisão constitui um ultimato e o primeiro passo,
seja de uma saída da Alemanha do euro, seja de uma
obrigação de saída para a Itália e a França
de qualquer maneira, o fim da Zona Euro tal como a conhecemos. A
decisão de Karlsruhe deverá, deste modo, tomar um lugar na
história, do mesmo modo que a queda do muro de Berlim, como o fim de uma
experiência económica contranatura e radicalmente
antidemocrática de cerca de 40 anos: a união económica e
monetária.
Se a Alemanha é uma democracia, a União Europeia deve manter-se
no seu lugar.
Os altos magistrados alemães estavam confrontados com uma questão
crucial: os juízes nacionais poderão permitir ao seu governo,
à sua administração e ao seu parlamento violar a
própria Constituição pelo facto de as
instituições da União Europeia terem adoptado algumas
decisões supondo ter agido dentro dos limites das suas
competências?
Os magistrados constitucionais de Além-Reno lembram aqui uma
evidência: ninguém pode autorizar entidades criadas pela
Constituição a violar esta Constituição ou a
ignorar o princípio fundamental da democracia.
A democracia é a soberania popular
O tribunal de Karlsruhe começa por lembrar que o direito de voto
previsto na Lei Fundamental alemã não é um direito formal
de escolher parlamentares mas um direito real de influenciar concretamente as
decisões que serão aplicadas aos cidadãos.
A democracia não é o direito de votar mas o direito de escolher a
política a aplicar, pelo que apenas uma política escolhida pelos
cidadãos é legítima. Tudo o que não emanar da
escolha livre dos cidadãos não é limpidamente
democrático e portanto não pode ser aplicado na Alemanha.
A situação faz lembrar as célebres eleições
dinamarquesas de 1943. Os eleitores puderam votar e escolher livremente os seus
representantes mas não viviam realmente em democracia uma vez que os
dirigentes eleitos estavam submetidos, em larga medida, à autoridade
alemã.
O realismo junta-se ao rigor jurídico: como a democracia é o
regime onde o povo (demos) exerce o poder (cratos), se os cidadãos
não puderem determinar a política o regime não é
democrático.
O Tribunal de Justiça da UE posto em causa
A resposta habitual das instituições da União Europeia
é a de que o Tribunal de Justiça da UE decide sozinho o que
está conforme ao direito da União, que as suas decisões se
impõem aos próprios Estados mesmo quando a sua
interpretação dos tratados é arbitrária e que
não existe uma escolha democrática possível contra os
tratados, isto é, as decisões das instituições da
UE validadas pelo Tribunal de Justiça do Luxemburgo. A defesa das
instituições europeias é que apenas o Tribunal de
Justiça pode decidir se estão no seu direito o que conduz
a uma extensão sem limites dos seus poderes, à revelia da
democracia e dos tratados. De cada vez que uma entidade da União
Europeia viola os tratados europeus ou obriga os cidadãos a aceitarem o
que recusam, essa entidade refugia-se no Tribunal de Justiça do
Luxemburgo, que praticamente lhe dá sempre razão.
O Tribunal Constitucional Alemão recorda dois princípios e cada
um deles é suficiente para anular este sofisma.
Por um lado, a democracia deve ter a última palavra na Alemanha mas as
instituições da União Europeia não são
democráticas; portanto, o governo e o parlamento alemães
não podem aceitar as decisões europeias que os privam de poderes
de decisão essenciais. A autoridade que é legítima, porque
foi escolhida pelos cidadãos, deverá fazer respeitar a
decisão dos cidadãos mesmo que seja contra as
instituições da União Europeia.
Quaisquer que sejam as transferências de competências, a
Constituição alemã obriga as instituições
que criou a fazer respeitar a vontade democrática.
Os magistrados de Karlsruhe lembram também que o governo e o parlamento
alemães foram criados pela Lei Fundamental alemã e, por isso,
não poderão violar o seu próprio ADN. Uma autoridade cuja
existência resulta de uma Constituição não
poderá violar a Lei Fundamental. Os anteriores governos e parlamentos
não poderiam assinar, com validade, tratados que submeteriam a Alemanha
a um Tribunal de Justiça desprovido de qualquer legitimidade
democrática.
Ora a Alemanha jamais aceitou expressamente uma tal submissão.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional Alemão recorda que os poderes
da União Europeia assentam sobre o princípio da
atribuição, uma grande diferença entre um
Estado-nação e uma organização internacional como a
União Europeia.
Os Estados dispõem, por natureza, de todos os poderes estatais porque
estes existem por eles próprios. A Alemanha existia antes da
União Europeia, o Reino Unido existia antes da UE e continua a existir
depois de ter abandonado a UE, etc. Ao invés, a UE apenas dispõe
das competências que os Estados-membros lhe quiseram transferir. A
União Europeia não existe de maneira autónoma, ao
contrário dos Estados Unidos ou da Rússia, que existem
independentemente das suas subdivisões internas ("Estados" e
"integrantes da Federação").
O princípio da atribuição é uma das regras
cardinais do direito europeu desde os anos cinquenta. Ora permitir que as
instituições europeias decidam sozinhas sobre o que lhes é
atribuído pode estabelecer o risco de se atingir uma extensão sem
limites dos poderes por hipótese limitados conferidos à UE.
Por exemplo, no caso de se confiar a mandatários a
direcção de uma empresa comum não se pode deixá-los
tomar o controlo das sociedades que criaram em conjunto esta filial sob o
pretexto de que a empresa comum não é controlada por qualquer
sociedade em particular.
Quando o Tribunal de Justiça da União Europeia fracassa
manifestamente na sua missão de controlar a extensão dos poderes
das instituições europeias, os Estados-nação
não são obrigados a obedecer-lhe. Os tratados não se
impõem apenas aos Estados, impõem-se também (e sobretudo)
às entidades criadas pelos tratados.
Deixar o Tribunal do Luxemburgo decidir sozinho sobre a extensão dos
poderes da União Europeia mesmo contra os tratados provocaria uma
constante erosão das competências dos Estados membros na qual os
povos não consentiram. A pretensão do Tribunal de Justiça
do Luxemburgo de decidir sozinho sobre a extensão dos poderes da UE
assenta no artigo 19 do Tratado sobre a UE: "O Tribunal de Justiça
assegura o respeito do direito na interpretação e
aplicação dos tratados"; e no artigo 267 do Tratado sobre o
Funcionamento da UE: "O Tribunal de Justiça da União
Europeia é competente para estatuir, a título prejudicial, sobre
a interpretação dos tratados".
Basta ler estes textos para constatar que não permitem qualquer direito
ao Tribunal de Justiça da União Europeia de estender os tratados
sob a cobertura de interpretação ou de afastar a
aplicação da Constituições dos Estados membros nos
seus territórios.
Essa é a razão pela qual o Tribunal Constitucional Alemão
censura a carência inconstitucional do Parlamento e do Governo
alemães, que deixaram as instituições da União
Europeia intrometer-se nos seus poderes à revelia do princípio da
atribuição.
A fundamentação do Tribunal de Karlsruhe soma-se aqui ao direito
de vários Estados membros. No direito francês, por exemplo, a
Constituição de 1958 e os princípios constitucionais
têm primazia sobre os tratados internacionais, mesmo os europeus (CE 1989
Koné; CE 1998 Sarran; CE 2007 Arcelor).
A que se aplica a decisão de 5 de Maio de 2020?
O Tribunal Constitucional de Além-Reno pronuncia-se apenas sobre o
direito aplicável na Alemanha, de acordo com os princípios que
orientam a sentença que adoptou. Como somente a soberania popular pode
dar força de lei a uma decisão de uma autoridade pública
como o Tribunal de Karlsruhe, as suas decisões apenas se aplicam
às autoridades públicas alemãs.
O Tribunal Constitucional Alemão em nada se impõe, portanto, aos
outros Estados; especifica apenas as obrigações que se
impõem às autoridades constitucionais alemãs. Os
magistrados de Além-Reno restringem-se ao princípio da
territorialidade: a Constituição de um país aplica-se
unicamente no seu território e nunca no estrangeiro. Contrariamente ao
que poderia escrever-se aqui depois de uma leitura superficial, a
sentença de 5 de Maio não emite qualquer instrução
ao Banco Central Europeu: impõe apenas ao governo, ao Parlamento e ao
Banco Central da Alemanha que tomem as medidas necessárias para
respeitar a Constituição sem poderem abrigar-se nas
opiniões do "Tribunal de Justiça" da União
Europeia.
Por outro lado, é possível transpor a fundamentação
para os outros Estados democráticos que conferiram competências
à União Europeia. A França também é uma
democracia, pelo que o seu governo e o seu Parlamento deveriam também
opor-se às decisões da União Europeia que cometem excessos
de poder ou que invadam as escolhas democráticas quando estão em
causa os interesses essenciais do país.
Contrariamente ao que pretendia Jean-Claude Juncker, pelo menos nos direitos
alemão e francês as escolhas democráticas prevalecem sobre
os tratados europeus.
Euro: Alemanha lança um derradeiro ultimato aos seus parceiros europeus.
Ou o Banco Central Europeu (BCE) respeita as regras dos tratados tal como a
Alemanha as entende ou a Alemanha retira-se
A Zona Euro, economicamente suboptimizada e antidemocrática
Nunca será excessivo sublinhar como o euro é um handicap
económico para a maioria dos países que dele são membros,
com excepção da Alemanha. Com efeito, por um lado a
situação de câmbios fixos dá à Alemanha a
oportunidade de tirar proveito, de uma maneira cada vez mais aprofundada, da
sua vantagem em termos de competitividade de preços em prejuízo
dos seus parceiros da Zona Euro, sem que exista qualquer mecanismo que permita
um reajustamento dos saldos externos. Por outro lado, a governança da
União Económica e Monetária retirou ao Estado os seus dois
instrumentos principais de política económica, as
políticas monetária e orçamental, tornadas
"estéreis" ao nível europeu.
A política monetária, única, proibida de
coordenação com os governos e subtraída ao controlo
democrático dos povos pela ideologia inaceitável da
"independência" dos bancos centrais, é estruturalmente
desadequada para a maior parte dos Estados do Euro. Além disso, os seus
objectivos estatutários foram reduzidos o mais estritamente
possível à estabilidade de preços, excluindo assim o apoio
ao crescimento e a procura do pleno emprego, para os quais contribuem todos os
outros bancos centrais do mundo.
Deixou de existir a política orçamental de cada Estado,
completamente entravada pela acumulação de condicionalismos e
handicaps incapacitantes que lhe foram impostos desde 1992. O principal entre
eles é a armadilha da dívida, artificialmente criada e mantida
através da interdição maastrichtiana de financiamento
monetário dos Estados, que serve directamente para assegurar o valor das
receitas em detrimento do emprego e que gera um clima de crise permanente.
A interdição do financiamento monetário, nó
górdio da sustentabilidade do euro
A interdição do financiamento monetário é
justamente a bomba de relógio que agora vai fazer explodir o euro. Em
Agosto de 2012 bastou a Mario Draghi, então novo presidente do BCE,
brandir a compra sem limites pelo BCE de títulos de dívida
pública dos países em dificuldades (financiamento
monetário) para que a crise da Zona Euro se tenha acalmado
instantaneamente depois de se ter desenvolvido durante dois anos.
Em Janeiro de 2015, passagem à acção: sete anos depois dos
planos de compras de dívida massiva dos Estados Unidos, da
Grã-Bretanha e do Japão, 22 anos depois da
interdição maastrichtiana, a Zona Euro teve finalmente o seu
programa de compras de dívida pública, o seu Quantitative Easing
(QE) conseguido por Mario Draghi apesar da oposição alemã
e denominado "Public Securities Purchasing Programme (PSPP), que esteve na
origem da sentença de Karlsruhe em 5 de Maio.
Oficialmente, trata-se de contar a inflação, embora esta esteja a
um passo de se tornar negativa (mandato único do BCE: a estabilidade dos
preços). Na realidade, trata-se de reduzir a pressão das
dívidas públicas, violando assim não a letra (compras no
mercado secundário, não directamente), mas pelo menos o
espírito da interdição de financiamento monetário.
Uma política de apoio massivo às dívidas públicas
sob o pretexto do objectivo da inflação
Os alemães não se deixam enganar em relação a isso.
Desde a sua primeira decisão sobre o caso, o Tribunal Constitucional
Alemão estabeleceu uma série de condições que
permitiram, no seu conjunto, deixar de considerar o PSPP como
monetização da dívida pública. A
condição mais determinante destes títulos de dívida
pública comprados pelo Eurosistema estabelece que sejam revendidos antes
do seu vencimento. Esta condição evita, de facto, que a
dívida de um Estado seja anulada pela sua compra pelo banco central.
Esta dívida continua a existir porque, graças a Karlsruhe, ela
deve ser devolvida ao mercado.
Os resultados dessa política de QE, um desvio óbvio das
proibições de Maastricht, são enormes. Para dar o exemplo
de França (mas as proporções são as mesmas para
cada membro do euro), no final de 2019, por aplicação desta
política, cerca de 32% da dívida pública francesa total
foi recomprada pela Eurosistema (6% pelo BCE e 26% pelo Banco de
França). Quando os títulos dessas participações se
vencem, outros são resgatados, a fim de manter o valor em aberto
próximo dos 33%, limitando a auto-imposição do BCE para
(sem o admitir) não violar uma das condições evocadas por
Karlsruhe, vinculada aos limiares de votação nas
operações de reestruturação da dívida.
Esta saída do mercado de um terço da dívida francesa foi
financiada pela pura criação monetária, a
"impressão de dinheiro", sem qualquer impacto sobre a
inflação que o BCE tenta desesperadamente fazer aproximar dos
dois por cento mas que não consegue manter-se acima de um por cento. A
impossibilidade de atingir o seu objectivo de inflação permite ao
BCE justificar o prolongamento indefinido do QE, bem como a
conservação dos títulos até ao seu vencimento para
depois os substituir para evitar uma redução dos
empréstimos pendentes. Acções todas elas interditas, em
princípio, pela proibição do financiamento
monetário mas justificadas pelo pretexto dos objectivos da
inflação.
Os Estados membros do euro estavam fora de perigo com a
monetização? O lançamento do "PEPP" em 18 de
Março de 2020 deu a impressão disso até Karlsruhe
em 5 de Maio
Tendo em conta a dimensão da crise económica criada pelos
confinamentos impostos às populações, o BCE, a exemplo da
Reserva Federal norte-americana, dos bancos centrais japonês e
britânico, lançou em 18 de Março um primeiro pacote do seu
"programa de compras de urgência face à pandemia" (PEPP
na sigla anglo-saxónica) que tem toda a amplitude para comprar
dívidas públicas dos Estados membros. Juntando os diferentes
programas do BCE em curso, mais de mil milhares de milhões de euros de
dívida (8% do PIB da Zona Euro) poderiam ser imediatamente comprados
pelo BCE. Este primeiro pacote deve ser seguido por outros: nos Estados Unidos,
a Reserva Federal comprometeu-se a compras "sem limites",
acompanhada, pouco depois, pelo Japão.
Para começar a aplicar o programa de urgência, o BCE teve
necessidade, porém, de ultrapassar os limites definidos na primeira
sentença de Karlsruhe de 2017: os limites de 33% por emissor (40%
deverão estar ultrapassados por França e Itália a partir
do Outono de 2020); o respeito nas compras dos pesos respectivos dos diferentes
Estados no capital do BCE (desde Março, através do PEPP, o BCE
comprou principalmente títulos italianos e franceses e nenhum
alemão)
; e a obrigação de não
relançamento no mercado até que a urgência sanitária
seja ultrapassada. Com efeito, um relançamento no mercado equivaleria
à anulação dos benefícios da
monetização e desencadearia uma aguda crise de títulos.
Por isso, é necessário fazer durar a crise. O economista chefe do
BCE, Philip Lane, afirmou, por consequência, no início de Maio,
que a crise económica actual deverá durar um mínimo de
três anos. Depois de um primeiro QE sem limite de duração e
sem relançar os títulos no mercado, encaminhamo-nos para um PEPP
sem limites quantitativos e igualmente por tempo indeterminado. Para
alívio de França e Itália.
A Alemanha, porém, disse não em 5 de Maio. Duração
indeterminada, não relançamento de títulos no mercado
antes do seu vencimento, desrespeito pela duração mínima
antes da compra no mercado secundário, ultrapassagem do limite de 33%
por emissor, desrespeito pelas proporções do capital do BCE: tudo
coisas postas em andamento pelo PEPP mas que foram definidas por Karlsruhe, na
sua sentença de 5 de Maio, como características do financiamento
monetário. Mesmo que esta decisão, em teoria, incida apenas sobre
o primeiro QE (o PSPP) sabe-se já que o PEPP em curso, a
esperança de que haja uma monetização de 50% da
dívida pública francesa, está declarado fora de lei pelo
Tribunal Alemão, nem que seja por jurisprudência.
A Alemanha decidiu, portanto, tornar o euro totalmente alemão ou sair
Na sua sentença de 5 de Maio, Karlsruhe determinou que "o governo
federal e o Bundestag têm o dever de tomar medidas activas contra o PEPP
na sua forma actual". Trata-se, em especial, de assegurar a
"proporcionalidade" das medidas tomadas (a compra massiva de
títulos) na perspectiva do objectivo (ultrapassar a
inflação). A fundamentação do Tribunal é que
o impacto económico muito importante (apoio às emissões de
títulos dos Estados, impacto negativo sobre as taxas de juro e,
portanto, as poupanças, apoios a empresas não viáveis
através da compra de dívida privada, etc.) em nada é
"proporcional" aos resultados muito magros obtidos em matéria
de relançamento da inflação para uma meta "um pouco
abaixo de" dois por cento.
Notemos de passagem que o Tribunal não se preocupa com o impacto
económico trágico que teria o relançamento dos
títulos de dívida pública italiana ou francesa no mercado,
que provocaria, entre outras coisas, um incumprimento ou uma
reestruturação sob tutela da troika em Itália. O Tribunal
Alemão opõe-se, deste modo, à desproporcionalidade das
acções macroeconómicas expansivas do BCE (compra de
títulos) mas parece considerar normal uma desproporcionalidade recessiva
das acções do BCE que defende (vendas de títulos) para
respeitar o espírito da lei. Tudo muito alemão.
Ora esta proporcionalidade das acções do BCE em matéria de
QE não existe e não pode, portanto, ser justificada. O governo
alemão tem conhecimento disso. O Bundestag também. O Tribunal deu
um prazo de três meses para que o governo alemão, o Bundesbank e o
Bundestag se retirem da operação do QE. Será
impossível ao Bundesbank não se retirar do PEPP, muito mais
culpado ainda que o PSPP porque o qualifica como financiamento
monetário. O Bundestag, totalmente confortado nas suas
convicções pela sentença de 5 de Maio, não
deixará cair o assunto. O confronto político no seio da Eurozona
está aberto e irredutível. Na realidade, a Alemanha pôs em
cima da mesa a ameaça de sair do euro.
França e Itália não podem ficar num euro
"pós-Karlsruhe" se a Alemanha atingir os seus fins
A França e à Itália é impossível, com
efeito, aceitarem o fim da monetização da dívida posta em
vigor pelo BCE desde 2015 e acelerada a partir de Março de 2020. Esta
monetização já era necessária antes da crise dos
confinamentos COVID: agora tornou-se vital.
A dívida italiana atingirá este ano os 180% do PIB e a
dívida francesa provavelmente 120%. Sem financiamento
monetário/monetização será necessário ter em
conta excedentes orçamentais primários (saldo receitas-despesas
antes do serviço da dívida) da ordem dos 5% do PIB entre 30 e 50
anos para manter a dívida numa trajectória ligeiramente
decrescente. O que é impossível porque um tal nível de
excedentes primários tem um efeito recessivo sobre o crescimento. E sem
crescimento do PIB torna-se impossível obter uma redução
do rácio dívida/PIB.
Esses excedentes primários não serão macroeconomicamente
sustentáveis. A Itália, é certo, consegue há alguns
anos obter excedentes primários da ordem dos 1,5% a 2% do PIB, mas sem
conseguir mesmo assim que a dívida seja estabilizada (a dívida
cresce, mas não o PIB). Nos últimos 25 anos, desde 1995, a
Itália registou 24 anos de excedentes primários e o seu
esforço de consolidação orçamental é um
múltiplo do alcançado pela Alemanha ou os Países Baixos. A
"despesa" pública tem, portanto, um efeito multiplicador
negativo em Itália há um quarto de século. Uma
política de austeridade duas vezes mais dura e duas vezes mais longa
apenas poderá ser aplicada sob a égide de uma tomada de controlo
das finanças públicas do país por uma nova versão
da troika aplicada à Grécia. Uma reestruturação da
dívida iria traduzir-se à mesma por uma tomada de controlo por
uma troika e teria como contrapartida uma pilhagem dos activos italianos mais
rápida e ainda acrescida.
A situação francesa que, ao contrário da italiana, nunca
conseguiu obter excedentes primários (e ainda bem para a economia do
país) seria ainda mais difícil. Uma reestruturação
da dívida francesa em troca da colocação sob tutela
orçamental na forma de uma troika seria tão necessária
como em Itália. Sem a monetização do BCE a dívida
francesa torna-se rapidamente insustentável.
A caminho do fim da Zona Euro
A reacção de pânico das diferentes autoridades relacionadas
(em França, BCE, Itália) foi unânime: um
não-assunto. Ignora-se ou despreza-se a sentença do Tribunal
Constitucional Alemão e passa-se à frente. Isso é conhecer
mal a Alemanha. A Alemanha não cederá e pretende que o BCE se
torne alemão na lógica e no seu funcionamento. Ora a
França não tem a possibilidade de aceitar o fim da
monetização do QE na sua forma actual. E a Itália
também não sobreviverá no euro sem o QE. Antes da
decisão de Karlsruhe já estava em causa a
instauração de um controlo de movimentos de capitais em
Itália de maneira a retirar meios às famílias italianas
para aliviar a dívida, mesmo que o PEPP estivesse a pleno regime e, em
teoria, fosse suficiente. Com a instalação do controlo de
capitais a Itália encontrar-se-ia (como a Grécia a partir de
Julho de 2015) numa Zona Euro especial, possível antecâmera de uma
saída definitiva da União Monetária.
Quando o Bundesbank, na sequência do prazo de três meses
estabelecido por Karlsruhe, se retirar das operações de compras
de títulos do BCE, começará então, como lhe
recomenda o Tribunal, a relançar no mercado centenas de milhares de
milhões de Bunds comprados no quadro do QE. Estas revendas
deverão fazer subir as taxas de mercado na Alemanha, efeito ardentemente
desejado pelos titulares de poupanças mas que será
contrabalançado pela fuga de capitais em proveniência de
Itália e de França justamente para comprar dívida
alemã. A própria Alemanha será, por isso, forçada a
instituir um controlo de capitais, antecâmara da sua própria
saída da União Monetária.
Em resumo, ou a Alemanha sai do euro ou a Alemanha fica porque teve ganho de
causa com o BCE. Neste caso, porém, devem ser a Itália e a
França a sair para retomar o controlo dos seus bancos centrais de
maneira a tornar as suas dívidas sustentáveis. Esta
oposição frontal é irredutível. Neste contexto, a
melhor solução colectiva será uma
planificação concertada do desmantelamento da Zona Euro.
Mas, como teorizou Hegel, a História é trágica antes de
tudo.
22/Maio/2020
[1]
https://twitter.com/philippejeanpr1
[2]
https://twitter.com/SebCochard_11
[3]
www.bundesverfassungsgericht.de/...
O original encontra-se em
Vu du Droit
e a tradução em
https://www.oladooculto.com/noticias.php?id=792
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
.
|