A eurozona entre a austeridade e o incumprimento

por Stephanie Jacquemont [*]

RESUMO

Razões do endividamento dos países periféricos: défices privados e UME

As turbulências financeiras na zona do euro são devidas:
- por um lado à crise financeira que eclodiu em 2007;
- e por outro, à natureza da União Económica e Monetária (UEM). A pressão sistemática exercida sobre os trabalhadores levou a um aumento das desigualdades em termos de competitividade e à emergência de um Centro e uma Periferia dentro da zona euro.

Países da periferia: Espanha, Portugal e Grécia (+ Irlanda, mas é necessária uma análise separada pelas características deste país). Os países da periferia não são tão competitivos e sofrem os constrangimentos de uma política monetária uniforme e de uma disciplina orçamental estrita.

Os défices da balança de pagamentos correntes mostrados pela periferia são o reverso dos excedentes do centro, principalmente da Alemanha. Estes défices, que podem corresponder a défices financeiros do sector privado ou do sector público, podem ser financiados por meios geradores de dívida (por exemplo, empréstimos) ou não geradores de dívida (por exemplo, Investimento Directo Estrangeiro). Mas na periferia , o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) não permitiu ao sector público registar défices; o défice da balança corrente é portanto devido principalmente aos défices privados, financiados na maior parte por empréstimos dos bancos do Centro.

Basicamente, a dívida dos países da periferia deve-se ao comportamento do sector privado no quadro da UEM. Incapazes de competir com o centro, os sectores privados endividaram-se junto aos bancos do centro, mas também junto a agentes internos, ficando as economias destes países amplamente “financiarizadas” desde a adopção do euro. O consumo experimentou um boom nestes três países e a Espanha viu crescer uma bolha imobiliária.

Dimensão da dívida
 
Dívida total
(pública e privada)
Milhões €
Dívida total
(pública e privada)
% do PIB
Dívida privada /
Dívida pública
Dívida externa /
Dívida interna
Espanha 5315 506% 87% / 13% 33 / 67
Portugal 783 479% 85% / 15% 49 / 51
Grécia 703 296% 58% / 42% 51 / 49

Dívida multiplicada por 2 ou 3 desde o início da união monetária europeia, principalmente devido ao crescimento da dívida privada. O Estado grego é, proporcionalmente, mais endividado por razões históricas e sociais.

A parte externa aumentou desde a entrada na UEM. Importância da parte externa da dívida da Grécia e de Portugal, devido ao facto de os mercados financeiros terem sobrestimado a sua solvabilidade e capacidade de contracção de empréstimos.

Fragilidade dos bancos

Bancos do centro, principalmente franceses e alemães, fortemente expostos por terem emprestado maciçamente às economias periféricas, têm financiado a compra de activos em dólares por dívidas em euros.

Pacotes de intervenção de Maio de 2010 destinados aos países periféricos, mas em última instância destinados aos bancos. O BCE forneceu liquidez aos bancos e começou também a comprar no mercado secundário dívidas públicas dos países periféricos para aliviar a pressão sobre estes bancos (NB: desde Maio de 2010, o BCE comprou 65 mil milhões de euros títulos da dívida pública). Estas intervenções acalmaram os mercados, mas não resolveram a crise. Os bancos continuam expostos.

Austeridade

A austeridade vai comprimir as despesas públicas e o consumo das famílias, ou seja, os dois sectores da procura global que resistiram durante a crise de 2008-2009.

É pouco provável que a economia da zona do euro seja puxada pelas exportações, dada a fraqueza da procura. A austeridade, que provavelmente vai exercer uma pressão descendente sobre os salários, vai aumentar a competitividade do centro, especialmente a Alemanha.

A austeridade vai aumentar a desigualdade na distribuição de rendimentos e a liberalização que a acompanha vai modificar ainda mais a relação de força poder em favor do capital e em detrimento do trabalho.

A eventualidade do incumprimento

Esta eventualidade para os países da periferia emerge devido ao aumento do e endividamento e das consequências negativas da austeridade. Mas o incumprimento pode ser por iniciativa dos credores ou dos devedores. Se é por iniciativa dos credores, é pouco provável que conduza a uma redução substancial da dívida e gerará lucros para os bancos responsáveis pela operação.

Em contrapartida, um incumprimento por iniciativa dos países devedores poderia levar a uma redução das dívidas da periferia. Para isso é preciso uma cessação unilateral dos pagamentos e a realização de uma auditoria com a participação de organizações de trabalhadores e da sociedade civil. Seguir-se-ia uma renegociação com os credores externos e internos. Existe um risco de embargo por parte dos mercados de capitais, mas os exemplos da Argentina (2001-2005) e Rússia (1998) mostram que um incumprimento pode ter resultados positivos, desde que seja rápido e conduzido com firmeza.

Um incumprimento por iniciativa dos devedores levanta a possibilidade de uma saída da zona do euro. Tal saída poderia aumentar a competitividade dos países em causa pois poderiam proceder uma desvalorização [da moeda] e estariam mais livres nas suas políticas orçamentais e monetárias . Mas um incumprimento assim constituiria uma ameaça para o sector bancário e perturbaria a circulação monetária. Tais riscos poderiam ser enfrentados, adoptando um amplo conjunto de medidas que reverteriam a relação de forças em favor do trabalho.

Uma saída da zona do euro deveria ser acompanhada no mínimo por uma nacionalização e pelo controle dos bancos e de outros sectores da economia, pelo controle sobre os movimentos de capitais, por uma reforma fiscal para tributar os ricos e o capital, pela introdução de uma política industrial e por uma profunda reforma e reestruturação do Estado. Em resumo, uma saída da zona do euro poderia ser a oportunidade de ir contra as políticas económicas neoliberais. Para isso, a saída da área do euro requer alianças sociais e políticas radicais.

Um incumprimento, uma renegociação de dívidas e uma saída da zona euro teriam consequências graves, que devem ser cotejadas com as igualmente graves consequências de uma recessão e uma estagnação no longo prazo de várias dessas economias da zona euro. É indispensável que haja um debate público aberto sobre os custos, os benefícios e as consequências sociais de uma acção resoluta para quebrar o círculo vicioso da dívida (em comparação com os custos, benefícios e consequências da estagnação a longo prazo).

1. INTRODUÇÃO

Crise na Europa devido a duas razões principais:
- crise financeira internacional que eclodiu nos EUA e depois propagou-se ao conjunto da economia mundial;
- desequilíbrios estruturais na zona euro [2] . Divisão entre o centro e a periferia, tipicamente a Alemanha de um lado e a Espanha, a Grécia e Portugal do outro

Mas a crise na área do euro é sobretudo uma crise da dívida. Dívida (externa e interna, privada e pública) aumentou:
- por causa destes desequilíbrios estruturais na zona euro e da perda de competitividade da periferia;
- devido à financiarização das economias, o que levou ao aumento da dívida privada (famílias e empresas);
- A dívida pública aumentou com a crise de 2008-2009.

Seja qual for a sua origem, a dívida tem a sua própria lógica. A acumulação de dívidas na periferia ameaçou os bancos do centro da zona euro. A ameaça de uma crise bancária foi a origem da intervenção de Maio de 2010 por parte das autoridades da zona euro.

Obama fez pressão sobre Merkel, Sarkozy e outros pois os bancos dos EUA estavam igualmente muito expostos. Eles, com efeito, utilizaram a ajuda concedida em 2007-2008 para assumir posições na UE, principalmente na Alemanha e na França, cujos bancos estavam, eles próprios, muito expostos em relação à periferia. Se uma crise eclodisse na UE, o efeito bumerangue sobre os bancos norte-americanos estava assegurado!

A contrapartida da intervenção da UE (e do FMI): planos de austeridade, tanto na periferia como no centro, que podem agravar a crise através da compressão da procura global.

Qual a alternativa? Dada a profundidade da crise, as alternativas devem ser radicais. Um incumprimento de pagamento e uma saída do euro devem ser consideradas e a oportunidade dessas medidas debatida.

2. SE NÃO PODES SER COMPETITIVO, TOMA EMPRESTADO!

Dados de Dezembro de 2009. Os três países estão pesadamente endividados, sendo a sua dívida interna e externa, pública e privada. Mas a composição da dívida varia de país para país e isso não é irrelevante: as ameaças que as dívidas representam são de natureza diferente em cada um dos três países. A acumulação da dívida nesses três países é a consequência da sua adopção da moeda única: a integração na UME significou tanto a sua perda de competitividade, como o acelerar da financiarização da sua economia.

2.1. A magnitude da dívida da Periferia

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2.2. As raízes económicas da dívida externa

Uma das características da zona euro:   défices da balança corrente na Periferia / excedentes no Centro, principalmente na Alemanha.

Desde o Tratado de Maastricht, corrida ao menor custo social, pressão baixista sobre os salários e a Alemanha saindo "vitoriosa" desta corrida —> contínua deterioração da balança corrente dos países da Periferia / excedentes da Alemanha, especialmente desde o euro. Estes défices da balança corrente foram preenchidos não por IDE, mas por empréstimos e obrigações. Esses défices são essencialmente imputáveis ao sector privado, uma vez que os três países respeitaram o PSC e os seus orçamentos mostravam excedentes (Espanha) ou défices moderados (Grécia e Portugal). Só em 2008-2009, com o declínio das receitas do Estado devido à crise, os défices orçamentais se deterioraram.

Os défices da balança corrente são portanto devidos, nos três países, essencialmente ao sector privado: na Espanha, à bolha de investimentos no imobiliário, na Grécia e em Portugal à queda na poupança mas mantendo-se elevado o consumo. A dívida externa passou a financiar estes défices financeiros do sector privado.

2.3. A composição da dívida da periferia: financiarização da economia nacional e fluxos externos

A adesão ao euro dos países da periferia valeu-lhes a confiança dos mercados financeiros internacionais, que lhes emprestaram maciçamente,
pensando que os grandes países europeus viriam em sua ajuda em caso de problemas.

A dívida interna também aumentou fortemente nestes últimos 10 anos e a economia dos três países financiarizou-se. A dívida do sector privado cresceu: famílias, empresas e bancos podiam tomar emprestado a custos baixos (taxas de juro baixas e inflação mais forte do que no Centro) e este endividamento privado foi o motor da economia destes três países; os bancos, graças a um euro forte, poderiam expandir suas operações internacionais e financiar a menores custos as suas actividades nacionais.

3. EM SOCORRO DOS BANCOS, MAIS UMA VEZ?

3.1. Os bancos no centro da tempestade

A crise das dívidas soberanas é apenas a continuação do grande tormenta que começou em 2007.

A crise dos subprime ameaça o sistema bancário —> salvamento dos bancos pelos poderes públicos + recessão —> prejudica as finanças públicas —> crise das dívidas soberanas que ameaça de novo os bancos.

A tendência para a alta dos empréstimos do Centro para a Periferia continuou mesmo após o desencadeamento da crise em 2007 e os montantes emprestados mantiveram-se elevados em 2008 e 2009. Pico do stock de dívidas devidas ao Centro pela Periferia atingido no Verão de 2008.

Após o começo da crise em 2007, as taxas de juro subiram para os países da periferia, o que permitiu aos bancos do Centro obterem grandes lucros.

O grosso do dinheiro fresco dado aos bancos vem do endividamento público. Em 2008-2009, devido à queda das suas receitas fiscais e ao salvamento dos bancos, os Estados estavam à procura de enormes volumes de crédito, o que encareceu a remuneração da maior parte dos empréstimos públicos. Os bancos europeus, com o dinheiro obtido com taxas muito baixas junto ao BCE, emprestaram aos Estados exigindo taxas bem mais elevadas. Os bancos não estavam preocupados com o nível de endividamento da periferia, pois consideravam impossível um incumprimento na zona euro.

Mas a degradação da classificação da dívida grega obrigou os bancos a reverem os seus balanços e a reavaliar os seus créditos sobre a periferia. Quando a exposição dos bancos do Centro se tornou evidente, na Primavera de 2010, os governos da UE e o BCE intervieram. Dois pacotes: um, modesto, para a Grécia e um, muito mais importante, para a eurozona. Oficialmente, trata-se de ajudar os Estados a financiar a sua dívida pública, mas na realidade trata-se de ajudar os bancos.

3.2. Problemas de financiamento dos bancos europeus

Com a crise da dívida dos gregos e dos riscos de contágio às outras economias da periferia, os CDS (credit default swaps) em títulos do Estado subiram rapidamente a partir do final de 2009-início de 2010 e atingiram níveis recorde. Temores sobre o valor dos créditos detidos por bancos contraíram o mercado interbancário, com taxas de juros em alta, especialmente na Primavera de 2010. Tornava-se cada vez mais caro tomar emprestados dólares e euros. Uma crise bancária estava em gestação.

Os custos do crédito aumentaram, em parte devido à exposição dos bancos europeus, mas também porque eles tinham de enfrentar problemas complexos de financiamento.

Um dos problemas era que os bancos tomavam posições em activos denominados em dólares tomando emprestado em euros. Os euros emprestados eram cambiados contra dólares usando câmbios de divisas a curto prazo (short-term foreign exchange swaps). Esta necessidade de financiamento diminuiu muito desde Setembro de 2008, mas provavelmente ainda era de 500 mil milhões de dólares em meados de 2010. Os bancos europeus puderam financiar-se graças a euros emprestados a taxas baixas pelo BCE, mas com o declínio do euro em 2009-10, os bancos deviam tomar emprestado cada vez mais euros para financiar as suas posições em dólares. Os bancos estavam cada vez mais dependentes do mercado de câmbio de divisas, onde o dólar custava cada vez mais caro.

Outro problema: a remuneração dos novos depósitos nos bancos tornou-se mais cara (mais elevada, por exemplo, do que a Euribor a 3 meses). E os bancos fizeram mal em emitir títulos tendo em conta as pressões do mercado.

Estes problemas dos bancos europeus também ameaçavam os bancos dos EUA, cuja exposição quase duplicou nestes últimos cinco anos.

3.3. O pacote europeu de apoio e os seus objectivos


Apoio à Grécia: 110 mil milhões de Euros (UE+FMI).
Depois pacote de 750 mil milhões para os mercados financeiros (UE, BCE e outros bancos centrais, FMI). Mais inquietos quanto aos bancos alemães e franceses do que preocupados com o que se passava na Grécia.

Contribuição da UE: estabelecimento do Mecanismo de Estabilização Europeia: linha de crédito de 60 mil milhões de euros, disponível para todos os Estados membros. Seria financiado através da emissão de dívida em nome da Comissão e poderia ser concedida sem a aprovação dos parlamentos nacionais. Montante pequeno (o que mostra a fraca capacidade da UE para mobilizar fundos directamente).

Mais importante, o Mecanismo Europeu de Estabilização Fiscal (EFSF Inglês): até 440 mil milhões de euros para os membros da zona euro. Mecanismo não muito claro, mas, aparentemente, seria um SIV (Structured Investment Vehicle) financiado pro-rata pela emissão de títulos garantidos pelos membros da zona euro. As garantias deveriam ser aprovadas pelos parlamentos nacionais e só entrariam em vigor após aprovação de países que representassem pelo menos 90% das partes da EFSF.

A UE tende a preferir as soluções baseadas no mercado, tanto que ergue uma estrutura semelhante àquelas (SIV) que causaram a crise de 2007-2009!

Falta de solidariedade evidente, predomínio dos "Grandes".

3.4. O pacote irá funcionar?

Os mercados financeiros, não se mostraram tranquilizados de imediato. Reacções desesperadas dos governos europeus. Ex: sob pressão do Governo alemão, BaFin (órgão regulador alemão) proibiu a compra de títulos do Estado a descoberto e de CDS. Medida considerada hostil por parte dos mercados financeiros, mas de facto destinada aos bancos alemães, que estavam no final da cadeia de especulação sobre os CDS.

Em Julho de 2010, a confiança no sector bancário europeu ainda não fora encontrada. Resultados dos testes de stress publicados neste período revelavam que apenas 7 dos 91 bancos europeus testados (uma das hipóteses sendo a impossibilidade do incumprimento da Grécia e de outros governos!) dispunham de capital suficiente.

Inquietação quanto à natureza do pacote: a maior parte do pacote (440 mil milhões €) era composto por garantias sobre a emissão de dívida pelo EFSF, que requer a aprovação dos parlamentos nacionais —> quem acabará por pagar? A intervenção do BCE nos mercados pode afectar os preços dos títulos a curto prazo, mas os preços a longo prazo estão mais dependentes dos mercados. Além disso, quanto mais o BCE intervém no mercado, mais a probabilidade de adquirir dívidas tóxicas é elevada e coloca-se então a questão de saber quem vai pagar por essas dividas, em última instância. Finalmente, salvamento ao preço de medidas contraccionistas, cujas consequências não são claras.

4. A SOCIEDADE PAGA A FACTURA: AUSTERIDADE E LIBERALIZAÇÃO REFORÇADAS

Contrapartida do pacote de salvamento: austeridade na periferia e cada vez mais no Centro. Em parte, a mando do FMI, liberalização na Periferia, nomeadamente do mercado de trabalho.

Resposta da zona do euro destinada a salvar o sistema bancário. De notar: alteração das práticas e do quadro institucional da zona (pacote de salvamento, estatutos do BCE ignorados desde a compra de títulos de dívida, discussões sobre o estabelecimento de um Fundo Monetário Europeu). Ao mesmo tempo, triunfante conservadorismo fiscal, propostas para endurecer o PSC com penalidades. Em suma, a zona euro mostrou a sua capacidade de adaptação, mas para mais austeridade e liberalismo.

4.1. A austeridade e seus prováveis impactos

Consequências da recessão mundial em 2008-09: a queda na procura global, principalmente do investimento privado (e das exportações para a Alemanha). A procura das famílias resistiu em 2008-2009, e os despesas públicas evitaram que a recessão fosse ainda mais aguda.

Efeitos sobre a despesa pública: défices recorde (receitas fiscais em baixa + medidas para evitar uma depressão), ultrapassando os 3% do PIB permitidos pelo PSC. Projecção para 2010: 8% para a França, 5,3%para a Itália, 5% para a Alemanha. Sob a pressão dos mercados financeiros, planos para trazer o défice ao limite dos 3%. A Alemanha anunciou um plano de redução das despesas de 80 mil milhões €: redução dos salários dos funcionários públicos, redução do número de funcionários, reforma da segurança social, redução das despesas militares e das subvenções públicas.

A França anunciou sua intenção de incluir o limite dos défices orçamentais na sua Constituição, e cortes de 100 mil milhões de € daqui até 2013: congelamento das despesas do governo central, a retirada das reduções de impostos, congelamento dos salários na função pPública.

Mesmo a Itália anunciou um corte de 24.000 milhões para reduzir um défice, relativamente modestos, a 3% em 2012.

4.2. A Periferia sofre o pleno impacto da austeridade

Memorando assinado entre a Grécia, o FMI e a UE foi aprovada pelo Parlamento e tem força de lei. Além das medidas específicas (aumento de impostos, cortes drásticos nas despesas públicas, privatizações, novas legislações relativas ao mercado de trabalho), o Governo grego compromete-se a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para atingir o equilíbrio orçamental.

Espanha: fim das medidas excepcionais introduzidas em 2007 para atenuar os efeitos da crise e cortes no sector público (baixa dos salários, reformas, transferências para as regiões).

As medidas de austeridade visam os assalariados: o propósito de congelamento de salários e pensões no sector público não é apenas restaurar o equilíbrio orçamental, mas para fazer pressão para a baixa de todos os salários. A pressão sobre os assalariados: também evidente nos aumentos de impostos (IVA e imposto sobre o rendimento). Tudo em benefício do capital.

Austeridade ou como passar a factura para os assalariados

Salários, despesas sociais e condições de trabalho

Grécia: redução dos salários do sector público de 20 a 30%. Reduções dos salários nominais que poderiam atingir 20%, 13º e 14º meses substituídos por um pagamento único cujo montante varia em função do salário. Salários congelados durante os próximos três anos. Em quatro de cada cinco aposentações na função pública não haverá substituição. Os subsídios de desemprego foram reduzidos e um sistema de assistência à pobreza estabelecido em 2009 foi suspenso. É muito provável que esta pressão descendente se estenda ao privado.

Portugal: congelamento dos salários do sector público em 2010 e provavelmente nos dois anos seguintes. Um reformado em cada dois não será substituído. Tectos para os gastos sociais, subsídios de desemprego diminuídos.

Espanha: congelamento de salários na função pública e redução na contratação pública (1º pacote de medidas). 2º pacote: redução de 5% nos salários da função pública. Redução nas despesas sociais com o fim do subsídio ao recém-nascido, introduzido em 2007.

Na Grécia, planos para suprimir os acordos colectivos e substituí-los por contratos individuais. A prática de estágios muito longos ou não remunerados ou muito mal remunerados tornou-se lei. O sector público é doravante autorizado a recorrer ao trabalho temporário.

Em Espanha, reformas do mercado de trabalho visando uma maior flexibilidade no pagamento das horas trabalhadas, redução do tempo dedicado à negociação durante conflitos e o estabelecimento de um fundo de compensação de desemprego alimentado por contribuições voluntárias dos assalariados (!).

Impostos

Aumento dos impostos indirectos na Grécia (IVA de 19% para 23% e criação de impostos especiais sobre os combustíveis, o álcool e o tabaco), aumento do imposto sobre o rendimento para as camadas médias. Em contraste, redução dos impostos sobre as empresas.

Portugal: IVA sobre bens e serviços aumentado em 1%, aumento do imposto sobre o rendimento e sobre as empresas.

Espanha: aumento de 2% no IVA sobre todos os bens e serviços e no imposto sobre o rendimento.

Privatizações

Grécia: proposta de privatizar os portos, aeroportos, ferrovias, abastecimento de água e electricidade, o sector financeiro e as propriedades do Estado. Plano semelhante em Portugal, onde a energia, defesa, construção naval, sector financeiro, transportes, correios e minas estão em causa.

Os sistemas de pensões

As pensões na Grécia devem ser reduzidas e em seguida congeladas, a idade legal da reforma aumentada. Pensões congeladas em Espanha.

4.3. Missão impossível?

A austeridade pode agravar o fosso entre o Centro e a Periferia. A Alemanha vai ganhar a corrida para a baixa dos custos salariais unitários e os problemas dos países da periferia não vão diminuir. A balança corrente da periferia continuará a ter défices e a da Alemanha a ter excedentes. A austeridade, longe de resolver o problema central vai piorá-lo. É até possível que, se os países da periferia entrarem numa espiral deflacionária, a sua dívida, em relação às receitas, aumente.

5. O ESPECTRO DO INCUMPRIMENTO NA EUROPA

5.1. Incumprimento, renegociação e saída do euro

Os mercados financeiros globais estão à espera de um futuro incumprimento de pagamento, pelo menos na Grécia. Mesmo na comunicação social "de referência" algumas vozes se levantaram dizendo que a austeridade não era solução, especialmente para a Grécia, e que era preciso portanto considerar uma reestruturação da dívida. Na extrema esquerda do espectro político, na Grécia e noutros países, defende-se o incumprimento.

Um incumprimento liderado pelos credores seria provavelmente uma escolha política conservadora, que faria pagar os custos do ajustamento aos trabalhadores e deixaria a estrutura da zona euro intacta. Um incumprimento por iniciativa dos países endividados poderia ser benéfica para estes, ao criar uma margem de manobra para inverter a relação de forças em favor do trabalho. Tal medida levantaria imediatamente a questão da saída do euro .

As hipóteses do incumprimento, da renegociação e da saída do euro são aqui discutidas, principalmente no caso de um só país tomar tais iniciativas. Claro que se um país optasse por este caminho, isso poderia inspirar outros países da Periferia.

Convém precisar que, no limite, o incumprimento, a renegociação e a saída do euro poderia conduzir ao colapso da zona do euro e que as consequências de tal cataclismo são impossíveis de prever (seriam enormes tanto para a Periferia como para o Centro); mas ninguém poderia, de modo algum, culpar os países periféricos, uma vez que seria o resultado da própria natureza da eurozona (exploração e desigualdades).

5.2. Incumprimento por iniciativa dos credores: reforço do espartilho da zona euro

A estratégia da austeridade é arriscada, pois pode agravar os problemas de endividamento. Espera-se que os rácios dívida / PIB aumentem até 2012-13, atingindo 149% na Grécia. O endividamento poderia tornar-se insustentável, se a recessão da economia fosse mais forte do que o previsto, se a agitação política e social ganhasse maior amplitude, ou se a economia europeia e/ou mundial desmoronasse. As pressões seriam ainda maiores para a Grécia dado o peso da dívida pública e a extensão das medidas de austeridade, mas o risco existe para todos os países da periferia.

Se a austeridade resultasse num fracasso para a Grécia, os credores poderiam então considerar a opção da reestruturação. Não haveria necessariamente suspensão do pagamento dos juros nem declaração formal de incumprimento. No entanto, uma forma controlada de incumprimento poderia ocorrer na prática: substituição da dívida por uma nova dívida (como no caso da Argentina), alongamento dos prazos das dívidas e, eventualmente, redução das taxas de juros. O incumprimento ocorreria dentro do quadro da zona euro e sob os auspícios dos bancos. Os bancos responsáveis pela operação poderiam colher suculentas comissões.

Uma tal operação seria feita no interesse dos prestamistas, principalmente dos bancos, incluindo bancos nacionais na posse de stocks importantes de dívida pública. Os prestamistas ganhariam uma vez que os seus créditos duvidosos seriam substituídos por novas dívidas. Um incumprimento por iniciativa dos credores não resolveria o problema a longo prazo e é muito pouco provável que ele traga qualquer benefício que seja para os trabalhadores nos países da periferia, já que certamente seria acompanhado por mais austeridade.

5.3. O incumprimento por iniciativa dos devedores e a factibilidade de uma saída do euro

Opção potencialmente mais radical, mas os seus resultados dependeriam de como fosse conduzida. Exemplo, se realizada após o fracasso da austeridade e da ausência de resultados conclusivos de um incumprimento por iniciativa dos credores, ocorreria num contexto social e económico caótico, podendo repetir-se a experiência da Argentina.

Tal incumprimento suporia inicialmente uma suspensão unilateral dos reembolsos, o que abriria caminho para uma luta social mais intensa a nível nacional, bem como a tensões nas relações internacionais. O país deveria decidir que obrigações honrar e em que ordem.

É imperativo que uma auditoria da dívida seja realizada a seguir à suspensão, por razões de transparência. Uma auditoria permitiria ao público saber o que é devido a quem e quais foram os termos do endividamento; permitiria também determinar a parte odiosa e ilegal.

Seguir-se-iam negociações por iniciativa do país devedor, na óptica de uma resolução rápida e de uma redução importante da dívida. Impossível dizer que qual seria a amplitude da redução, mas no caso da Grécia, provavelmente não menos que no caso da Argentina ou da Rússia. Dois terços da dívida grega detida no estrangeiro e a maioria dos credores nacionais e estrangeiros são bancos. A maioria dos títulos do Estado parece ter sido emitida ao abrigo da legislação grega, o que evitaria ao país disputas jurídicas intermináveis nos EUA ou no Reino Unido (como poderia ser o caso com outros países de rendimentos médios). A elevada exposição dos bancos do Centro à dívida grega (ou de outros países da Periferia) daria à Grécia um poder de negociação não negligenciável.

Mas um incumprimento por iniciativa dos devedores comportaria uma série de riscos: ver encerrado o acesso aos mercados de capitais. O incumprimento, afectando os bancos nacionais e estrangeiros, poderia levar a uma contracção do crédito comercial e, portanto, afectar as exportações do país devedor. Risco de precipitar uma crise bancária.

A história mostra que o encerramento do acesso aos mercados de capitais nunca dura muito tempo e sempre há fontes alternativas de financiamento. As consequências de uma contracção do crédito comercial seriam mais graves e poderiam levar o Estado devedor a garantir as dívidas do comércio. Mas o maior perigo está no risco de crise bancária. Para o evitar, na Grécia, isso exigiria a nacionalização dos bancos e o seu controle pelo Estado, para impedir o seu colapso e garantir os depósitos dos clientes. Uma vez nacionalizados, os bancos poderiam ser um poderoso instrumento ao serviço de uma transformação da economia em favor do trabalho.

Tal cenário poderia ocorrer no quadro da zona euro? Inevitavelmente, um país em incumprimento iria tornar-se um pária, mas é difícil dizer exactamente o que isso implicaria exactamente em termos institucionais. Deixando de lado a questão da factibilidade, seria desejável para o país devedor que o incumprimento se desenrolasse no quadro da zona euro? Não.

1) Porque seria mais difícil enfrentar uma crise bancária sem controle sobre a sua política monetária . Em termos mais gerais, se os bancos não fossem nacionalizados, seria quase impossível elaborar instrumentos de uma transformação da economia.

2) Pertencer à zona euro ofereceria aos países em incumprimento poucos benefícios em termos de acesso a mercados de capitais ou de baixa do custo da contracção de empréstimos.

3) A desvalorização não seria possível. A acumulação de dívidas na Periferia está intrinsecamente ligada à moeda comum, e o problema perduraria enquanto o país em incumprimento permanecesse membro da zona euro.

Uma saída da zona euro devolveria ao país devedor o controle sobre a política orçamental e monetária. Uma desvalorização permitiria ao país ganhar competitividade.

Mas uma saída da zona euro também implicaria custos. Um retorno a uma moeda nacional para um país da Periferia seria mais difícil do que a "pesificação" da Argentina, dado o grau de integração monetária na zona euro. Entretanto, a substituição do euro não é uma política complicada de aplicar e os princípios básicos não são difíceis de determinar. Seria preciso anunciá-la rapidamente para minimizar a fuga de capitais; os bancos fechariam por um determinado período e deveriam converter os depósitos e os outros passivos e activos do país na nova moeda a uma taxa de câmbio determinada. Na reabertura dos bancos, haveria circulação paralela do euro e da nova moeda e preços expressos em ambas as moedas para uma série de bens e serviços. Haveria perturbações monetárias durante o tempo em que os contratos e obrigações fixadas se ajustassem à nova moeda. Para evitar a crise de confiança, nada de desvios uma vez o comboio em andamento. No final, os preços ou o dinheiro iriam adaptar-se à nova moeda e o euro seria excluído da economia nacional.

Queda inevitável no valor internacional da moeda, criando mudanças complexas nas relações de força. Empresas e bancos endividados no estrangeiro iriam deparar-se com dificuldades e tentariam transferir as suas dívidas para o Estado. Os possuidores de activos no estrangeiro tentariam especular contra a nova moeda.

Para evitar que a classe capitalista tentasse tirar proveito da saída do euro, as autoridades poderiam tomar o controle de certos sectores da economia, começando pelo sistema financeiro. Seria imposto um controle sobre os movimentos de capital e as operações de câmbio para limitar a fuga de capitais e especulação.

Com o aumento do preço das importações, pressões inflacionárias (principalmente preços de energia) ? baixa dos salários reais. Não seria fácil enfrentar estas pressões, mas seria possível accionar a alavanca da política monetária. Os salários reais poderiam ser mantidos através da aplicação de uma política fiscal redistributiva. Nota: a inflação reduziria o peso da dívida interna.

ANEXO A: Os precedentes da Rússia e da Argentina

A crise nos países da periferia da zona do euro não é senão a última de uma longa lista de crises de dívida soberana, principalmente no Sul (ou Periferia global). Interessa comparar a situação destas duas periferias.

24 de Dezembro de 2001, a Argentina anuncia a suspensão de pagamentos sobre a quase totalidade da sua dívida pública de 114 mil milhões de dólares. A taxa de câmbio fixa entre o peso e o dólar é abandonada poucos meses depois. O PIB mergulhou 11% [3] , mas a seguir recuperou fortemente com taxas de crescimento de 7-8% entre 2003 e 2007. Os mercados internacionais reabriram as torneiras do crédito à Argentina em 2006, após a venda pelo governo de títulos do Estado a 5 anos num montante de 500 milhões de dólares.

Em 1999, a Rússia declarou-se em incumprimento quanto à sua dívida externa, o que a obrigou a desvalorizar o rublo imediatamente. Em alguns meses, a economia recuperou. A Rússia saiu muito melhor da crise que a Argentina.

O Consenso de Washington provoca a queda de Buenos Aires

1991: A Argentina adopta o "plano de convertibilidade", que prevê a liberalização do comércio e da circulação de capitais, a privatização de activos detidos pelo Estado, uma política monetária estrita e sobretudo uma taxa de câmbio fixa de 1 peso=1 dólar. Anos 1990: o país segue conscienciosamente as receitas do Consenso de Washington, com o incentivo e apoio financeiro do FMI. Inicialmente, essas políticas parecem dar frutos, com o fim da hiper-inflação e taxas de crescimento médio de 6% no período de 1991-1998. Entrada líquida de capitais no período 1992-1999: 100 mil milhões de dólares. A Argentina é considerada como um modelo pelo FMI, cujo apoio permitiu ao país contrair empréstimos em termos menos onerosos.

Em retrospectiva, é evidente que a estabilização macroeconómica na Argentina na década de 90 se deveu mais à sorte que a escolhas políticas judiciosas: as taxas de juro baixas nos EUA haviam desacelerado a valorização do dólar e o retorno de crescimento nos EUA havia estimulado a economia da América Latina. Mas a valorização constante do dólar a partir de meados da década de 90 tornou a convertibilidade peso-dólar insustentável. Na sequência da crise russa, o Brasil desvalorizou a sua moeda em 70% em Janeiro de 1999, tornando os termos de troca ainda mais desfavoráveis para a Argentina. Peso largamente sobrevalorizado, deflação e contracção da produção.

Enquanto a queda se acelerava, a dívida do governo federal em % do PIB aumentava: de 34,5% em 1997 para 37, 6% em 1998, 43% em 1999, 45% em 2001 e 53,7% em 2002. Meados de 2001: encerramento efectivo do acesso aos mercados internacionais de capitais. —> FMI torna-se a única fonte de crédito, aumentando a sua influência. Consenso entre os conselheiros do FMI e a elite política argentina, políticas caóticas que levaram ao incumprimento.

Junho de 2001: megacanje de deuda: mega conversão de dívida, coordenado por um consórcio de bancos europeus e dos EUA (regiamente pagos), para prorrogar o vencimento das dívidas.

Resultado: aumento da dívida. Outra conversão da dívida em Setembro de 2001 com a aprovação do FMI mas, novamente, com benefícios muito modestos para a Argentina.

Quando a Argentina não conseguiu cumprir as metas orçamentais ditadas pelo FMI, este decidiu não pagar uma parcela, o que provocou a corrida aos bancos. O Governo proíbe saques de depósitos. Incumprimento finalmente declarado no Natal de 2001, num contexto de crise social muito dura (cerca de vinte mortos na noite de 19 para 20 de Dezembro de 2001, quando o presidente de La Rua tem de fugir num helicóptero) e nova taxa de câmbio peso-dólar adoptada em Janeiro de 2002. A fuga de capitais que isso provoca obriga o governo a decidir a "pesificação" dos activos e passivos detidos na Argentina —> aumenta a procura de dólares, aumentando a pressão sobre a taxa de câmbio. Bancos tornam-se insolventes.

Março de 2002: o país é obrigado a abandonar a taxa de câmbio fixa, baixa do peso em 75% em relação ao seu valor anterior —> preços sobem 40%.

Em 2003, quando a crise está "para trás", o governo procura reestruturar a sua dívida. É feita uma primeira proposta a detentores de títulos de novos títulos a 25% do seu valor nominal, com prazos mais longos e taxas de juros mais baixas. Cólera dos credores. O FMI recusa-se a reconhecer uma segunda oferta (55% do valor nominal) em Janeiro de 2004, e o governo decide então prescindir dos "serviços" do FMI. Em Fevereiro de 2005, 76% dos detentores de títulos haviam aceite a oferta do governo argentino.

Lições a tirar do caso argentino

A crise da dívida da Argentina não é o produto de uma política orçamental frouxa, os problemas orçamentais surgem apenas com a crise de 1997-98 (queda das receitas). Os problemas orçamentais na verdade remontam á privatização do seu sistema de segurança social no âmbito do plano de conversibilidade: o Estado não recebia mais contribuições, mas havia mantido todo o seu passivo e continuava a pagar aos pensionistas [4] .

A Argentina foi atingida pela degradação dos termos de troca após a crise asiática, pelo abrandamento económico nos EUA em 2001, pelo aumento dos prémios de risco após a crise russa de 1998, mas não mais do que os outros países latino-americanos. O seu problema real: o sistema monetário, nomeadamente a paridade fixa entre o peso e o dólar.

A transição da Rússia a partir de uma economia planificada para uma economia de mercado: afundamento e retomada

Anos 1990: transição para o capitalismo, sob a tutela do FMI, afundamento da economia. Acordos com o FMI em 1995 e 1996, adopção de uma taxa fixa de juros altos: a inflação parecia sob controle + aparência de normalização a partir de 1996 com a reabertura do acesso aos mercados internacionais de capitais.

Mas ataque especulativo contra o rublo após a crise asiática. Preços do petróleo e de metais não ferrosos (2/3 das exportações da Rússia) em queda. Arrecadação de impostos particularmente baixa, aumento da dívida pública em % do PIB: de 43,4% em 1996, 53, 6% em 1997, 68,1% em 1998 e 90,2% em 1999. O medo do incumprimento e da desvalorização faz subir as taxas de empréstimos do Banco Central aos bancos, e torna-se muito difícil para o governo prosseguir as suas operações de empréstimos de curto prazo. Pacote de ajuda multilateral de 22,6 mil milhões de dólares anunciado em Julho de 1998, dos quais 4,8 mil milhões desembolsados imediatamente. Ideia: sustentar a taxa de câmbio fixa e trocar os títulos de curto prazo, muito caros, por títulos a prazo mais longo. Fracasso desta operação e fuga de capitais que alcançou 4 mil milhões entre Maio e Agosto.

17 de Agosto de 1998: Ieltsin anuncia a desvalorização do rublo + moratória sobre reembolsos da parte da dívida pública denominada em rublos e suspensão dos pagamentos pelas instituições financeiras russas sobre os seus passivos em divisas. Aumento da pressão sobre o rublo, que em Setembro leva ao abandono de qualquer tentativa de controle da cotação do rublo. O rublo afunda para menos de 1/3 do seu valor contra o dólar. O apoio ao rublo entre Outubro de 1997 e Setembro de 1998 custou cerca de 30 mil milhões de dólares, quase a sexta parte do PIB da Rússia na época.

O incumprimento causou uma enorme crise bancária uma vez que o capital dos bancos russos era praticamente equivalente ao volume de dinheiro congelado que estava reservado para reembolsos. Uma corrida contra as instituições financeiras russas estava a ser preparada desde Agosto de 1998. O Banco Central injectou então liquidez no sistema bancário, reduzindo as reservas obrigatórias, aumentando os empréstimos aos bancos mais importantes e trocando títulos congelados contra o líquido. A corrida contra os bancos foi travada, à custa de um rublo ainda mais fraco e de uma inflação mais forte.

Desvalorização: serviço da dívida em dólares torna-se exorbitante. Janeiro de 1999: as agências de notação declaram a Rússia em incumprimento. A Rússia rapidamente enceta negociações com os detentores de títulos de dívida. Em Maio de 1999 é alcançado um acordo com 95% dos credores russos e 89% dos credores estrangeiros. Estima-se que a redução da dívida obtida foi da ordem dos 53%.

Segue-se um período de forte crescimento, orçamento excedentário a partir de 2000 e dívida ao FMI resolvida em 2005. Em 2006, um recorde de 200 mil milhões de dólares de reservas cambiais (o 4º valor mais alto entre as economias emergentes). É provável que a Rússia não conseguisse recuperar, desta forma, mesmo com preços do petróleo em alta, se tivesse tentado defender um rublo sobrevalorizado.

O incumprimento não é tão catastrófico afinal de contas

Uma das causas fundamentais da crise na Argentina e na Rússia: uma moeda sobrevalorizada, em que é preciso manter a taxa de câmbio. Consequências: produção do sector privado paralisada, défices das contas correntes, endividamento privado e público. Os problemas nas finanças públicas em ambos os casos foram o resultado das políticas neoliberais defendidas pelo FMI e de choques externos. O incumprimento e a desvalorização, apesar dos altos custos, permitiram uma recuperação económica rápida. Os dois países conduziram negociações sem choques demasiados, sem o apoio do FMI. Os dois países tiveram acesso a novos mercados de capitais pouco após o incumprimento. Deve-se notar que a Argentina contou com empréstimos da Venezuela.

A Rússia e a Argentina reagiram de forma diferente às pressões de uma taxa de câmbio fixa indefensável: processo muito rápido na Rússia, enquanto a Argentina apegou-se a esta taxa de câmbio e seguiu o conselho dos adeptos da ortodoxia económica. Face à crise bancária provocada pelo incumprimento, o governo russo reagiu rapidamente restringindo os movimentos de capitais e nacionalizando de facto, os depósitos. Em contrapartida, as tergiversações e a confusão do governo argentino aumentaram o pânico bancário e a agitação social.

Incumprimento e desvalorização não existem sem custos, mas podem constituir uma solução eficaz em caso de crise da dívida causada por acordos monetários e financeiros internacionais. Quando isso implica uma mudança de regras monetárias, como no caso da Argentina, a relação de forças pode balouçar numa direcção ou noutra (a classe capitalista local pode tirar partido de uma desvalorização). Pode abrir caminho a uma nacionalização dos bancos, a controles de capitais e assim por diante. O resultado depende, em última instância, das lutas sociais.

Notas
(1) C. Lapavitsas, A. Kaltenbrunner, G. Lambrinidis, D. Lindo, J. Meadway, J. Michell, J.P. Painceira, E. Pires, J. Powell, A. Stenfors, N. Teles : "THE EUROZONE BETWEEN AUSTERITY AND DEFAULT", Setembro 2010 – 72 paginas www.researchonmoneyandfinance.org/...
(2) É certo que existe uma divisão ainda mais evidente com os novos países membros, que são uma Periferia exterior (dado não serem membros da zona euro). A análise "The Eurozone between austerity and default" centra-se nos países da Periferia interna, aos quais poderia acrescentar-se a Irlanda, mas esta apresenta características especificas (como a forte presença de transnacionais) que exigem uma análise separada.
(3) Atenção, não foi a suspensão do pagamento da dívida que provocou a queda do PIB. Com efeito, a Argentina estava em recessão desde há 36 meses quando o governo tomou a decisão de não mais reembolsar a dívida.
(4) NB: o governo de Cristina Fernandez em Janeiro de 2008 renacionalizou os fundos de pensões (privatizados por Menem nos anos 1990). Medida muito apreciada pela população.


[*] do CADTM

O original encontra-se em researchonmoneyandfinance.org/... . Tradução de Guilherme Coelho, revista por JF.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
09/Mar/11