Os anexos inquietantes da Constituição europeia
Pena de morte em caso de sublevação, insurreição ou "ameaça de guerra"
Requisição de cidadãos para trabalhos forçados
Prisão arbitrária
Vigilância electrónica da vida privada
Liberdade de expressão e de informação
Clonagem humana
A Constituição Europeia oferece liberdades enganadoras e prepara
o terreno para uma deriva totalitária e policial da Europa, por meio
"de anexos ignorados do público e dos quais os meios de
comunicação nunca falam. Estes anexos esvaziam do seu
conteúdo a Carta dos Direitos Fundamentais incluída na
Constituição e apresentada pelos partidários do
"sim como um grande progresso...
A Constituição contém numerosos anexos cuja
função é a de indicar de que modo os diferentes artigos
devem ser interpretados e aplicados.
Estes anexos fazem parte, juridicamente, da Constituição:
artigo IV-442:
"Os protocolos e anexos do presente tratado são sua parte
integrante.
Além disso , os anexos são designados como referência para
a interpretação a ser feita, eventualmente, por um tribunal:
artigo II-112,7:
"As explicações elaboradas com vista a orientar a
interpretação da Carta dos Direitos Fundamentais são
devidamente tomadas em consideração pelas
jurisdições da União e dos Estados membros.
Ora, dissimuladas entre estes anexos, encontram-se
"explicações que permitem muito simplesmente a
não aplicação da Carta dos Direitos Fundamentais (parte II
da Constituição), nos casos em que a definição
é deliberadamente vaga e extensível.
Pena de morte em caso de sublevação, insurreição ou
"ameaça de guerra"
Aparentemente, a Constituição reconhece o direito à vida e
proibe a pena de morte:
artigo II-61
1. Toda a pessoa tem o direito à vida.
2. Ninguém pode ser condenado à pena de morte nem executado.
Mas, no parágrafo 3-a do artigo 2 do anexo 12 (intitulado
"Declaração referente às explicações
relativas à Carta dos Direitos Fundamentais, secção
"Acta Final, parte IV), pode ler-se uma
"explicação que limita seriamente o alcance do artigo
II-61:
"As definições "negativas que figuram na CEDH
devem ser consideradas como figurando igualmente na Carta":
A artigo 2, parágrafo 2 da CEDH:
"
A morte não é considerada como infligida, em
violação deste artigo, nos casos em que resulte de um recurso
à força absolutamente necessário:
a) para assegurar a defesa de qualquer pessoa contra a
violência ilegal;
b) para efectuar uma detenção regulamentar ou
para impedir a
evasão de uma pessoa regulamentarmente detida;
c)
para reprimir, de acordo com a lei, uma sublevação ou uma
insurreição
"
B artigo 2 do protocolo nº 6, anexo à CEDH:
"Um Estado pode prever na sua legislação a pena de morte
para
actos cometidos em tempo de guerra ou de perigo iminente de guerra;
uma tal pena só será aplicada nos casos previstos por essa
legislação e conforme à suas
disposições."
Estas limitações contestáveis, instituídas pela
CEDH (Convenção Europeia dos Direitos do Homem), encontram-se,
assim, constitucionalizadas.
Em termos claros, os direitos fundamentais estabelecidos pela Carta não
se aplicam em caso de insurreição ou de sublevação.
Maio de 68, uma greve geral, uma ocupação de fábrica ou
uma manifestação podem ser assimilados a uma
insurreição ou uma sublevação e, portanto, servir
de pretexto à anulação dos direitos cívicos.
A Carta também não se aplica em tempo de guerra ou em caso de
"perigo iminente de guerra", o que é uma
definição muito subjectiva, abrindo portas a todos os abusos.
Amanhã, um Bush europeu (Sarkozy?) poderia utilizar como pretexto uma
"guerra contra o terrorismo" ou um "perigo de guerra" para
não aplicar a Carta.
Requisição de cidadãos para trabalhos forçados
Não se pode deixar de aprovar a Constituição quando lemos:
Artigo II-65
1. Ninguém pode ser mantido em escravidão nem em servidão.
2. Ninguém pode ser constrangido a realizar um trabalho forçado ou
obrigatório.
Demasiado bonito para ser verdade... E, efectivamente, as
"explicações" em anexo explicitam que o trabalho
forçado não é proibido se aplicado a prisioneiros. Os
trabalhos forçados, tal como se praticavam há um século e
como se praticam de novo nos Estados Unidos, são, pois, possíveis
na Europa com esta Constituição. Qualquer cidadão
está sujeito a isso, desde que as recentes leis repressivas permitem
prender uma pessoa sem julgamento e por prazo indeterminado, se for suspeita de
"terrorismo". Tornou-se, portanto, muito fácil passar do
estatuto de "cidadão livre" ao de prisioneiro.
Os anexos da Constituição vão ao ponto de autorizar a
requisição de cidadãos para um trabalho forçado em
caso "de crises ou calamidades que ameacem a vida ou o bem-estar da
comunidade". Uma vez mais, estas condições são
suficientemente vagas para serem interpretadas de maneira muito extensiva por
dirigentes do tipo Sarkozy ou Bush.
Artigo 5 do anexo 12:
"No parágrafo 2, as noções de "trabalho
forçado ou obrigatório" devem ser compreendidas tendo em
conta as definições "negativas" contidas no artigo 4,
parágrafo 3, da CEDH:
Não é considerado como "trabalho forçado ou
obrigatório", segundo o presente artigo:
a) todo o trabalho requerido normalmente a uma pessoa submetida a
detenção
nas condições previstas no artigo 5 da presente
convenção ou durante a sua liberdade condicional;
b) todo o serviço de carácter militar ou, no caso dos objectores
de
consciência
nos países onde a objecção de consciência é
reconhecida como legítima, um outro serviço substituto do
serviço militar obrigatório;
c) todo o serviço requerido em caso de crises ou calamidades que ameacem
a vida ou o bem-estar da comunidade;
d) todo o trabalho ou serviço fazendo parte das obrigações
cívicas normais
."
Prisão arbitrária
As "explicações" relativas ao artigo II-66 (que afirma
que "toda a pessoa tem o direito à liberdade e à
segurança") justificam, aliás, implicitamente, a
detenção com base em simples suspeita ou ainda de pessoas
"contagiosas", "alienados", "toxicómanos"
ou "vagabundos".
Parágrafo 1 do artigo 6 do anexo 12:
"Toda a pessoa tem o direito à liberdade e à
segurança. Ninguém pode ser privado da sua liberdade, excepto nos
casos seguintes e segundo as vias legais:
(...)
c) se for detido e preso para ser conduzido perante a autoridade judicial
competente,
quando há razões plausíveis para suspeitar que cometeu uma
infracção ou que há motivos razoáveis para crer na
necessidade de o impedir de cometer uma infracção.
(...)
e) se se tratar da prisão
de uma pessoa susceptível de propagar uma doença contagiosa, de
um alienado, de um alcoólico, de um toxicómano ou de um
vagabundo."
O paráfrago 3 das mesmas "explicações" parece,
no entanto, fixar limites à detenção arbitrária,
mas, uma vez mais, esses limites são formulados em termos
suficientemente imprecisos para permitir toda a liberdade de
interpretação a um futuro regime autoritário ou policial:
Parágrafo 3 do artigo 5 do anexo 12:
"Toda a pessoa detida ou presa, nas condições previstas no
parágrafo 1.c do presente artigo, deve ser o mais brevemente
possível levada perante um juiz ou um outro magistrado habilitado por
lei a exercer funções judiciais
[isto é, por um polícia ou um "juiz de proximidade"
sem nenhuma formação judicial]
e tem o direito a ser julgado num prazo razoável"
[que prazo, precisamente?...]
parágrafo 4 do artigo 5 do anexo 12:
"Toda a pessoa privada da sua liberdade por detenção ou
prisão tem o direito de apresentar um recurso em tribunal para que se
estabeleça, a breve prazo
[que prazo, precisamente?],
a legalidade da sua detenção e se ordene a sua
libertação se a detenção for ilegal."
[mas tendo em conta as disposições precedentes, poucas
detenções poderão ser declaradas ilegais, já que
são justificadas pela Constituição].
Vigilância electrónica da vida privada
O mesmo espírito preside ao que se refere à
protecção da vida privada.
Assim, a Constituição parece proteger os cidadãos da
espionagem da sua linha telefónica e do correio electrónico ou da
instalação de microfones e câmaras em casa (como
está previsto na lei Perben, em França). O que é para
admirar, diga-se de passagem, pois, desde o 11 de Setembro de 2001, a maior
parte dos Estados europeus adoptou leis que oficializam a
"big-brotherização" geral. A acreditar na
Constituição, a vigilância electrónica dos
cidadãos está proibida, embora não haja nenhum recurso
previsto para as pessoas que sejam vítimas destas práticas:
artigo II-67, 1:
"Toda a pessoa tem direito ao respeito pela sua vida privada e familiar,
domicílio e comunicações."
Mas as explicações em anexo anulam totalmente este direito na
prática. Basta que para isso a intrusão na vida privada esteja
enquadrada pela lei e que seja necessária
"à segurança nacional"
(Bush mostrou que este conceito pode ser utilizado para justificar qualquer
coisa),
"à segurança pública", "à defesa da
ordem"
(duas noções muito subjectivas),
"à
prevenção
de infracções penais"
(cada vez melhor! Esta disposição torna possível as
prisões preventivas, como em "Minority Report", segundo o
mesmo princípio das "guerras preventivas" de Bush), ou muito
simplesmente, quando a espionagem da vida privada é necessária
"ao bem-estar económico do país",
ou ainda
"à protecção da moral".
parágrafo 2 do artigo 7 do anexo 12:
"Não pode haver ingerência de uma autoridade pública
no exercício deste direito senão quando essa ingerência
está prevista na lei e constitui uma medida que, numa sociedade
democrática, é necessária à segurança
nacional, à segurança pública, ao bem-estar
económico do país, à defesa da ordem e à
prevenção de infracções penais, à
protecção da saúde ou da moral, ou à
protecção dos direitos e liberdades de outrem."
O artigo seguinte está recheado de explicações
absolutamente incompreensíveis, dada a quantidade de remissões e
referências a outros documentos ou tratados.
artigo II-68:
1. Toda a pessoa tem o direito à protecção de dados de
carácter pessoal a si respeitantes.
2. Estes dados devem ser tratados legalmente para fins específicos e na
base do consentimento da pessoa envolvida
ou em virtude de um outro fundamento
legítimo previsto na lei.
Toda a pessoa tem o direito a aceder aos dados recolhidos que lhe dizem
respeito e a obter a sua rectificação.
Explicação a propósito do artigo II-68, artigo 7 do anexo
12:
"Este artigo baseou-se no artigo 286 do tratado que instituiu a Comunidade
Europeia e na directiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e no Conselho de 24 de
Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas
físicas no que se refere ao tratamento de dados de carácter
pessoal e à livre circulação desses dados (JOL 281 de
23.11.1995) assim como no artigo 8 da CEDH e na Convenção do
Conselho da Europa para a protecção das pessoas no que se refere
ao tratamento de dados de carácter pessoal de 28 de Janeiro de 1981,
ratificada por todos os Estados membros. O artigo 286 do tratado CE é, a
partir de agora, substituído pelo artigo I-51 da
Constituição. Convém notar, igualmente, a
regulamentação (CE) nº 45/2001 do Parlamento Europeu e do
Conselho de 18 de Dezembro de 2000 relativo à protecção
das pessoas físicas, no que se refere ao tratamento de dados de
carácter pessoal pelas instituições e órgãos
comunitários e à livre circulação desses dados (JOL
8 de 12.1.2001). A directiva e a regulamentação
pré-citadas contêm condições e
limitações aplicáveis ao exercício do direito
à protecção de dados de carácter pessoal."
[compreenda quem for capaz...!]
Liberdade de expressão e de informação
O artigo II-71 garante a liberdade de expressão e de
informação, mas este direito está igualmente limitado como
os artigos precedentes pelas "explicações" em anexo. As
restrições à liberdade de expressão são
autorizadas quando "previstas pela lei" e quando constituem medidas
necessárias "à segurança nacional, segurança
pública, defesa da ordem e prevenção do crime",
à protecção da saúde ou da moral."
artigo II-71:
1. Toda a pessoa tem o direito à liberdade de expressão. Este
direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de
comunicar informações ou ideias, sem que possa haver
ingerência das autoridades públicas e sem
consideração de fronteiras.
Explicação a propósito do artigo II-71, artigo 11 do anexo
12:
"O exercício destas liberdades, que comportam deveres e
responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades,
condições, restrições ou sanções
previstas na lei, que constituam medidas necessárias, numa sociedade
democrática, à segurança nacional, à integridade
territorial ou à segurança pública, à defesa da
ordem e à prevenção do crime, à
protecção da saúde ou da moral, à
protecção da reputação ou dos direitos de outrem,
para impedir a divulgação de informações
confidenciais ou para garantir a autoridade e imparcialidade do poder
judicial."
Clonagem humana
Procedimento idêntico se encontra para a clonagem humana que parece ser
proibida pelo artigo II-63:
artigo II-63
1. Toda a pessoa tem o direito à sua integridade física e mental.
2. No quadro da medicina e da biologia, deve ser respeitada, nomeadamente,
(...) a
interdição da clonagem reprodutiva dos seres humanos.
parágrafo 2 do artigo 3 do anexo 12:
"Os princípios contidos no artigo 3 da Carta figuram já na
Convenção sobre os Direitos do Homem e a biomedicina, adoptada no
Conselho da Europa (STE 164 e protocolo adicional STE 168)
[mais remissões a documentos exteriores para baralhar as pistas!]
A presente Carta não visa derrogar essas disposições e
consequentemente só proíbe a clonagem reprodutiva, não
autorizando nem proibindo outras formas de clonagem
[sendo, portanto, possível todas as outras utilizações de
clonagem humana].
Assim, não impede de modo nenhum o legislador de proibir as outras
formas de clonagem."
[como também não impede o legislador de as autorizar!]
O original encontra-se em
http://perso.wanadoo.fr/metasystems/ConstitutionAnnexes.html
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Tradução de MJS.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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