O sadismo tornou-se um símbolo dos Estados Unidos (2)
A classe dominante dedica enormes recursos para mascarar o sadismo social e o
assassinato. Controla as narrativas na imprensa. Inunda os nossos ecrãs
com imagens e propaganda amigáveis e alegres, aperfeiçoadas pelas
empresas de publicidade e relações públicas. Essas
alucinações eletrónicas distraem-nos das
limitações das nossas próprias vidas. Ofuscam a natureza
fundamental do capitalismo corporativo. Atacam a nossa auto-estima e suscitam
uma tomada de consciência embaraçosa sobre a nossa
aparência, posição social e funções
corporais. Falsificam a ciência e os dados, como fizeram as
indústrias de combustíveis fósseis, pecuária e
tabaco durante décadas.
Criam, como escreve
Guy Debord
, a "espetacular sociedade mercantil" que é um substituto
sedutor para a democracia participativa. Essa tirania empresarial reduz a
escolha política às prescrições sádicas
fornecidas pelo poder corporativo. Isso cria uma sociedade onde há uma
ausência de quase todas as construções sociais e
políticas positivas. Mesmo a mudança social, reduzida a
políticas de identidade e multiculturalismo, foi efetivamente castrada
pela propaganda corporativa. O sentimento de agir, poder pessoal e estatuto
social veem quase exclusivamente, como Nietzsche previu, a servir à
máquina sádica.
Intermediários de energia da Enron, num diálogo que poderia ter
vindo de qualquer grande corporação, gravado em 2000, discutindo
como "roubar" a Califórnia. Identificados como Kevin e Bob,
rejeitaram os pedidos dos reguladores da Califórnia de reembolsos por
causa da constante manipulação de preços da empresa:
Kevin: Então o que está sendo dito é verdade? Esses filhos
da puta vão tirar todo o dinheiro de vocês? Todo aquele dinheiro
que vocês roubaram daquelas pobres avós na Califórnia?
Bob: Sim, caro. Mas foram elas que não souberam votar com essa porra do
voto automático.
Kevin: Sim, agora querem a porra do dinheiro de volta por toda a eletricidade
que você cobrou a 250 dólares o megawatt-hora.
Bob: Você sabe, você sabe, você sabe
mas isso é
aquilo por que Al Gore está lutando, já viu?
Mais tarde, na mesma conversa, Kevin e Bob menosprezam os californianos:
Kevin: Oh, a melhor coisa que pode acontecer é a porra de um terremoto,
deixe essa coisa flutuar no Pacífico e coloque velas neles.
Bob: Eu sei. Esses tipos, você só precisa demiti-los.
Kevin: Eles estão tão metidos na merda e tão, como posso
dizer...
Bob: Eles estão tão fodidos
A obscena avareza dos muito ricos agora supera o hedonismo e os excessos dos
déspotas mais hediondos e dos capitalistas mais ricos do passado. Em
2015, pouco antes de sua morte, a [revista]
Forbes
estimou que o património líquido de David Rockefeller era de 3
mil milhões. O Xá do Irão roubou cerca de mil
milhões ao seu país. Ferdinand e Imelda Marcos acumularam entre 5
e 10 mil milhões. O ex-presidente do Zimbabué, Robert Mugabe,
valia cerca de mil milhões. Jeff Bezos e Elon Musk valem cada um 180 mil
milhões. Sim, o decoro da presidência de Biden difere da
presidência de Trump. Mas a exploração mercenária
subjacente e o sadismo da sociedade americana permanecem intactos.
O Plano de Empregos Americanos de Biden nunca criará
"milhões de empregos bem remunerados empregos com os quais
os americanos possam criar suas famílias", assim como o NAFTA, que
ele apoiou, não criou como também havia sido prometido
milhões de empregos bem remunerados. Seu mantra do "compre
americano" é inútil. A grande maioria de nossos produtos
eletrónicos, roupas, móveis e produtos industriais é feita
na China por trabalhadores que ganham em média um ou dois dólares
por hora e não têm sindicatos e direitos sindicais básicos
[NT]
. Seu apelo para reduzir as franquias e os custos dos medicamentos prescritos
no Affordable Care Act nunca será permitido pelas empresas que lucram
com os cuidados de saúde.
Suas promessas de tributação justa, apesar de os homens mais
ricos do mundo Jeff Bezos, Elon Musk, Warren Buffett, Carl Icahn,
Michael Bloomberg e George Soros pagarem uma taxa de impostos real de
3,4%, não serão alteradas. Os subsídios corporativos e
incentivos fiscais que ele propõe como solução para a
crise climática
[NR]
nada farão para deter a fraturação hidráulica para
extrair petróleo e gás, fechar centrais a carvão ou
interromper a construção de novos gasodutos para centrais movidas
a gás. O dinheiro para projetos de infraestrutura é destinado a
grandes corporações e governos estaduais.
O sistema de saúde continuará privatizado, o que significa que as
seguradoras e as empresas farmacêuticas colherão dezenas de
milhares de milhões de dólares com o Plano de Resgate Americano,
e isto quando já estavam tendo lucros recordes. Os lucros que os grandes
bancos, Wall Street e os especuladores globais predatórios obtêm
com os níveis maciços de escravidão por dívida
imposta a uma classe trabalhadora mal paga, incluindo os empréstimos
estudantis, continuarão a direcionar dinheiro para as mãos de uma
pequena minoria oligárquica.
Não haverá reforma do financiamento das campanhas para acabar com
o sistema de suborno legalizado. Os gigantescos monopólios de tecnologia
permanecerão intactos. A censura imposta pelas plataformas de media
digitais, a obliteração de nossas liberdades civis e a
vigilância do governo por atacado continuarão a ser aplicadas. O
pedido de Biden de 715 mil milhões para o Departamento de Defesa no ano
fiscal de 2022, um aumento de 1,3 mil milhões (1,6%) em
relação a 2021, irá exacerbar as provocações
militares com a China e a Rússia, as guerras intermináveis no
Médio Oriente e a inchada indústria de defesa.
As indústrias que foram enviadas para o exterior e os empregos
sindicalizados bem remunerados não voltarão. Os 81 milhões
de americanos que lutam para cobrir as despesas domésticas
básicas, os 22 milhões que não têm comida suficiente
e os 11 milhões que não podem atender ao próximo pagamento
da casa estão prestes a bater numa parede quando os parcos
benefícios do alívio de contas pelo COVID acabarem e a
moratória sobre despejos e execuções hipotecárias
for levantada. A máquina do capitalismo predatório, e o sadismo
que o define, envenenarão a sociedade com a mesma crueldade com Biden
como quando Trump geria a presidência no Twitter. Essas chamadas reformas
não têm mais peso do que as promovidas por Bill Clinton e Barack
Obama, com quem Biden colaborou servilmente e que também prometeram
igualdade social enquanto traíam homens e mulheres trabalhadores.
Biden é a epítome da criatura vazia e amoral produzida pelo
sistema de suborno legalizado, aqueles que construíram a cultura de
sadismo. Sua longa carreira política no Congresso foi definida pela
representação dos interesses das grandes empresas, especialmente
as de cartão de crédito sediadas em Delaware. Ele foi alcunhado
de Senador do Cartão de Crédito. Sempre disse ao público o
que ele queria ouvir e depois os vendeu.
Foi um proeminente promotor e arquiteto de uma geração de leis
federais "duras com o crime" que militarizaram a polícia do
país e mais do que duplicaram a população do sistema
prisional, a maior do mundo, com diretrizes severas de condenação
obrigatória e leis que colocam pessoas na prisão por toda a vida
por crimes não violentos com drogas, mesmo enquanto o seu filho lutava
contra o vício. Ele foi o principal autor do
Patriot Act
.
E nunca houve um sistema de armas ou uma guerra que ele não apoiasse.
Nada de substancial mudará sob Biden, apesar da propaganda sobre ser o
próximo Franklin Roosevelt.
A administração Biden assemelha-se ao governo alemão
ineficaz formado por Franz von Papen em 1932, tentando recriar o antigo regime,
um conservadorismo utópico que garantiu a queda da Alemanha para o
fascismo. Biden está privado, como von Papen, de novas ideias e
programas. Manterá a máquina de repressão bem lubrificada,
uma máquina que foi fundamental na construção da sua
carreira política. Aqueles que resistirem serão atacados como
agentes de uma potência estrangeira e censurados, como muitos já
estão a ser, através de algoritmos e de plataformas
eletrónicas nas redes sociais. Os dissidentes mais ardentes, como Julian
Assange, serão criminalizados.
As elites fingem que Trump era uma anomalia bizarra. Ingenuamente acreditam que
podem fazer Trump e seus apoiantes mais vociferantes desaparecerem, banindo-os
das redes sociais. O "antigo regime" irá, afirmam, voltar com
o decoro da sua presidência imperial, respeito pelas normas
procedimentais, eleições elaboradamente coreografadas e
fidelidade às políticas neoliberais e imperiais. Mas o que as
elites governantes estabelecidas ainda não compreenderam, apesar da
estreita vitória eleitoral de Joe Biden sobre Trump e da tomada da
capital em seis de janeiro por uma multidão enfurecida, é que a
credibilidade da velha ordem está morta. A era Trump, se não o
próprio Trump, é, a menos que quebremos o domínio do poder
corporativo, o futuro. As elites governantes, representadas por Biden e o
Partido Democrata e a ala bem educada do Partido Republicano representada por
Jeb Bush e Mitt Romney, estão indo para o caixote do lixo da
história.
O crescente ressentimento dos desapossados é alimentado pelos media que
dividiram o público em grupos demográficos concorrentes. As
plataformas dos media tomam como alvo um grupo, alimentando as suas
opiniões e tendências, enquanto demonizam estridentemente o grupo
demográfico do outro lado do xadrez político. Isto provou ser um
êxito comercial. Mas também dividiu o país em
facções irreconciliáveis que não podem mais
comunicar entre si, sendo a verdade e a realidade dos factos ambas
sacrificadas.
O Partido Democrata, numa tentativa desesperada de controlar a narrativa
mediática, construiu uma aliança com gigantes da indústria
dos media sociais como Twitter, YouTube, Facebook, Patreon, Substack e Spotify
para restringir ou censurar os seus críticos. O objetivo é levar
o público de volta às organizações de
notícias aliadas do Partido Democrata, como
The New York Times, The Washington Post
e
CNN.
Mas estes meios de comunicação, que prestam serviço a
anunciantes corporativos, tornaram invisíveis as vidas da classe
trabalhadora e dos pobres. Eles são tão desprezados quanto as
próprias elites no poder.
A perda de credibilidade também deu origem a novos grupos, muitas vezes
espontâneos, bem como à franja lunática de direita que
abraça as teorias da conspiração como o
QAnon
. Eles aproveitam a indignação emocional, muitas vezes
substituindo uma indignação por outra. Fornecem novas formas de
identidade para substituir as identidades perdidas por dezenas de
milhões de americanos que foram postos de lado. Essa
indignação emocional pode ser aproveitada para causas
louváveis, como acabar com o abuso policial, mas muitas vezes é
efémera. Transforma o debate político em protestos de queixa, na
melhor das hipóteses, e mais frequentemente em espetáculo
televisivo.
Estes episódios não representam nenhuma ameaça para as
elites, a menos que construam estruturas organizacionais disciplinadas, o que
leva anos, e articulem uma visão do que poderia vir a seguir. É
por isso que apoio a Extinction Rebellion, que tem uma grande rede de base,
especialmente na Europa, realiza atos efetivos de desobediência civil e
tem um objetivo claramente declarado de derrubar as elites governantes e
construir um novo sistema de governo por meio de comités populares e
seleção aleatória. Mas essa indignação
emocional, que colocou Trump na Casa Branca, também pode atiçar o
sadismo americano, especialmente entre uma classe trabalhadora branca que se
sente destronada e abandonada.
O colapso de nossa sociedade não é apenas político.
É ecológico. Os cientistas há muito alertam que, à
medida que as temperaturas globais
[NR]
aumentam, aumentando a precipitação e as ondas de calor em
muitas partes do mundo, as doenças infecciosas disseminadas por animais
afetarão as populações e se expandirão para as
regiões do norte. Doenças zoonóticas doenças
que saltam de animais para humanos como SIDA que matou aproximadamente
36 milhões de pessoas, gripe aviária, gripe suína,
ébola e COVID-19, que já matou cerca de 4 milhões, se
espalharão pelo mundo em variantes cada vez mais virulentas,
frequentemente sofrendo mutações além do nosso controlo.
O uso indevido de antibióticos na indústria de
criação de animais, que responde por 80% de todo o uso de
antibióticos, produziu variantes de bactérias que são
resistentes aos antibióticos e fatais. Uma versão moderna da
Peste Negra, que no século XIV matou entre 75 e 200 milhões de
pessoas, eliminando talvez metade da população da Europa,
é provavelmente inevitável, desde que as indústrias
farmacêutica e médica estejam configuradas para ganhar dinheiro em
vez de proteger e economizar vidas.
Mesmo com as vacinas, não temos infraestrutura nacional para
distribuí-las de maneira eficiente porque o lucro supera a saúde.
E os do sul global estão, como sempre, abandonados, como se as
doenças que os matam nunca nos alcancem. A decisão de Israel de
distribuir vacinas COVID-19 para 19 países, enquanto se recusa a vacinar
os 5 milhões de palestinos que vivem sob sua ocupação,
é emblemática da impressionante miopia da elite governante, para
não mencionar da imoralidade.
O que está a acontecer não é negligência. Não
é inépcia. Não é uma falha política.
É um assassinato social. É assassinato porque é
premeditado. É assassinato porque uma escolha consciente foi feita pelas
classes dominantes globais para extinguir a vida em vez de protegê-la.
É um assassinato porque o lucro, apesar das estatísticas, das
crescentes perturbações climáticas e da modelagem
científica, é considerado mais importante do que a
sobrevivência humana.
As elites globais prosperam neste sistema, contanto que cumpram os ditames do
que
Lewis Mumford
chamou de "megamáquina", a convergência de
ciência, economia, tecnologia e poder político unificados numa
estrutura burocrática integrada cujo único objetivo é
perpetuar-se. Essa estrutura, observou Mumford, é antitética aos
"valores que melhoram a vida". Mas desafiar a megamáquina,
nomear e condenar o seu desejo de morte, é ser expulso de seu
santuário interno. Há, sem dúvida, alguns dentro da
megamáquina que temem o futuro, que estão horrorizados com o
assassinato social, que se preocupam com o que vai acontecer aos seus filhos,
mas não querem perder seus empregos e sua condição social
para se tornarem párias.
Os militares dos Estados Unidos que respondem por 38% dos gastos
militares em todo o mundo são, naturalmente, incapazes de
combater a grave crise existencial diante de nós. Os caças,
satélites, porta-aviões, frotas de navios de guerra, submarinos
nucleares, mísseis, tanques e vastos arsenais de armas são
inúteis contra as pandemias e a crise climática. A máquina
de guerra, que gasta 1,2 milhões de milhões de dólares
para modernizar o arsenal nuclear, não faz nada para mitigar o
sofrimento humano causado por ambientes degradados que adoecem e envenenam
populações ou tornam a vida insustentável.
A poluição do ar já mata cerca de 200 mil americanos por
ano, enquanto as crianças em cidades decadentes como Flint, Michigan
ficam afetadas para o resto da vida com a contaminação de chumbo
na água potável. E, além de tudo isto, os militares dos
EUA emitiram 1 200 mil milhões de toneladas de emissões de CO2
entre 2001 e 2017, o dobro da produção anual dos veículos
de passageiros do país.
As gerações futuras, se houver alguma, olharão para
trás, para a atual classe dominante global como a mais criminosa da
História da humanidade, condenando deliberadamente milhares de
milhões de pessoas à morte. Esses crimes estão a ser
cometidos à nossa frente. E, com poucas exceções, somos
conduzidos como ovelhas para o matadouro.
O mal radical que torna possível este assassinato social é
perpetrado por burocratas e tecnocratas incolores que saem das escolas de
negócios, faculdades de direito, programas de gestão e
universidades de elite. Nulidades demoníacas. São estes os
gestores de sistemas que realizam as tarefas que fazem com que os vastos e
complicados sistemas de exploração e morte funcionem. Eles
coletam, armazenam e manipulam nossos dados pessoais para monopólios
digitais e o Estado de segurança e vigilância. Lubrificam as rodas
da ExxonMobil, BP e Goldman Sachs. Escrevem as leis que a classe
política, comprada e paga, aprova. Conduzem drones que aterrorizam os
pobres no Afeganistão, Iraque, Síria e Paquistão.
Eles lucram com as guerras sem fim. São os propagandistas corporativos,
especialistas em relações públicas, especialistas em
televisão que inundam com mentiras. Dirigem os bancos. Supervisionam as
prisões. Emitem formulários. Processam papéis. Negam
vales-refeição e cobertura médica para alguns e
benefícios de desemprego para outros. Realizam os despejos. Fazem
cumprir as leis e os regulamentos. Eles não fazem perguntas, eles vivem
num vácuo intelectual, um mundo de minúcias embrutecedoras. Eles
são "os homens vazios", "os homens coisa" de T.S.
Eliot. "Forma sem forma, sombra sem cor", como escreveu o poeta.
"Força paralisada, gesto sem movimento."
Estes gestores do sistema possibilitaram os genocídios do passado.
Mantiveram os comboios a funcionar. Preencheram a papelada. Apreenderam a
propriedade e confiscaram as contas bancárias. Fizeram o seu
processamento. Racionaram a comida. Administraram os campos de
concentração e as câmaras de gás. Impuseram a lei.
Eles fizeram o seu trabalho. Estes gestores do sistema, sem nenhuma
educação, exceto na sua minúscula especialidade
técnica, carecem de linguagem e autonomia moral para questionar as
suposições ou estruturas dominantes.
O romancista russo
Vasily Grossman
no seu livro
Forever Flowing
observou que "o novo Estado não exigia santos apóstolos,
fanáticos, construtores inspirados, discípulos fiéis e
devotos. O novo Estado nem mesmo exigia criados apenas
escriturários." Essa ignorância metafísica, produto de
um sistema educacional que é principalmente vocacional, une as
engrenagens da cultura do sadismo e do assassinato social. Não nos
livraremos do capitalismo predatório e de sua cultura de sadismo com
escassas esmolas do governo. Não vamos desviar-nos porque os habilidosos
escritores dos discursos de Biden e especialistas em relações
públicas, que usam sondagens e fazedores de opinião para nos
dizer o que queremos ouvir e fazer-nos sentir que a administração
está do nosso lado. Não há boa vontade na Casa Branca de
Biden, no Congresso, nos tribunais, nos media que se tornaram uma
câmara de eco das classes privilegiadas ou nas salas de
reunião corporativas. Eles são o inimigo.
Vamos libertar-nos desta cultura de sadismo da mesma forma que os desapossados
se afastaram do estrangulamento do capitalismo de compadrio durante a Grande
Depressão, organizando, protestando e desorganizando o sistema
até as elites governantes serem forçadas a conceder medidas de
justiça social e económica. O
Bonus Army
, dos veteranos da Primeira Guerra Mundial a quem foi negado o pagamento de
pensões, montou enormes acampamentos em Washington, que foram
violentamente dispersos pelo exército. Grupos de vizinhança,
muitos deles membros dos
Wobblies
ou do Partido Comunista, na década de
1930 impediram fisicamente os xerifes de despejarem famílias. Em 1936 e
1937, o sindicato United Auto Workers realizou uma greve dentro das
fábricas que paralisou a General Motors, forçando a empresa a
reconhecer o sindicato, aumentar os salários e satisfazer as
exigências sindicais de proteção do emprego e
condições de segurança no trabalho.
Os agricultores, forçados à falência e
execuções hipotecárias pelos grandes bancos e Wall Street,
fundaram a Farmer's Holiday Association para protestar contra a
apreensão de fazendas familiares, uma das razões pelas quais
ladrões de bancos como John Dillinger, Bonnie e Clyde e a Barker Gang
eram heróis populares. Os fazendeiros bloquearam estradas e
destruíram montanhas de produtos agrícolas, reduzindo a oferta e
aumentando os preços. Os agricultores, tal como os trabalhadores
sindicalizados da indústria automobilística, suportaram ampla
vigilância do governo e ataques violentos do FBI, capangas da empresa,
assassinos contratados, milícias e departamentos do xerife. Mas a
militância funcionou. Os fazendeiros forçaram o Estado a aceitar
uma moratória nas execuções de hipotecas. Ao mesmo tempo,
as manifestações em massa fora das capitais pressionaram os
parlamentos estaduais a bloquear a cobrança de hipotecas vencidas.
Agricultores e rendeiros do sul sindicalizaram-se. O Departamento do Trabalho
chamou à sua ação coletiva de "guerra civil em
miniatura". Em todo o país, os desempregados e os famintos ocuparam
casas e terrenos baldios, formando favelas conhecidas como
Hoovervilles
. Os destituídos ocuparam prédios públicos e
serviços públicos. Essa pressão constante e não a
boa vontade de Roosevelt criou o New Deal. Ele e seus companheiros oligarcas
acabaram entendendo que se não houvesse reforma haveria
revolução, algo que Roosevelt reconheceu na sua
correspondência privada.
Até que as pessoas sejam reintegradas na sociedade, até que o
controle das corporações e oligarquias sobre os nossos sistemas
educacionais, políticos e dos media sejam removidos, até
recuperarmos a ética do bem comum, não temos qualquer
esperança de reconstruir os laços sociais positivos que promovem
uma sociedade saudável.
A história ilustrou amplamente como esse processo funciona. É um
jogo de medo. E até deixarmos as elites governantes com medo, até
que um aterrorizado Joe Biden e os oligarcas que ele serve olhem para um mar de
gente com forcados, não pararemos a cultura do sadismo e do assassinato
social que eles engendraram.
A rebelião, no entanto, deve ter sua própria justificativa.
É um imperativo moral, não prático. Não apenas
corrói, ainda que impercetivelmente, as estruturas de opressão,
mas mantém o lume da empatia e compaixão, bem como da
justiça, dentro de nós, desafiando o sadismo que impregna todas
as camadas da nossa existência. Em suma, mantém-nos humanos. A
rebelião deve ser abraçada, finalmente, não apenas pelo
que ela vai realizar, mas pelo que ela permitirá que nos tornemos. Nesse
devir, encontramos esperança.
29/Junho/2021
[NT] A China, conforme declarou Xi Jinping, concretizou o objetivo da
construção de uma
sociedade moderadamente próspera
em todos os aspetos, alcançando a histórica
situação de ter erradicado a pobreza extrema. Algo que nem a UE e
muito menos os EUA conseguem.
[NR] Ver
A impostura global
.
A primeira parte deste artigo encontra-se
aqui
.
[*]
Jornalista. Ver
Chris Hedges
. Palestra feita em
The Sanctuary for Independent Media
, em Troy, Nova York, 27/Jun/21.
O original encontra-se em
scheerpost.com/2021/06/29/chris-hedges-speaks-on-american-sadism/
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
.
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