"Desintegração", de Andrei Martyanov
Este é o terceiro livro de Andrei Martyanov que revejo. O primeiro foi
Losing Military Supremacy: the Myopia of American Strategic Planning
e o segundo foi
The (Real) Revolution in Military Affairs
. Também entrevistei Andrei acerca deste segundo volume,
aqui
. O livro que resenho hoje,
Disintegration: Indicators of the Coming American Collapse
pode ser pré-encomendado à
Clarity Press
ou ao
Books Depository
.
Se as duas primeiras obras focavam principalmente questões de
planeamento de forças e poder militar, este terceiro volume trata do
contexto mais vasto e mostra, exemplo após exemplo, que os Estados
Unidos estão não só a fracassar nas suas tentativas de
permanecer uma potência hegemónica mundial como também
estão, de facto, num processo a que poderíamos chamar
"colapso de pleno espectro" ou, como Martyanov, simplesmente de
"desintegração". Especificamente, o livro examina as
manifestações da desintegração nas seguintes
esferas:
1. Consumo
2.
Affluenza
[1]
3. Geoeconomia
4. Energia
5. Fabricação de coisas
6. Elites ocidentais
7. A perder a corrida às armas
8. O Império acima de tudo e todos
(Empire Über Alles)
incluindo os americanos
9. Ser ou não ser
10. Conclusão: Não excepcional, não livre, não
próspero Não América?
Trata-se de assuntos dramáticos que não descreverei em pormenor
porque quero realmente encorajar tantas pessoas quanto possível a lerem
este livro. Porquê?
Principalmente porque enquanto os dois primeiros livros de Martyanov tratavam
primariamente de questões militares e geoestratégicas, este vai
muito mais longe e examina as razões socioculturais mais vastas que
criam o contexto para uma falta tão dramática de capacidades
militares reais.
Há um mês atrás escrevi um artigo a que chamei
"A Zona B existe, assim há esperança, prometo!"
no qual tentei mostrar que a pseudo "realidade" na qual a maioria das
pessoas no Ocidente são artificialmente mantidas pela máquina de
propaganda mais eficaz (e insidiosa) da história não é de
todo a "realidade real"! Não só isso, mas que a maior
parte do planeta vive na "Zona B" já há bastante tempo.
De facto, esta "Zona B" já avançou, mesmo que os
sio-media nunca informem acerca disto.
Bem, pode-se pensar dos livros de Martyanov como o exemplo perfeito de um
"livro da Zona B": não só Martyanov desmascara a
maior
parte dos mitos da máquina de propaganda do EUA como também faz o
contraste destas ilusões com exemplos do mundo real.
Pode-se comprar apenas um ou dois dos livros de Martyanov, e cada um deles tem
mérito em si, mas realmente penso neles como uma trilogia que deveria
ser lida e discutida pelo maior número possível de pessoas no
Ocidente. De facto, poder-se-ia pensar neles como uma espécie de
"curso intensivo sobre o desmascaramento de ilusões e o regresso
à realidade". A mensagem dominante dos três volumes é
a seguinte: "Povo dos Estados Unidos, as vossas elites dirigentes
estão a mentir-vos tal como a orquestra de câmara no Titanic que
tocava música enquanto o supostamente 'inafundável'
Titanic ia ao fundo".
Curiosamente, Martyanov acrescenta que, de todas as nações, os
russos compreendem estes processos melhor do que ninguém porque
também eles sofreram o mesmo destino durante o "pesadelo
democrático dos anos 90" (eu acrescentaria que os descendentes de
russos brancos como eu próprio também recordam o "pesadelo
democrático" sob Kerenskii em 1917). Martyanov escreve:
"O colapso da União Soviética e a catástrofe
económica que se seguiu ensinou muito aos russos e também deixou
um gosto residual da humilhação de perda de poder um
processo que os Estados Unidos estão a atravessar exactamente
agora".
Verdade seja dita, Martyanov dificilmente é a primeira pessoa a
mencionar as semelhanças assombrosas entre a União
Soviética do final dos anos 80, ou a Rússia dos anos 90, com os
EUA das últimas duas décadas (ou mais). Por exemplo, Martyanov
menciona
Dmitry Orlov
, cujos
muitos livros
têm examinado, o que ele chama as "fases de colapso"
(financeiro, económico, político, social, cultural e,
posteriormente, ele acrescentou ecológico) e tornaram-se um precioso
instrumento analítico para muitos investigadores. Muitas décadas
antes, Alexander Solzhenitsyn, de quem Martyanov não gosta nada,
também mencionava frequentemente que o Ocidente dos anos 80 lhe
recordava a Rússia do início do século XX. Este trecho
é apenas para ilustrar o ponto de vista de Martyanov:
"Falando em termos comezinhos, os russos conseguem-no. Eles, ao
contrário de qualquer outro povo no mundo, podem fazer uma
relação com o que os Estados Unidos atravessam neste momento. Os
russos podem ler os sinais extremamente bem, ao passo que a elite americana
não só não tem qualquer experiência como está
completamente isolada do seu entendimento. Isto é a tragédia
americana a desdobrar-se diante dos nossos próprios olhos. Não
só a crise americana é sistémica, como as suas elites
são incultas, mal educadas e hipnotizadas por décadas da sua
própria propaganda, a qual acabam por aceitar como uma realidade".
Eu não podia estar mais de acordo. Acrescentaria ainda que os russos que
escrevem livros e artigos a tentarem desesperadamente advertir o povo dos EUA
da verdadeira catástrofe que está a ocorrer, fazem-no não
por serem hostis aos Estados Unidos, mas precisamente por serem
simpáticos para com o povo dos EUA. Os pseudo-patriotas agitando
bandeiras que acusam estes russos de serem "anti-americanos"
simplesmente não compreendem os "russos maus" que tanto odeiam
(principalmente porque a Rússia moderna sob Putin tem tido um sucesso
fantástico, apesar das sanções, ameaças,
subversão, etc, enquanto os EUA estão em agonia. É por
isso que estas pessoas estão dispostas a acreditar em qualquer coisa de
mau, por muito estúpida que seja, sobre a Rússia e/ou Putin).
Sim, claro, os russos detestam e desprezam a
nomenklatura
dirigente americana, tal como desprezavam a sua própria nomenklatura,
soviética. Mas isso não implica de forma alguma o que muitos
confundem com hostilidade
"anti-americana".
[
A latere:
nos meus quase 58 anos de vida fui abençoado com a
oportunidade de viajar muito e falar cerca de seis línguas, mas nunca me
deparei com aquilo a que eu chamaria "antiamericanismo". Mesmo em
países supostamente hostis aos EUA, o verdadeiro foco da raiva e
repugnância das pessoas são as acções do
Império Anglo-sionista, o parasita feio que se alimenta do seu
hospedeiro americano. Tomemos um país como, digamos, o Brasil. Os
sentimentos anti-"ianques" sempre foram fortes ali, no entanto, os
músicos brasileiros são conhecidos por fundirem belamente a
música americana e brasileira (ver este
soberbo exemplo
). O mesmo é verdadeiro noutros lugares: as pessoas odeiam as
políticas estado-unidenses, mas muito raramente o povo dos EUA. Neste
momento, a julgar pela comunidade de língua russa e emails de amigos, os
russos sentem sobretudo pena do povo dos EUA, não ódio, e isto
porque o "entendem" como Martyanov afirma correctamente. Claro que
há pessoas estúpidas e/ou fanáticas em todos os
países e estou certo de que há quem odeie os Estados Unidos como
país, mas estou confiante de que se trata de uma pequena minoria. Resta
uma categoria interessante: aqueles que se tornam críticos da sociedade
estado-unidense depois de terem vivido nos EUA; um exemplo famoso disso seria
Sayyid Qutb
].
Nada disso se destina a branquear toda a violência e feiúra da
curta mas extremamente violenta história dos EUA. Mas violência e
feiúra existem na história de provavelmente todos os
países do planeta (houve certamente muita violência e
feiúra na história da Rússia!). É verdade, os EUA
foram provavelmente um dos regimes mais sangrentos e violentos da
história, mas essa violência deve ser atribuída ao
imperialismo e ao capitalismo e não a algo único nos EUA (o
Império Britânico foi possivelmente o mais criminosamente violento
da história). Ainda mais importante para a compreensão da
história dos EUA é que a maior parte da sua violência teve
as suas raízes não em causas nacionais ou raciais, mas nas muitas
lutas sociais ou, melhor, lutas de classe que apimentaram a história dos
EUA. Mais uma vez, as discussões sobre questões de classe
têm sido amplamente apagadas de todos os livros escolares na Zona A,
privando aqueles que tiveram o infortúnio de serem educados no Ocidente
de um dos mais importantes instrumentos de análise política e
económica.
A importância do acima referido não pode ser exagerada e é
por isso que Martyanov volta reiteradamente ao tema da educação
das classes dirigentes ocidentais. Nas últimas páginas de
Disintegration,
Martyanov escreve:
Portanto, nenhuma ideia ou solução viável para a actual
catástrofe económica, social e cultural em desdobramento pode ter
origem no seio destas elites, as quais só vêem o mundo
através das lentes da Wall Street e do New York Times. O verdadeiro
intelecto, coragem e integridade simplesmente não estão ali:
todos eles foram trocados pelas regalias e sinecuras do que muitos descrevem
correctamente como a gosma de Washington D.C., cujo único
propósito da existência é a
auto-perpetuação.
Acrescentaria apenas que existe uma ironia cármica
[2]
no facto de ser precisamente porque estas classes dominantes não
têm outro propósito na vida que não seja a
auto-perpetuação (e o consumo, acrescentaria eu) elas
estão a conduzir a si próprias e ao país que
exploram à extinção.
Conclusão: estes são livros que "devem ser lidos" por
todos da Zona A! (e até pelos da Zona B!)
Finalmente, é exactamente porque os livros de Martyanov são como
que "mensagens da Zona B" que insto toda a pessoa a viver nos EUA ou
na UE a que os leia. Como disse, cada um destes livros vale por si
próprio, mas em conjunto eles alcançam uma espécie de
massa crítica intelectual que torna a sua leitura verdadeiramente
"um dever", especialmente para aqueles que odeiam o seu regime
dominante mas amam o seu país.
Estes livros são todos bastante curtos, muito bem escritos, têm
índices decentes (mas não perfeitos) e são de leitura
fácil. Se quiser obter um resumo soberbo do que está *realmente*
a acontecer nos Estados Unidos (em oposição à propaganda
anglo-sionista francamente risível ou aos slogans infantis e
rudimentares dos "Trump patriots" que agitam bandeiras) leia
estes livros. Se tiver amigos com cérebros lavados, dê-lhes algum
(ou melhor, todos eles) destes livros: eles são como um "curso
intensivo de estudos da realidade". Se tiver familiares que ainda
acreditam em todos os disparates sobre o "excepcionalismo americano",
desafie-os a ler estes livros.
Pessoas a viverem na Zona B também beneficiariam imensamente com a
leitura dos livros de Martyanov. Não porque estes livros lhes
dirão muito que ainda não saibam, pelo menos vagamente, mas
porque estes livros são também uma espécie muito
confiável de
relatório de situação (SITREP) do "estado dos Estados
Unidos". Na minha experiência, enquanto a
maior parte das pessoas (pelo menos as bem lidas) da Zona B geralmente
compreendem que o Império está morto (ou muito próximo da
morte) e se bem que também sintam que os EUA estão a sofrer uma
maciça catástrofe interna, a maior parte destas pessoas da Zona B
não aprecia plenamente a magnitude e gravidade destas crises.
Também para elas os livros de Martyanov serão reveladores.
Por isso espero que os três livros de Martyanov sejam
rapidamente traduzidos para o russo: eles tornar-se-ão instantaneamente
um êxito e, ainda mais importante, serão lidos nas academias e
universidades russas. O francês e o espanhol também são
línguas em que merecem serem traduzidos.
Mas, acima de tudo, espero (contra qualquer senso comum ou lógica) que
estes livros sejam lidos por responsáveis *verdadeiramente*
patrióticos dos EUA, planeadores de forças, analistas, decisores
políticos, etc. Neste momento, existe uma ameaça real destas
pessoas tropeçarem numa guerra de tiros com a Rússia em que os
EUA nunca sobreviverão (nem a Rússia ou grande parte do resto do
mundo, claro). Mas mesmo que por algum milagre esta guerra potencial
permaneça não-nuclear, os EUA ainda serão
destruídos, pelo menos como um país funcional, pelas capacidades
convencionais russas. Este é o maior perigo único e autores como
Martyanov quando falam do desastre possível estão
desesperadamente a tentar evitá-lo: uma grande guerra provocada por uma
despistada
nomenklatura
dominante envolvendo um país (os EUA) que
nunca combateu uma guerra defensiva na sua história e que nunca
experimentou uma guerra real, especialmente contra um adversário
competente. Posso apenas acrescentar que, no caso de uma guerra convencional, a
Rússia tem agora os meios para defender não apenas o seu
espaço aéreo, mas uma "zona de proximidade da
fronteira russa" conceptual de cerca de 800km-1000km (e este
alcance está a aumentar constantemente). Os EUA não podem. Nem a
UE nem a NATO. E quanto a todas as promessas tolas de mísseis
maravilhosos feitas pelo Complexo Militar Industrial+Pentágono de
, não se trata de algo que irá alterar a situação a
curto ou médio prazo.
Quanto mais o povo nos EUA perceber isto, melhores as probabilidades de evitar
uma catástrofe terrível. Daí a importância neste
momento dos livros de Andrei Martyanov.
01/Março/2021
NT
[1] "Afluenza": Condição social decorrente do desejo de ser mais rico ou ter
mais êxito. Também pode ser definida como a incapacidade de um indivíduo
compreender as consequências de suas acções devido ao seu status social e/ou
privilégio financeiro. Ver
www.investopedia.com/terms/a/affluenza.asp
[2] De carma
(karma):
Conceito da filosofia hindu. Significa acção, trabalho ou feito,
refere-se também ao princípio espiritual de causa e efeito em que
intenções e acções de um indivíduo (causa)
influenciam o futuro daquele indivíduo (efeito). Boas
intenções e bons feitos contribuem para bom carma e futura
felicidade, ao passo que más intenções e maus feitos
contribuem para carma mau e futuro sofrimento.
Andrei Martyanov em resistir.info:
"A revolução (real) nos assuntos militares"
, The Saker
A supremacia militar perdida dos EUA
, Jorge Figueiredo
A perda da supremacia militar e a miopia do planeamento estratégico dos EUA (I)
, Daniel Vaz de Carvalho
A perda da supremacia militar e a miopia do planeamento estratégico dos EUA (2)
, Daniel Vaz de Carvalho
O gato e o cozinheiro
, Andrei Martyanov
A revolução nos assuntos militares ainda não reconhecida pelos ignaros
, Daniel Vaz de Carvalho
Trump, NATO e "agressão russa"
, Pepe Escobar
Como Putin virou o jogo: a paz através da força
, Andrei Martyanov
Chihuahuas começam a ladrar
, Andrei Martyanov
Cheque-mate: As implicações dos novos sistemas de armas da Rússia
, Andrei Martyanov
O original encontra-se em
thesaker.is/book-review-disintegration-by-andrei-martyanov/
e em
www.unz.com/tsaker/book-review-disintegration-by-andrei-martyanov/
Esta resenha encontra-se em
https://resistir.info/
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