O fim da era do iluminismo
A Era do Iluminismo decorreu entre os séculos XVII e XIX. Ela conduziu
à Era Industrial e, na sequência, às Eras do Espaço
e da Informação. Estas épocas históricas levaram a
humanidade a grandes avanços na ciência, na medicina, no
intercâmbio de informações e na qualidade de vida. Hoje,
todos estes avanços da humanidade estão a ser ameaçados
por aqueles que pretendem que a sociedade retorne a uma era marcada por
superstição, crença em magia e milagres, ignorância,
intolerância racial e religiosa e sexismo abjecto.
A actual pandemia do coronavírus COVID-19 fez mais para incentivar uma
rejeição global do método científico do que,
talvez, qualquer outro evento de memória recente. Desde a Peste Negra do
século XIV, líderes de governo e membros do público
têm apresentado políticas que se opõem à
ciência médica, à verdade e à racionalidade. Tal
como o coronavírus, a Peste Negra teve origem no Extremo Oriente e,
finalmente, graças às pulgas de ratos que transportavam a
pestilência para o oeste, acabaram no Médio Oriente e na Europa.
Além de mais de 60% da população da Europa morrer na pior
pandemia do mundo, mais de 375 milhões de pessoas em todo o mundo podem
ter sucumbido à doença. Foi durante a pandemia que a ideia de
decretar quarentenas de cidades inteiras ficou estabelecida, algo que as
autoridades chinesas e italianas encenaram com o COVID-19.
O principal entre aqueles que lançaram a ciência e as melhores
práticas médicas ao vento é Donald Trump, o qual politizou
o coronavírus ao chamar a reacção dos media de
"fraude" engendrada pelos seus oponentes do Partido Democrata. Trump
também utilizou o vírus para iniciar outros ataques
políticos, incluindo chamar o governador Jay Inslee, do estado de
Washington, o qual experimentou um grande surto de coronavírus, de
"cobra". Trump apresentou informações evidentemente
falsas sobre o vírus, contradizendo até mesmo o seu
próprio secretário de Saúde e Serviços Humanos,
Alex Azar, e funcionários dos Institutos Nacionais de Saúde,
Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas e Centros de
Controle e Prevenção de Doenças (CDC).
Depois de as autoridades de saúde pública dos EUA pedirem
àqueles que apresentavam sintomas do COVID-19 que se auto-colocassem em
quarentena dentro de casa, Trump instou as pessoas a irem trabalhar. Esse
sentimento foi reflectido pelo assessor económico da Casa Branca de
Trump, Larry Kudlow, ex-viciado em cocaína. Kudlow afirmou falsamente
que os Estados Unidos tinham o vírus "contido" e permaneciam
"herméticos" a infecções de origem estrangeira.
Trump e Kudlow também incentivaram as pessoas a ignorarem as
advertências de saúde pública, a trabalharem e a
prosseguirem suas rotinas normais. O Dr. Jerome Adams, o US Surgeon General
e anestesista, instou os americanos a obterem uma vacinação
contra a gripe sazonal, ainda que isso não tenha efeito sobre o
coronavírus. Anteriormente, Trump perguntara a especialistas
médicos governamentais e funcionários de empresas
farmacêuticas se a vacina comum contra a gripe não poderia ser
usada para prevenir o coronavírus. Os líderes das
instituições médicas e da Big Pharma mal conseguiram
acreditar no que ouviam, pois Trump fazia uma série de perguntas e
pontificava sobre assuntos que não estavam dentro dos padrões
normais de um aluno do terceiro da escola primária.
Trump também insistiu em usar números por ele elocubrados para
descrever uma pandemia muito séria. Ele disse que seu
"palpite"
("hunch")
era que a taxa de mortalidade do COVID-19 estava abaixo de 1%. De facto,
segundo a OMS, é de 3,4% globalmente, um número que Trump chamou
de "falso". Na realidade, a taxa de mortalidade dos casos de
coronavírus nos Estados Unidos era, no momento deste artigo, a segunda
maior do mundo: 5,7%. Os Estados Unidos também ficaram atrás de
outros países que estão a testar o vírus. Trump afirmou
que todo americano que quisesse fazer o teste poderia fazê-lo. A verdade
é que não havia kits de teste suficientes para verificar todos os
americanos. Inicialmente, Trump proibiu os estados e governos locais de
realizarem seus próprios testes, exigindo que fossem realizados pelo
CDC. O único interesse de Trump era suprimir o número de
americanos infectados.
As recomendações de Trump e de conselheiros seus têm sido
tão ridículas quanto algumas das políticas adoptadas por
governantes do século XIV em relação à Peste Negra.
Durante a peste da Peste Negra, alguns governantes europeus recorreram a mapas
astrológicos para explicar a doença. Trump virou-se para um
calendário normal e disse acreditar que o clima mais quente da primavera
faria com que o coronavírus desaparecesse. Numa reunião na Casa
Branca, Trump disse: Isto vai desaparecer. Um dia, como num milagre,
desaparecerá. Assim como os conselheiros das cortes reais do
século XIV acreditavam na astrologia para prever o fim da Peste Negra, a
crença de Trump de que um clima mais quente interrompe a pandemia do
coronavírus está totalmente errada. Tal como observado na
disseminação do coronavírus em países de clima
quente como Índia, Filipinas, Indonésia, Malásia,
Singapura, Tailândia, Equador e Nigéria, as previsões
epidemiológicas de Trump são tão ridículas quanto a
sua rejeição à ciência da mudança
climática e aos padrões de segurança do meio ambiente. Em
ciência, há factos, não "milagres".
A política de pandemia de Trump sendo reactiva, ao invés de
proactiva, foi antecedida por enormes cortes orçamentais nas verbas para
a resposta a pandemia nos Estados Unidos. Entre as entidades de resposta
à pandemia que foram desestabilizadas por Trump estavam a Global Health
Security and Biodefense do Conselho de Segurança Nacional e a sua
contrapartida no Departamento de Segurança Interna. Trump também
reduziu severamente o orçamento do Serviço de Inteligência
Epidêmica (CDI) do CDC, também conhecido como "detectives de
doenças" do governo. Trump disse ao CDC durante uma visita recente
que a melhor maneira de detectar pontos quentes de coronavírus era
"sentar e esperar" que eles aparecessem. O primeiro-ministro da
Escócia, Nicola Sturgeon, rebateu Trump num tweet: Há uma
responsabilidade enorme de todos os líderes num momento como este (eu
sei pois sinto isso intensamente) em ouvir a ciência, entender suas
implicações, aplicar julgamento e assegurar que tudo isso seja
reflectido em mensagens públicas claras, consistentes e
responsáveis".
A Organização Mundial da Saúde (OMS) lamentou o facto de
que, juntamente com a pandemia de coronavírus, houvesse uma
"infodemia" de informações falsas sendo difundidas por
media irresponsáveis e pela Internet. Aqueles de ascendência
asiática foram sujeitos a ataques xenófobos só porque os
primeiros casos de vírus foram descobertos em Wuhan, China. Durante a
Peste Negra, europeus acusaram como bodes expiatórios como
responsáveis pela praga mortal diversos grupos. Eles incluíam
judeus, estrangeiros, mendigos, leprosos, pessoas com acne ou psoríase e
o povo cigaro. Trump sugeriu fechar a fronteira dos EUA com o México, um
sinal de que ele gostaria de utilizar os migrantes da América Latina,
mais uma vez, como um bode expiatório conveniente para apoiar as suas
políticas xenófobas.
O coronavírus também resultou no aumento de
"negação" em alguns países. Alguns países
começaram a subestimar o número de casos de coronavírus ou
negaram a existência de alguém dentro de suas fronteiras que
houvesse contraído o vírus. O Irão acusou a Turquia, a
qual não havia relatado quaisquer casos de vírus, de tal
política.
Durante vários dias Trump insistiu em que havia apenas 15 casos nos
Estados Unidos e que todos os pacientes se haviam recuperado, excepto um. O
número real era, obviamente, muito maior. Embora Trump tenha insistido
que passageiros de companhias aéreas que chegavam de zonas quentes de
vírus estavam a ser examinados nos aeroportos dos EUA, isso não
era o caso. O governo completamente corrupto e inepto de Trump começou a
emular países como o Zimbabwe e o Paquistão. Exemplo: os
passageiros que chegavam ao Aeroporto Internacional Robert Gabriel Mugabe, em
Harare, recebiam apenas verificações superficiais da temperatura,
ao passo que no Aeroporto Internacional Jinnah, em Karachi, as autoridades do
aeroporto estavam a extorquir dinheiro dos passageiros chegados em troca da
permissão para que saíssem do aeroporto e ultrapassassem os
procedimentos médicos. No Aeroporto Internacional John F. Kennedy, em
Nova York, os passageiros que chegam em voos directos de Milão, a zona
quente italiana, não relataram exames médicos ao passar pela
imigração.
As sanções draconianas de Trump contra o Irão
também contribuíram para a disseminação
maciça do coronavírus e os falsos rumores sobre ele naquele
país. O Irão até foi impedido pelo governo Trump de
acessar um painel da web de estatísticas globais de coronavírus
mantido pela Johns Hopkins University.
As políticas de Trump, bem como as de alguns outros dirigentes
medievalistas, não são muito diferentes dos poderes que existiam
durante o período negro da Peste bubónica. O escritor italiano do
século XIV, Giovanni Boccaccio, escreveu sobre os equivalentes do
séc. XIV a Trump, Kudlow e os partidários de Trump que
actualmente desconsideram a ciência no que diz respeito ao
coronavírus alguns acreditam que os efeitos do vírus
estão a ser exagerados ou que o próprio vírus é uma
"farsa". Boccaccio escreveu que a Europa do séc. XIV sofria
devido aos que "adulteravam as suas mentes com música e outras
delícias que pudessem imaginar. Outros, cuja tendência das suas
mentes estava na direcção oposta, afirmavam que se devia beber
livremente, frequentar locais públicos aprazíveis, sentir prazer
com a música e divertir-se, satisfazer qualquer apetite, rir e gracejar
por tudo e por nada.
Na Europa do século XIV, havia quem se aproveitasse da praga para vender
produtos que falsamente alegavam afastá-la, incluindo, segundo
Boccaccio, "flores ou ervas aromáticas ou diversos tipos de
especiarias". O procurador-geral de Nova York advertiu recentemente o
aliado de Trump e execrado televangelista Jim Bakker a deixar de vender uma
"Solução de Prata" ("Silver Solution") no seu
sítio web como uma terapia preventiva contra o coronavírus.
Bakker não é o único a ladrar no carnaval pró
Trump, a aproveitar-se da pandemia para vender toda espécie de terapias
"banha de cobra".
A propensão de Trump a culpar outros países pelos males da
América teve um efeito dominó global em relação ao
coronavírus. O secretário de Estado Mike Pompeo iniciou as
recriminações internacionais ao acusar a China de encobrir
informações quanto ao que ele continua a chamar de
"vírus Wuhan". Pompeo também culpou o sistema
político da "China Comunista", uma expressão pejorativa
da Guerra Fria há muito esquecida, de espalhar o vírus.
Hipocritamente, Pompeo fez sua alegação espúria acerca da
alegada censura chinesa, quando Trump declarou que nenhuma parte do governo
federal deveria revelar informações sobre o COVID-19, a menos que
isso fosse autorizado pelo gabinete do vice-presidente Pence.
O senador aliado de Trump, Tom Cotton, do Arkansas, alegou, sem provas, que o
coronavírus fora desenvolvido como uma arma biológica num
laboratório do governo chinês em Wuhan. Um político
iraniano fez a mesma acusação contra os Estados Unidos, afirmando
que o vírus era uma arma biológica americana. A Arábia
Saudita culpou o Irão pelos seus casos de coronavírus. O
primeiro-ministro japonês Shinzo Abe, cuja renúncia foi exigida em
mais de um milhão de postagens no Twitter pelo seu manuseio inepto do
coronavírus, impôs uma quarentena de 14 dias a todos os visitantes
da Coreia do Sul e da China, inflamando a histórica inimizade entre o
Japão e os países.
Trump é mais um imperador Nero inconsciente do que está a
acontecer por todo o seu país e no mundo. O coronavírus
está a tornar-se o Chernobyl e o furacão Katrina de Trump,
embrulhados num único evento que revelou a total inaptidão,
ignorância, narcisismo e constante falsificação da verdade
de Trump. O preço político que ele e os republicanos seus
adoradores pagarão nas eleições de Novembro será um
dos mais drásticos da história moderna.
10/Março/2020
[*] Jornalista, estado-unidense.
O original encontra-se em
www.strategic-culture.org/news/2020/03/10/the-end-of-the-age-of-enlightenment/
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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