Um império de absolutamente nada?
O militarismo dos EUA leva-nos através dos Portões do Inferno.
Quando efetuava os últimos retoques no meu novo livro, o Instituto
Watson da Universidade Brown, no seu Costs of War Project, publicou uma
estimativa daquilo que os contribuintes terão despendido nas guerras dos
EUA contra o terrorismo desde 12 de setembro de 2001, até ao ano fiscal
de 2018: um frio número de
US$5,6 milhões de milhões
(incluindo os custos futuros de cuidar dos nossos veteranos de guerra). Em
média, pelo menos US$23 386 mil por contribuinte.
Tenha-se em atenção que tais números, ainda que de
arregalar os olhos, são apenas os custos em dólares das nossas
guerras. Não incluem, por exemplo, os custos psíquicos dos
americanos mutilados de uma forma ou de outra naqueles intermináveis
conflitos. Não incluem os custos da infraestrutura do país, que
se têm
degradado
enquanto fluem dólares copiosamente dos
contribuintes. E isto de uma forma espantosamente bipartidária
nestes últimos anos, quase única para o que ridiculamente
ainda é chamado de "segurança nacional". O que, claro
está, não torna a maioria de nós mais segura, mas que faz
a eles os ocupantes do estado de segurança nacional cada
vez mais seguros em Washington e outros lugares. Estamos a falar do
Pentágono, do Departamento de Segurança Interna, do complexo
nuclear dos EUA e do resto desse Estado-dentro-do-estado, incluindo as suas
muitas agências de espionagem e as
corporações da indústria militar
que têm, até agora, sido fundidas nesta imensa e imensamente
lucrativa estrutura entrelaçada.
Na realidade, os custos das guerras da América, que ainda continuam a
expandir-se na época de Trump, são incalculáveis. Vejam-se
as fotos das cidades de
Ramad
ou
Mosul
, no Iraque,
Raqqa
ou
Alepo
na Síria,
Sirte
, na Líbia, ou
Marawi
no sul das Filipinas, tudo em ruínas na sequência dos conflitos
que Washington desencadeou nos anos pós-11/Set e tente-se colocar um
preço sobre elas. Estas visões de quilómetros e
quilómetros de ruínas, muitas vezes sem nenhum edifício
intacto, devem deixar qualquer pessoa sem fôlego. Algumas dessas cidades
nunca poderão ser totalmente reconstruídas.
E como seria possível atribuir um valor em dólares aos ainda
maiores custos humanos das guerras: as centenas de milhares de
mortos
? As
dezenas de milhões
de pessoas deslocadas nos seus próprios países ou tornando-se
refugiadas, fugindo através da fronteira mais próxima? Como se
poderia contabilizar desta forma as massas de populações
desenraizadas do grande Médio Oriente e África que estão a
desestabilizar outras partes do planeta? A sua presença (ou, mais
precisamente, o crescente medo dela) tem, por exemplo, ajudado à
expansão de um conjunto de movimentos
de "populistas" de
direita que ameaçam destruir a Europa. E quem poderia esquecer o papel
que estes refugiados ou pelo menos as
versões fantasiosas
deles desempenharam na bem-sucedida competição de Donald
Trump para a Presidência? Qual, finalmente, poderá ser o custo de
tudo isto?
Abrindo os portões do inferno
Os intermináveis conflitos dos EUA no século XXI foram
desencadeados pela decisão de Bush e seus altos funcionários de
definirem instantaneamente sua resposta aos ataques ao Pentágono e ao
World Trade Center por um pequeno grupo de jihadistas
[1]
como uma "guerra"; em seguida proclamá-la nada menos do que
uma "Guerra Global ao Terror" e finalmente a invadirem e ocuparem
primeiro o Afeganistão, em seguida o Iraque, com o sonho de dominar o
grande Médio Oriente e, em última análise, o
planeta como nenhuma outra potência imperial alguma vez o fez.
Suas excitadas fantasias geopolíticas e a sua noção de que
o exército dos EUA era uma força capaz de
realizar o que quer que fosse
lançou um processo que custa a este nosso mundo algo que nunca
será possível calcular. Quem, por exemplo, poderia atribuir um
preço sobre o futuro das
crianças
cujas vidas, na sequência dessas decisões, irão ser
degradadas e reduzidas de forma que assusta só de imaginar? Quem
poderá suportar o que significa para muitos milhões de jovens do
planeta ser privado das casas, dos pais, de educação de
tudo o que na verdade, os poderia aproximar do tipo de estabilidade, que
pudesse levar a um futuro digno de ser desejado?
Embora poucos se lembrem, nunca esqueci a
advertência de 2002
emitida por Amr Moussa, então chefe da Liga Árabe. Uma
invasão do Iraque, previu ele naquele mês setembro, "abriria
os portões do inferno". Dois anos mais tarde, na sequência da
invasão real e ocupação daquele país pelos EUA, ele
alterou ligeiramente o seu comentário. "As portas do inferno",
disse
, "estão abertas no Iraque".
Sua avaliação tem-se provado insuportavelmente presciente
e não é aplicável apenas ao Iraque. Catorze anos
após a invasão, todos nós deveríamos agora estar de
luto por um mundo que não irá existir. Não foram só
os militares que, na primavera de 2003, atravessaram os portões do
inferno. À nossa maneira, todos nós fizemos. Caso
contrário, Donald Trump não se teria tornado presidente.
Não pretendo ser um perito em infernos. Não tenho ideia exata
sobre qual o círculo em que nos encontramos agora, mas sei uma coisa:
já estamos lá.
A infra-estrutura de um Estado Fortaleza
(Garrison State)
[2]
Se pudesse trazer meus pais de volta de entre os mortos, sei que este
país no seu estado atual seria um quebra-cabeças para as suas
mentes. Eles não iriam reconhece-lo. Se eu lhes dissesse, por exemplo,
que apenas três homens Jeff Bezos, Bill Gates e Warren Buffett
agora possuem
tanta riqueza como metade da população dos EUA, 160
milhões de americanos, eles não acreditariam em mim.
Como, por exemplo, poderia começar a explicar-lhes as formas como,
nestes anos, o dinheiro fluiu sempre para os de cima, para os bolsos dos
imensamente ricos e descendo depois para o que viriam a ser
as eleições dos 1%
que levariam finalmente a alojar um bilionário e sua família na
Casa Branca? Como iria explicar-lhes que este país, mesmo liderado por
congressistas Democratas ou Republicanos, excepcionalmente mais poderoso que
qualquer outro que já existiu, nem uns nem outros são capazes de
encontrar fundos uns 5,6 milhões de milhões de
dólares para começar necessários para as nossas
estradas, barragens, pontes, túneis e outras
infraestruturas cruciais
? Isto num planeta em que nos noticiários se gosta de designar por
"condições meteorológicas extremas" o que
está cada vez mais a
causar a devastação
dessa mesma infraestrutura.
Os meus pais não imaginariam estas coisas possíveis. Não
nos EUA. E de alguma forma eu teria que explicar-lhes que eles tinham voltado
para uma nação que, embora poucos americanos constatem,
está cada vez mais
desfeita pela guerra
, pelos conflitos que Washington desencadeou na guerra ao terror que se
transformou em tantas guerras que este processo nos tornou diferentes.
Tais conflitos nas fronteiras globais têm tendência a vir
até nós de uma forma que pode ser difícil de controlar ou
suportar. Afinal de contas, ao contrário daquelas cidades no Grande
Médio Oriente, as nossas não estão ainda em ruínas,
apesar de algumas delas estarem a ir nessa direção, ainda que
lentamente. Neste país, pelo menos teoricamente, perto do auge de seu
poder imperial ainda é a nação mais rica do planeta. E
contudo deveria ser suficientemente claro que nós não
destruímos apenas outras nações, mas a nós mesmos
de uma forma que eu suspeito ainda mal podemos ver ou entender embora
tenha tentado ao longo destes anos absorve-la e regista-la da melhor maneira
que podia.
No meu novo livro,
A Nation Unmade by War
, o foco está num país cada vez mais transformado e disfuncional
por espalhar guerras a que a maior parte dos seus cidadãos, na melhor
das hipóteses apenas
presta meia atenção
. Certamente, a eleição do Trump foi um sinal de como a
sensação de declínio americano já tinha vindo
à tona na época em que se desenvolveu o estado de
segurança nacional (e pouco mais).
Embora não seja algo normalmente dito, na minha mente o Presidente Trump
deve ser considerado uma parte dos custos das guerras que se refletem neste
país. Sem as invasões do Afeganistão e Iraque e o que se
seguiu, duvido que se imaginasse ele poder ser qualquer coisa além de
anfitrião de um
reality show
da TV ou o proprietário de uma série de casinos falhados. Nem o
Estado-Fortaleza versão de Washington seria concebível, nem os
generais das nossas guerras desastrosas de que ele se cercou, nem o crescimento
de um
estado de vigilância
sobre os cidadãos que deixaria George Orwell estarrecido.
O ingredientes de uma máquina de retroação
Donald Trump temos de dar-lhe crédito onde é devido
levou-nos a começar a compreender que estamos vivendo num mundo
diferente e em mudança. E nada disto teria sido imaginável, se,
no rescaldo do 11/Set, George W. Bush, Dick Cheney & Co., não sentissem
o desejo de lançar as guerras que nos levaram por aqueles portões
do inferno. Os seus crescentes sonhos geopolíticos de
dominação global provaram ser pesadelos de primeira ordem. Eles
imaginaram um planeta diferente de tudo o que tivesse existido desde há
500 anos na história dos impérios, em que basicamente uma
única potência dominava tudo até o fim dos tempos. Eles
imaginaram, um tipo de mundo que, em Hollywood, tem sido associado apenas
às mais malignas personagens do mal.
E isto foi o resultado do seu exagero conceptual: nunca, pode dizer-se, um
grande poder ainda no seu auge imperial provou ser tão incapaz de
aplicar o seu poder militar e político de maneira a fazer avançar
os seus objectivos. É um fato estranho neste século que o
exército dos EUA tenha sido implantado em vastas áreas do planeta
e de alguma forma se tenha encontrado, por vezes, em desvantagem perante
inexpressivas forças inimigas, incapaz de produzir qualquer resultado
senão destruição e maior divisão. E tudo isso
ocorreu no momento em que o planeta mais precisava um novo tipo de
entrelaçamento, o momento em que o futuro da humanidade estava em jogo
de maneiras anteriormente inimagináveis, graças ao seu uso ainda
crescente de combustíveis fósseis.
No final, o último Império pode vir a ser um império de
absolutamente nada uma possibilidade sombria que tem sido focada no
sítio
TomDispatch,
que edito desde novembro de 2002. Claro, quando se escrevem textos a cada
duas semanas durante anos a fio, seria surpreendente não se repetir. A
verdadeira repetição, no entanto, não está no
TomDispatch,
está em Washington. A única coisa que nossos líderes e
generais parecem capazes de fazer, desde o dia dos atentados de 11/Set,
é mais ou menos a mesma coisa com os mesmos resultados causadores de
misérias, de novo e sempre.
Os militares dos EUA e o estado securitário nacional que encorajou as
guerras tornaram-se, com efeito com uma vénia ao
falecido Chalmers Johnson
(um resoluto colaborador do
TomDispatch
e um homem que reconheceu as portas do inferno quando as viu) um
incrivelmente bem financiada maquinismo de retroação. Em todos
estes anos, enquanto três administrações continuavam a
espalhar a guerra contra o terror, os conflitos da América em terras
distantes tornaram-se em grande medida reflexões longínquas para
os seus cidadãos. Apesar das maiores manifestações da
história que visavam impedir a guerra antes do seu começo, uma
vez ocorrida a invasão do Iraque os protestos extinguiram-se e, desde
então, os americanos geralmente têm ignorado as guerras do seu
país, mesmo depois de as suas consequências se verificarem. Algum
dia, não terão outra escolha senão prestar
atenção às mesmas.
[1] É altamente discutível que os ataques do 11/Set tenham sido
efectuados por "um pequeno grupo de jihadistas", como diz este
artigo. O autor pelo visto não aceita que os ataques tenham sido um
inside job.
Mas pode-se afirmar que foram efectuados precisamente para justificar todas as
leis repressivas que se seguiram, pelo que equivaleram de facto a um golpe de
estado.
[2] Garrison State: Designa um Estado organizado para servir prioritariamente
as suas próprias necessidades de segurança militar, também
um Estado mantido pelo poder militar.
[*]
Co-fundador do
American Empire Project
e autor de
The United States of Fear,
bem como uma história da Guerra
Fria,
The End of Victory Culture
. Seu livro mais recente é
A Nation Unmade by War
. O presente texto é a introdução deste último
livro.
O original encontra-se em
www.informationclearinghouse.info/49429.htm
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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