Crepúsculo: a erosão do controle dos EUA e o futuro multipolar
por Tricontinental
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A História frequentemente se move em saltos, solavancos e em ziguezague.
.
Friedrich Engels,
Das Volk,
n.16, 20/agosto/1859
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Em 1492, quando Cristóvão Colombo chegou ao Caribe, a
história começou a dividir-se em duas. Antes desse momento,
nenhum império havia tido alcance planetário. A partir daquele
ano, as grandes potências europeias passaram a dominar o mundo e, a
partir do final do século XVII, essa dominação foi
organizada e legitimada em nome da ideia de raça, uma
construção com consequências catastróficas para a
humanidade.
A autoridade colonial enfrentou constante resistência. Os intelectuais
colonialistas imaginavam a si mesmos como figuras da Grécia Antiga, como
Hércules guerreando contra a monstruosa Hidra de Lerna
rebeliões no mar, nas
plantations,
nas montanhas e florestas, nas tabernas dos portos, nas terras comuns que
sobreviveram fora do alcance do poder colonial e nos novos espaços
insurgentes criados por aqueles que fugiam
[1]
. Quando o capitalismo, enraizado na
plantation
colonial, começou a agarrar o planeta com seus tentáculos,
a fábrica e a cidade tornaram-se locais-chave de luta.
Se houve uma revolução que marcou o início do fim da
época colonial e que inaugurou uma nova civilização
liderada pelos trabalhadores, essa foi a Revolução Haitiana de
1804. Os africanos escravizados derrotaram as quatro maiores potências
europeias da época, conquistaram sua liberdade e declararam uma
República independente. Essa revolução foi rapidamente
interrompida. Em 1825, os franceses enviaram doze navios de guerra para exigir
que a nova República pagasse uma indenização aos
ex-proprietários das
plantations
, cujo valor seria equivalente a mais de 20 bilhões de dólares
hoje
[2]
. A afirmação da liberdade foi recebida com a
imposição de dívidas, uma tática de
dominação neocolonial que seria explorada impiedosamente contra
as lutas de libertação do século seguinte.
A Segunda Guerra Mundial, resultado da tentativa dos fascistas alemães
de retornar às práticas coloniais europeias, levou as
potências do velho continente a uma terrível
conflagração que as deixou, ao final, gravemente
enfraquecidas. Foram então os EUA, a mais poderosa colônia
europeia de povoamento, que assumiram a gestão neocolonial do planeta.
Agora, quase oitenta anos depois, a primazia dos EUA entra em seu
crepúsculo. Alguns intelectuais estadunidenses, remontando à
Grécia Antiga, argumentam que a ascensão da China ameaça
os EUA e torna a guerra inevitável. Essa teoria, conhecida como a
armadilha de Tucídides, é extraída do argumento da
História da Guerra do Peloponeso,
em que a ascensão de Atenas levou Esparta a uma guerra necessária
em defesa de seus interesses. Os EUA impuseram um conflito hostil à
China e a outros países que consideram uma ameaça. A China
não pretende suplantar os EUA, mas apenas inaugurar uma ordem mundial
multipolar.
A ideia de uma armadilha de Tucídides faz parte da guerra híbrida
que agora domina o planeta.
Este dossiê n. 36 (jan. 2021) explora o surgimento de uma nova guerra
fria imposta pelos Estados Unidos à China e as formas de guerra
híbrida que têm sido utilizadas como parte desse novo
cenário estratégico.
Parte 1: o século estadunidense
A equipe de Planejamento de Políticas do Departamento de Estado dos EUA
distribuiu um memorando, no final da década de 1940, no qual argumentava
que "buscar menos que um poder preponderante é optar pela derrota.
O poder preponderante deve ser o objeto da política dos Estados
Unidos"
[3]
. Estes emergiram da terrível violência da Segunda Guerra Mundial
como a economia mais poderosa, com uma infraestrutura intacta e uma
força militar impressionante que possuía a arma mais perigosa: a
bomba nuclear. O país fez uso dessas vantagens para estabelecer uma
série de instituições cujo objetivo era estender o poder
dos EUA globalmente. Entre elas, instituições políticas
multilaterais (como as Nações Unidas), instituições
econômicas multilaterais (como o Fundo Monetário Internacional e o
Banco Mundial), instituições de segurança regionais (como
a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a
Organização do Tratado Central e a Organização do
Tratado do Sudeste Asiático) e instituições
políticas regionais (como a Organização dos Estados
Americanos).
Os EUA agiram rapidamente para conter os novos Estados que emergiram das lutas
anticoloniais. Patrice Lumumba, recém-eleito presidente do Congo, foi
assassinado em um complô apoiado por Washington em 1961. Movimentos
radicais foram combatidos de forma impiedosa. Na Indonésia, mais de um
milhão de pessoas foram assassinadas enquanto militares, agindo com o
apoio estadunidense, tentavam destruir o Partido Comunista da Indonésia
e sua base de apoio após o golpe de 1965
[4]
.
A União Soviética e outros Estados comunistas, bem como setores
radicais das forças anticoloniais no Terceiro Mundo, funcionaram como um
freio parcial às ambições dos EUA. Quando a URSS
começou a se fragmentar em 1990, esse escudo desapareceu e o acelerador
da primazia dos Estados Unidos atingiu a velocidade máxima. O
US Defense Planning Guidance
[Orientações para o planejamento de defesa], de 1990, presidido
por Dick Cheney, deixou evidente sua agenda:
Nosso primeiro objetivo é evitar o ressurgimento de um novo rival, seja
no território da ex-União Soviética seja em outro lugar
[
] Esta é uma consideração dominante subjacente
à nova estratégia de defesa regional e exige que nos esforcemos
para impedir qualquer potência hostil de dominar uma região cujos
recursos seriam, sob controle consolidado, suficientes para gerar poder global.
[
] Nossa estratégia deve agora voltar a se concentrar em impedir o
surgimento de qualquer potencial futuro competidor global.
[5]
Em 2000, o Projeto para um Novo Século Americano publicou
Rebuilding America's Defenses
[Reconstruindo as defesas estadunidenses]. O relatório informou
que a primazia dos EUA "deve ter uma base segura na inquestionável
preeminência militar dos EUA"
[6]
. O financiamento para as Forças Armadas dos EUA expandiu
astronomicamente antes do ataque da Al Qaeda em 11 de setembro de 2001. Em
2002, a
Estratégia de Segurança Nacional
dos
Estados Unidos da América,
do presidente George W. Bush, afirmava que "Nossas forças
serão fortes o suficiente para dissuadir adversários em potencial
de buscar um aumento militar na esperança de superar ou igualar o poder
dos Estados Unidos"
[7]
. Em 2019, os gastos militares dos EUA 732 mil milhões de
dólares
[8]
(1 milhão de milhões se adicionarmos o orçamento de
inteligência em grande parte sigiloso, mas estimável) eram
maiores que os dez países seguintes juntos. Todo inventário de
armas conhecido mostra que os EUA têm uma capacidade muito maior de
causar estragos do que qualquer outro país; mas o setor de
segurança dos Estados Unidos agora entende que, embora possa mandar aos
ares um país, não pode mais subordinar todos os países
apenas por meio do poderio militar.
Os EUA usaram seu sistema de aliança anterior do tipo
hub and spokes
[centros e raios] para estender e consolidar seu poder global. Alguns
pilares-chave desse sistema precisam ser claramente compreendidos:
1. Os Estados Unidos estavam no centro, enquanto seus principais aliados (Reino
Unido, França, Alemanha, Japão e outros) eram seus raios. No
limite externo desses raios estavam seus aliados subsidiários, como
Colômbia, Egito, Israel, Arábia Saudita, Tailândia e outros.
Esses aliados continuam sendo essenciais para o alcance global do poder dos
EUA, uma vez que operam contra adversários com total apoio de Washington
e fornecem aos militares estadunidenses bases, inteligência e capacidade
logística. Qualquer desafio colocado a esses aliados é
rapidamente eliminado com toda a força, conforme ficou evidente no
ataque ao Iraque (1991) e no Plano Colômbia (1999).
2. O surgimento de qualquer "futuro competidor global em potencial",
como o
US Defense Planning Guidance
[Orientações para o planejamento de defesa] de 1990 afirmava,
deveria ser detido por meio do sistema de alianças. A pressão foi
construída ao redor da China e Rússia por meio da expansão
da Otan na Europa Oriental e com o aumento das forças dos EUA na
região da Orla do Pacífico. A eleição de Hugo
Chávez na Venezuela (1998), o surgimento de um novo conjunto de
líderes sul-americanos de esquerda e um novo impulso para a
integração regional (como a Aliança Bolivariana para as
Américas Alba) precisavam ser desestabilizados. Esse desafio
começou com uma tentativa de golpe militar contra o governo de
Chávez em 2002. Dois anos depois, Jean-Bertrand Aristide, o presidente
haitiano progressista eleito por uma maioria esmagadora, foi derrocado com
sucesso por um golpe apoiado pelos Estados Unidos. A isso se seguiram as
guerras híbridas.
3. A cadeia global de
commodities
desenvolvida para beneficiar as corporações multinacionais
ocidentais precisava ser protegida a todo custo. A revolução
eletrônica trouxe uma nova era que viu a capacidade de um computador
dobrar a cada 18 ou 24 meses. Entre 1955 e 2015, o poder de um computador
aumentou mais de um trilhão de vezes. Novas forças produtivas
inauguraram o fim do velho sistema fabril industrial, centralizado e grande. O
Congresso dos Estados Unidos estendeu as leis de propriedade intelectual para
proteção de direitos autorais primeiro para 28 anos em 1976 e
depois para cem anos em 1998. Esse sistema pernicioso foi aprovado pela
Organização Mundial do Comércio em 1994.
A habilidade de desmontar grandes fábricas, distribuí-las
globalmente e introduzir sistemas de depósito
just-in-time
minou a soberania nacional e o poder sindical. O poder diplomático
e militar foi implantado para garantir que nenhuma alternativa a esses arranjos
seria possível. Mecanismos como a Guerra às Drogas e a Guerra ao
Terror foram usados para atacar quaisquer enfrentamentos à cadeia global
de
commodities
que começou nas "zonas de sacrifício" onde as
matérias-primas são extraídas ou cultivadas.
4. O complexo Dólar-Wall Street, que dominou os sistemas
econômicos e financeiros por décadas, não poderia ser
desestabilizado por novas moedas globais que poderiam representar uma
ameaça ao complexo Dólar-Wall Street de várias maneiras:
poderiam ser usadas como reservas e para transações que
prejudicariam o dólar; poderiam ser usadas por novos bancos de
desenvolvimento ou por procedimentos que enfraqueceriam o FMI e o Banco
Mundial; ou ainda serem usadas por novas instituições financeiras
para contornar as redes financeiras dominadas pelo Ocidente e enraizadas no
Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, nos bancos financeiros do eixo Wall
Street-City de Londres e Frankfurt e nas redes de transferência de
dinheiro (como a do sistema SWIFT sediado na Bélgica).
A guerra ilegal dos EUA no Iraque (2003) e a crise de crédito (2007)
mostraram o enfraquecimento do poder dos EUA. A máquina militar dos EUA
poderia facilmente destruir as instituições de um país
como ficou demonstrado no Iraque em 2003 e na Líbia em 2011
, mas não poderia subordinar suas populações.
Batalhas podiam ser vencidas, mas não guerras de longo prazo.
A crise de crédito revelou o enfraquecimento interno da economia dos
EUA, onde principalmente o consumismo induzido pelo crédito permitiu que
o mito do "sonho americano" permanecesse intacto mesmo com a
estagnação dos salários e com uma crise estrutural de
empregos afligindo a vida da classe trabalhadora e até mesmo da classe
média. Entre 1979 e 2018, a média anual dos salários por
hora nos EUA, em dólares constantes, diminuiu
[9]
. Essas fraquezas levaram a um debate sobre o declínio dos EUA, embora
seus reservatórios da dominação como o poder
militar, econômico, financeiro e cultural ou "soft power"
permanecessem intactos. Os presidentes George W. Bush, Barack Obama e
Donald Trump não conseguiram reverter a queda da economia estadunidense,
mais uma vez mantida pela autoridade global do dólar, entre outros
processos.
Em seu discurso de inauguração, em 2017, Trump lamentou a
"carnificina" que atingiu a classe trabalhadora e a classe
média nos EUA, que viviam próximas a "fábricas
enferrujadas espalhadas como lápides pela paisagem de nossa
nação"
[10]
. A solução de Trump para essa "carnificina" foi
cinicamente racista, culpando os migrantes sem documentos (e o México),
bem como o roubo de propriedade intelectual e a produção
subsidiada no exterior (e na China). A agenda de Biden não tem nada
substancial a dizer para além do que já disseram Bush, Obama e
Trump: reconstruir a economia dos EUA e usar seu poder para defender seus
interesses. Como observou o
site
da campanha de Biden, "Biden nunca hesitará em proteger o
povo americano, inclusive, quando necessário, usando a força.
Temos os militares mais fortes do mundo e como presidente, Biden
garantirá que continue assim"
[11]
.
Os EUA estão se aproximando de uma posição em que
não serão mais a maior economia do mundo, seja qual for a medida,
em um futuro próximo. Em paridade de poder de compra (o fluxo
físico real de bens e serviços), a economia da China já
é 16% maior que a dos EUA. Em 2025, o FMI projeta que será 39%
maior. Como acontece com quase todos os países em desenvolvimento, o
tamanho da economia chinesa é subestimado quando calculado segundo taxas
de câmbio atuais, mas já é 73% do tamanho da economia dos
EUA nas taxas de câmbio atuais e, com base nas projeções do
FMI, esse número saltará para 90% em 2025.
No final da década, o PIB da China será maior do que o dos EUA,
não importa como for medido. Já sentimos a mudança. Lojas
e
shopping centers
trazem ainda as características da cultura dos Estados Unidos, mas
seus produtos são feitos na China. Em outras palavras, os EUA continuam
definindo a
forma
, mas a China já fornece o
conteúdo
. Gradualmente, a forma ficará alinhada ao conteúdo. Uma
década atrás, a China tinha pouquíssimas marcas
globalmente conhecidas, mas agora Huawei, TikTok, Alibaba e outras são
conhecidas em todo o mundo e alvo de comentários diários nos
editoriais de economia.
A reação a esses fatos assumiu muitas formas, das quais as mais
comuns são também as mais extremadas. Há uma literatura
de
catastrofismo
, uma antecipação do colapso dos EUA de sua posição
de grande potência. Essa visão é que a implosão da
economia dos EUA que hoje luta diante da pandemia, apesar das altas em
Wall Street e das injeções de crédito do Federal Reserve
levará a uma perda de poder estrutural por parte das
instituições dirigidas pelos EUA e ao aumento do uso do poder
militar para manter a autoridade do país. Em contraste está a
literatura do
renascimento
, geralmente com base em esperanças e projeções de um
segundo "século americano" na ausência de dados
sérios. Essa visão sugere que a economia dos EUA é
resiliente e o poder do dólar, sacrossanto, além de uma fé
inabalável na engenhosidade das empresas sediadas nos EUA que seriam
capazes de destruir criativamente antigos setores simplesmente para que voltem
a crescer como uma fênix com novas invenções
para impulsionar o país. O poderio deste, acredita-se, não deriva
da General Motors de ontem (agora voltada a serviços financeiros,
além de seu papel histórico como uma empresa de
automóveis), mas da Microsoft de amanhã.
Nenhuma dessas visões colapso ou renascimento é
completa. Ambos possuem elementos de verdade, mas apenas parcialmente.
Há uma grande debilidade na manutenção da primazia dos
EUA, evidenciada pelo fracasso dos EUA em impedir os avanços
científicos e tecnológicos da China entre outros
países o que ameaça o monopólio que os EUA
têm sobre a inovação tecnológica. É essa alta
tecnologia e o monopólio da renda da propriedade intelectual que
impulsionam a economia estadunidense. O conflito com a China é
decorrente do reconhecimento, por uma grande parte da elite dos EUA, de que o
crescente avanço científico e tecnológico do país
asiático é uma ameaça existencial à sua primazia. O
"giro para a Ásia" de Obama, em 2015, foi baseado no temor
desse aumento e na percepção de que não haveria um
Gorbachev chinês para destruir a China internamente.
A ascensão da China representa uma ameaça existencial à
hegemonia estadunidense. Assim como a dominação europeia
inaugurada em 1492, as tentativas dos EUA de preservar seu domínio
global podem ser lidas em termos raciais.
O declínio histórico dos EUA está ocorrendo enquanto ele
ainda possui grandes reservas históricas; haverá um longo
período no qual os EUA continuarão a realizar contra-ataques
diante de seu declínio. Não por acaso a obra
Sobre a guerra prolongada
de Mao Zedong voltou a ser uma das mais citadas na China.
Parte 2: A Guerra na Eurásia
Em abril de 2019, o Comando Indo-Pacífico dos Estados Unidos divulgou um
documento intitulado
Regain the Advantage
[Retomar a vantagem], no qual apontava para a "nova ameaça de
competição que enfrentamos das Grandes Potências. [
]
Sem um impedimento convencional válido e convincente, China e
Rússia serão encorajadas a atuar na região para suplantar
os EUA e seus interesses". O almirante Philip Davidson, líder do
Comando Indo-Pacífico, pediu ao Congresso que financiasse
"forças combinadas rotativas e avançadas" como a
"forma mais confiável de demonstrar aos EUA compromisso e
determinação com potenciais adversários"
[12]
. O relatório tem um espantoso ar de ficção
científica e expressa o desejo de criar "redes de ataque de
precisão com alta capacidade de sobrevivência" ao longo da
Orla do Pacífico, com mísseis incluindo ogivas nucleares
e instalações de radar de Palau [arquipélago no
oeste do Pacífico] ao espaço sideral. Novos sistemas
bélicos já em desenvolvimento aumentariam a pressão dos
EUA sobre a China e a Rússia ao longo de seus litorais. Essas armas
incluem mísseis de cruzeiro hipersônicos, que reduzem o tempo de
ataque contra alvos chineses e russos para minutos após o
lançamento.
Após o colapso da URSS e do sistema estatal comunista, os EUA
descobriram que podiam exercer seu poder sem grandes entraves. Por exemplo,
poderiam bombardear o Iraque e a Iugoslávia, e pressionar por um sistema
de comércio e investimento que favorecesse seus aliados. Toda a
década de 1990 pareceu uma volta da vitória, com os presidentes
George H. W. Bush e Bill Clinton exibindo-se em reuniões internacionais,
sorrindo para as câmeras e garantindo que todos vissem o mundo
através de seus olhos, ao passo que mantinham os "Estados
rebeldes" (Irã e Coreia do Norte, por exemplo) na mira de suas
armas. Naquele momento, China e a Rússia aparentemente estavam
comprometidas com a liderança dos EUA.
Nas décadas seguintes, muita coisa mudou. O crescimento econômico
da China foi espetacular. A renda disponível
per capita
em termos reais cresceu 96,6% apenas no período 2011-2019
[13]
. Em 23 de novembro último, a China anunciou que havia eliminado a
pobreza absoluta em todo o país e usou seu alto nível de
investimento para construir infraestrutura dentro do país. Utilizou
também sua enorme quantidade de câmbio estrangeiro em
auxílios para todo o mundo por meio da Iniciativa de Cinturão e
Rota, iniciada em 2013. Enquanto os EUA estavam atolados em suas guerras no
Afeganistão, Iraque e outros lugares, a China construiu um sistema de
comércio que liga grandes partes do mundo à sua locomotiva
econômica. Durante a pandemia de covid-19, a China foi a primeira a
quebrar a cadeia de transmissão e a retomar a atividade econômica
quase normal. Como consequência, o FMI projeta que quase 60% do PIB
global estimado em 2020-2021 será devido ao crescimento chinês.
A chave para o novo período não é apenas seu dinamismo
econômico, mas seus vínculos estreitos com a Rússia. As
novas conexões impulsionadas pela Iniciativa de Cinturão e Rota
estão ocorrendo ao longo do flanco sul da Ásia para a Europa e
África. Já suas ligações com a Rússia
permitem a integração ao longo do flanco norte da Ásia. Os
novos laços entre os dois gigantes asiáticos culminaram em uma
série de acordos econômicos e militares assinados nos
últimos cinco anos.
Desde os primeiros anos do século XXI, os países do Sul Global
incluindo a China têm procurado criar
instituições regionais e multilaterais baseadas no direito
internacional e em uma agenda de desenvolvimento genuína para os povos
do mundo. Essas instituições devem transcender o período
de primazia dos Estados Unidos em grande escala que se abriu após a
queda da URSS. Uma série de iniciativas desse tipo foi desenvolvida,
incluindo plataformas regionais como a Organização de
Cooperação de Xangai na Ásia (2001) e a Aliança
Bolivariana para as Américas (Alba) na América Latina e Caribe
(2004) , bem como plataformas mais globais como o Diálogo
Índia, Brasil e África do Sul (Ibas) (2003) e os Brics, formado
por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (2009). A
14ª
cúpula do Movimento Não-Alinhado em Havana (2006) girou em
torno da questão do regionalismo e multilateralismo. Na reunião
do Brics, em 2013, os líderes divulgaram a Declaração de
eThekwini, que resumiu o espírito dessa iniciativa, indicando seu
compromisso com a "promoção do direito internacional, do
multilateralismo e do papel central da ONU", bem como a necessidade de
"mais esforços regionais eficazes" para acabar com o conflito
e promover o desenvolvimento.
O projeto Brics desenvolveu um conjunto de propostas para a
criação de novas instituições multilaterais em
substituição às instituições dominadas pelos
Estados Unidos. Um Acordo de Reserva de Contingência, por exemplo, foi
criado para complementar o FMI com liquidez de curto prazo para países
com problemas cambiais, e um Banco Brics foi formado, desafiando o Banco
Mundial e o Banco Asiático de Desenvolvimento. Mas todo o projeto do
Brics tinha limites desde o início: não articulava nenhuma
alternativa ideológica ou política ao neoliberalismo, carecia de
instituições independentes importantes (mesmo o Acordo de Reserva
de Contingência usaria dados e análises do FMI) e não tinha
capacidade política ou militar para conter a dominação
militar dos EUA.
Projetos regionais como a Alba desenvolveram formas alternativas de
integração que experimentaram construir relações
interestatais e novas instituições. Essa Aliança levou
à criação de novas formações regionais, como
a União de Nações Sul-Americanas (Unasul, 2004) e a
Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac, 2010), e criou um
novo banco regional (BancoSul), uma nova moeda virtual (Sucre), uma nova rede
de comunicações (ancorada na TeleSur) e uma nova atitude de
independência do Sul Global em relação ao poderio
estadunidense. Foi precisamente por isso que os EUA gastaram esforços e
recursos para minar muitos dos movimentos da Alba, como por meio de um golpe
à antiga em Honduras (2009) e um golpe jurídico (
lawfare
) no Brasil (2016)
[14]
. Esses ataques contra a integração social e política
regional na América do Sul, juntamente com a subordinação
do hemisfério ao poder dos EUA, têm sido as características
definidoras de suas políticas voltadas para a América Latina e o
Caribe nos últimos dois séculos.
As limitações internas do projeto do Brics corroeram seu
potencial quando os acontecimentos políticos na Índia (2013) e no
Brasil (2016) trouxeram a extrema-direita ao poder. Ambos os países
subordinaram imediatamente sua política externa a Washington, sem sequer
querer ser parte de qualquer regionalismo ou multilateralismo. Não
há mais a possibilidade nem mesmo de um subimperialismo, como argumentou
Ruy Mauro Marini em 1965, já que agora essas frações da
elite em lugares como Brasil e Índia se contentavam em ocupar os postos
designados pelo Departamento de Estado dos EUA em vez de dirigir sua
própria política em suas regiões.
A saída do Brasil e da Índia de qualquer liderança efetiva
do bloco Brics veio ao lado de tensões políticas na África
do Sul, onde o ex-presidente Jacob Zuma transformou o Congresso Nacional
Africano (CNA), antes um movimento de libertação nacional, em uma
cleptocracia repressiva. Nos últimos cinco anos, o projeto do Brics
não conseguiu avançar em nenhuma agenda significativa, embora sua
existência continuada como um grupo que inclui as maiores economias em
desenvolvimento do mundo tenha algum significado. Apesar das diferenças,
China, Índia e Rússia também continuaram a cooperar na
Organização de Cooperação de Xangai.
É nesse contexto que assistimos ao crescimento da aliança chinesa
e russa, impulsionada pelos ataques dos Estados Unidos e de outras
potências ocidentais e pelo desgaste do Brics. Um grande abismo entre a
China e a Rússia havia surgido durante a disputa sino-soviética
de 1956, e as tensões entre os dois países continuaram a
persistir nos anos imediatamente posteriores à queda da URSS, com uma
Moscou inicialmente flexível olhando para o Ocidente em busca de
alianças. Foi apenas em 2008 que ambas as nações
finalmente resolveram uma disputa de fronteira de longa data, abrindo caminho
para os laços do período atual.
Nesse período, os legisladores dos EUA procuraram encurralar uma
Rússia enfraquecida em um projeto para cercar a China. O Ocidente
exagerou e tentou colocar a Rússia de joelhos por meio da
expansão da Otan em direção à Europa Oriental,
quebrando uma promessa feita durante a dissolução da
República Democrática Alemã (RDA). O poder russo parecia
destinado a ser totalmente drenado quando o Ocidente ameaçou os dois
únicos portos de água quente da Rússia em Sebastopol
(Crimeia) e em Tartus (Síria). Um conjunto de outras ações
agressivas do Ocidente contra a Rússia incluindo a
expulsão do país do G8 em 2014 e um severo regime de
sanções instituído pelos EUA atingiu vitais
interesses russos, ofendeu enormemente a opinião nacional russa, que
estava profundamente envolvida com os eventos na Ucrânia, e empurrou a
Rússia para um maior alinhamento com a China.
Em 2019, os presidentes dos dois países, Xi Jinping e Vladimir Putin,
falaram no Fórum Econômico Internacional de São
Petersburgo, uma reunião anual de negócios iniciada em 1997, cujo
escopo inclui cada vez mais a avaliação das
relações da Rússia com a Ásia, bem como com o
Ocidente. Xi e Putin falaram dos laços próximos entre seus
países, enfatizando que os dois haviam se encontrado pessoalmente pelo
menos trinta vezes desde 2013. Entre os muitos acordos para incrementar o
comércio, os dois líderes concordaram em aumentar o
comércio bilateral usando o rublo e o
yuan
em vez do dólar para reconciliar os pagamentos
transnacionais. Essa esnobada não foi a única coisa que alarmou
Washington. O mesmo aconteceu com o aumento nas vendas de armas entre os dois
países, que veio junto com exercícios militares conjuntos mais
frequentes: em setembro de 2018, um terço dos soldados russos participou
dos exercícios militares Vostok 2018 entre as duas potências
[15]
. Em outubro de 2020, quando Putin foi questionado se formaria com a China uma
"aliança militar", ele respondeu: "Não precisamos
disso, mas, em teoria, é perfeitamente possível imaginar"
[16]
.
O enfraquecimento da Rússia em termos políticos e militares
certamente fez parte da expansão da Otan para o leste, mas a China tem
sido o principal alvo econômico dos EUA e seus aliados. Em particular,
há grande ansiedade em relação ao desenvolvimento das
empresas chinesas de alta tecnologia que produzem equipamentos e softwares para
telecomunicações, robótica e inteligência
artificial, entre outras. Uma coisa era a China ser a oficina do mundo, seus
trabalhadores serem empregados por corporações multinacionais,
enquanto suas próprias empresas permaneciam no setor de tecnologia
média; outra é se tornar um importante produtor
tecnológico mundial. Essa é a razão pela qual o governo
dos EUA, empurrado por empresas do Vale do Silício, foi atrás da
Huawei e da ZTE. Em abril de 2019, o Conselho de Inovação em
Defesa dos EUA observou:
O líder do 5G deve ganhar centenas de milhares de milhões de
dólares
em receita na próxima década, com ampla criação de
empregos em todo o setor de tecnologia sem fio. O 5G também tem o
potencial de revolucionar outras indústrias, já que tecnologias
como veículos autônomos obterão enormes benefícios
com a transferência de dados mais rápida e maior. O 5G
também aprimorará a Internet das Coisas (IoT, sigla em
inglês), aumentando a quantidade e a velocidade do fluxo de dados entre
vários dispositivos, e pode até mesmo substituir o
backbone
de fibra ótica usado em tantos lares. O país que possuir 5G
possuirá muitas dessas inovações e definirá os
padrões para o resto do mundo
[17]
.
Esse país provavelmente não será os EUA. Mesmo o Defense
Innovation Board [Conselho de Inovações em Defesa] admite que nem
a AT&T nem a Verizon serão capazes de fabricar o tipo de transmissor
necessário para os novos sistemas. Tampouco é provável que
a Suécia (Ericsson) ou a Finlândia (Nokia) consigam, já que
as empresas chinesas estão muito à frente. Essa é uma
grave ameaça às perspectivas futuras da economia dos EUA,
razão pela qual o governo tem usado todos os instrumentos para
restringir o crescimento da China.
Nenhuma das acusações amplamente falsas contra as empresas
chinesas (de roubo de propriedade intelectual ou de erosão da
privacidade) dissuadiu clientes em todo o mundo. O que impediu as perspectivas
comerciais dessas empresas foi a pressão política direta dos EUA
sobre os governos para conter ou proibir a entrada da Huawei e da ZTE. Os EUA
reconhecem que o rápido crescimento tecnológico chinês
é uma ameaça geracional à principal vantagem que tiveram
nas últimas décadas, ou seja, sua superioridade
tecnológica. É para evitar a ascensão tecnológica
do país asiático que os EUA têm usado todos os recursos,
desde a pressão diplomática até a militar, mas nenhuma
delas parece estar funcionando.
A China, por enquanto, está decidida. Não está disposta a
recuar e desmantelar seus ganhos tecnológicos. Nenhuma
resolução é possível a menos que haja um
reconhecimento da realidade: a China é igual ou mais avançada do
que o Ocidente em termos de produção tecnológica em alguns
setores, e a tendência é isso aumentar gradualmente, e não
é nada que precise ser ou possa ser revertido por meio da guerra.
Em 2001, o então vice-presidente da China, Hu Jintao, disse que "a
multipolaridade constitui uma base importante na política externa
chinesa"
[18]
. A China continua comprometida com a multipolaridade, evitando qualquer
perspectiva de um "século chinês" após o
"século americano". A posição chinesa é
espelhada em alguns dos documentos estratégicos dos EUA, como o
relatório do Conselho Nacional de Inteligência dos EUA, de 2012,
que afirma que "até 2030, nenhum país os EUA, a China
ou qualquer outro grande país será um poder
hegemônico"
[19]
. O que existirá, em vez disso, é um "poder difuso".
Mas outros membros da comunidade de análise estratégica dos
Estados Unidos, como Richard N. Haass, presidente do Conselho de
Relações Exteriores, argumentam que, se os Estados Unidos
não continuarem sua "liderança" da ordem global, a
alternativa "não é uma era dominada pela China ou qualquer
outro país, mas sim um tempo caótico em que os problemas
regionais e globais oprimirão a vontade coletiva mundial e a capacidade
de enfrentá-los"
[20]
.
A multipolaridade, ou um declínio na primazia dos EUA, afirma Haass,
trará o caos: "Os americanos não estariam seguros ou seriam
prósperos em tal mundo", escreveu Haass em
Foreign Policy Begins at Home
[Política externa começa em casa] (2013). "Nossa Idade
das Trevas já foi suficiente; a última coisa que precisamos
é outra"
[21]
. Para liberais como Haass e neofascistas como Trump, não há
substituto para a primazia dos EUA. É esse fracasso das elites dos EUA
em compreender a inevitabilidade de um futuro multipolar que as leva a novas
guerras frias, perigosas intervenções militares e guerras
híbridas de todos os tipos.
Parte 3: Guerra híbrida
Em 2015, Andrew Korybko publicou um livro fascinante chamado
Hybrid Wars: The Indirect Adaptive Approach to Regime Change
[Guerras híbridas: a abordagem adaptativa indireta para a
mudança de regime]. Por meio da leitura de documentos militares
públicos e vazados dos EUA, Korybko expôs as várias
estratégias usadas para derrubar governos tidos como entraves ao poder
dos EUA. Korybko explica o objetivo de uma guerra híbrida citando o
documento do Exército estadunidense classificado como
Special Forces Unconventional Warfare
[Forças Especiais para Guerras não Convencionais]: "degradar
o aparato de segurança do governo (os elementos militares e policiais do
poder nacional) ao ponto em que o governo fique suscetível à
derrota". A questão nem sempre é substituir um governo
hostil aos interesses dos EUA por outro favorável a ele. "Em sua
essência, a guerra híbrida é o caos administrado"
[22]
, escreve Korybko. Um conflito de baixa intensidade que gradualmente esvazia o
país de sua resiliência e cria confusão na região
é talvez o objetivo dos tipos de conflitos que são processados
por guerras de informação e sanções, dois
elementos-chave no conjunto de ferramentas da guerra híbrida.
A guerra híbrida liderada pelos Estados Unidos se desdobra de forma mais
feroz contra o Irã e a Venezuela, países que vêm sendo
enfraquecidos pela guerra de informação e pelo caos no mercado de
petróleo. O que impede esses países de entrar em colapso diante
de tal pressão são as reservas de legitimidade produzidas por
seus próprios processos sociais e políticos. Na Venezuela, por
exemplo, a mobilização regular do povo tanto para
manifestações como para o trabalho prático de
reprodução social em escala comunitária afirma a
legitimidade popular de seu processo revolucionário. As guerras
híbridas nem sempre têm êxito, mas mesmo quando
não o fazem ameaçam os laços sociais básicos
entre as pessoas.
Com base em Korybko e em uma série de documentos do governo dos EUA,
aqui estão quatro dos aspectos mais importantes da estratégia de
guerra híbrida:
1. Guerra informacional.
Em 1989, William Lind, um autor que ajudou a desenvolver a teoria da guerra
de quarta geração (um sinônimo para guerras
híbridas), escreveu que "as notícias de televisão
podem se tornar uma arma operacional mais poderosa que as divisões
blindadas"
[23]
. Controlar informações e definir pessoas e eventos molda a
maneira como os conflitos são entendidos. O controle sobre o enredo
é essencial, mas esse controle não pode ser visto como propaganda
nua e crua. A narrativa é tão cuidadosamente definida que tudo o
que vem de um "Estado pária" é interpretado como falso,
e o que os EUA e seus aliados dizem é visto como verdadeiro. Mesmo que
sejam feitas declarações falsas como a de que o Iraque
tinha armas de destruição em massa , elas são
consideradas erros e não mentiras.
Ideias racistas profundamente arraigadas são mobilizadas para construir
certos líderes como ditadores ou mesmo como genocidas
enquanto os líderes ocidentais que enviam bombardeiros para aniquilar
cidades são vendidos como humanitários. Esse exercício
básico de
branding
de líderes políticos é característico do
poder da guerra de informação. Os Estados Unidos podem ser
responsáveis por mais de um milhão de mortos no Iraque, mas
sempre será Saddam Hussein e não George W. Bush
quem será visto como um criminoso de guerra e, portanto, merecedor de
seu terrível destino. Os muçulmanos são sempre
terroristas, os russos sempre mafiosos ou espiões, e o Estado
considerado um adversário não é mais liderado por um
governo, mas por um "regime". Reivindicações
descontroladamente desequilibradas sobre violações dos direitos
humanos se tornam uma ferramenta central para deslegitimar dissidentes, seja
por Estados seja por movimentos populares. Há uma "porta
giratória" entre a Human Rights Watch, uma
organização criada por atores dos EUA durante a Guerra Fria, e
funcionários de política externa do governo dos EUA.
2. Guerra diplomática.
Remover o representante legítimo de um país de um
órgão multilateral é uma maneira astuta de deslegitimar o
governo do país. Os EUA retiraram Cuba da Organização dos
Estados Americanos (OEA) em 1962 como punição exemplar a qualquer
país que desafiasse os EUA. Mas Cuba não invadiu os Estados
Unidos; foi o contrário, no episódio conhecido como
Invasão da Baía dos Porcos, em 1961, e, se a Carta da OEA fosse
cumprida, os Estados Unidos deveriam perder seu assento no organismo. Mas como
este é um instrumento do poder dos EUA, foi Cuba quem teve que se
retirar. Expulsar o embaixador, pressionar aliados a fazerem o mesmo, isolar o
país nas Nações Unidas tudo isso faz parte dos
mecanismos eficazes de uma guerra diplomática.
3. Guerra econômica.
As sanções estadunidenses e secundárias são
impostas ao adversário, que deve lutar para romper o embargo
estabelecido. Essas sanções impedem o país visado de
utilizar os canais normais de financiamento, incluindo o sistema SWIFT e as
redes bancárias internacionais. Evitam, assim, que o país importe
bens essenciais ou que inclusive possa pagar empresas de transporte pelo
trânsito de bens que outros estariam plenamente satisfeitos em vender;
impedem o acesso às contas bancárias do país em outros
Estados e a fundos-chave de desenvolvimento oferecidos pelo Banco Mundial e
fundos de emergência oferecidos pelo FMI. Em janeiro de 2019, quando
houve uma tentativa de golpe na Venezuela, o embaixador Idriss Jazairy, Relator
Especial da ONU sobre o impacto negativo das medidas coercivas unilaterais,
disse: "Estou especialmente preocupado em ouvir relatos de que essas
sanções visam mudar o governo Venezuela. A coerção,
seja militar seja econômica, nunca deve ser usada para buscar uma
mudança de governo em um Estado soberano. O uso de sanções
por poderes externos para derrubar um governo eleito viola todas as normas do
direito internacional"
[24]
.
4. Guerra política.
Todo o espectro de informação e guerra diplomática
é usado para minar a legitimidade política de um governo e para
lançar dúvidas sobre todo o sistema político do
país sob ataque. Os processos eleitorais são descritos como
fraudulentos, os líderes políticos são difamados, o
próprio sistema legal é usado contra os líderes
políticos populares através de um processo conhecido como
lawfare
, e a fé em todo o sistema político é corroída.
Financiamentos são fornecidos a "grupos de
oposição", incluindo organizações não
governamentais, que muitas vezes se tornam instrumentos das velhas elites. A
difícil situação econômica criada pela guerra
econômica cria sérias tensões internas, que são
atribuídas ao governo por essa "oposição" e
não à guerra econômica. Fundos e apoio político
são então concedidos à população
insatisfeita que, sentindo o peso dessa guerra política, começa a
apoiar a mudança de governo. As mídias sociais são
utilizadas como uma arma contra o governo, conforme descrito em
Special Forces Unconventional Warfare
[Forças Especiais para Guerras não Convencionais], o já
citado documento de 2010. Esta é uma "revolução
colorida", uma revolução dos de cima e não dos de
baixo. Se há repressão policial contra os protestos, mesmo que
para deter mobilizações que aterrorizam bairros populares e
agridem fisicamente a população, essa repressão é
mostrada como autoritária ou mesmo genocida. Em seguida, o clamor por
"intervenção humanitária" começa a levar
a uma intervenção militar aberta dos Estados Unidos. O Estado
Maior Conjunto dos EUA, o
Joint Vision 2020,
sugere que um dos objetivos é promover o caos na sociedade-alvo
por meio das chamadas "operações de
informação" (incluindo "operações
psicológicas" e "ataques a redes de computadores").
Em uma guerra híbrida, o agressor tem como alvo as vulnerabilidades de
uma sociedade por meio desses aspectos da guerra não militar
(informacional, diplomática, econômica e política) e
aprofunda o caos por meio de atos de sabotagem e ameaças de
invasão. A pressão aumenta sobre a sociedade-alvo, na qual a
solidariedade e a resistência são chamadas para evitar o colapso
social e político total.
Entre as técnicas de guerra híbridas que os EUA empregam contra a
China estão a retórica hostil contra o governo e o povo
chinês, distorções sobre eventos em Hong Kong, Taiwan e
Xinjiang e a descrição da pandemia de coronavírus como um
"vírus chinês". A evidência não é
tão importante aqui quanto o uso de ideias racistas e anticomunistas
mais antigas para demonizar o país asiático. Mas essas
técnicas não tiveram sucesso na China, onde a classe média
o alvo de uma "revolução colorida"
não tem nenhum apetite por derrubar o governo e demonstra estar
satisfeita com os rumos do país, cujo governo tem se esforçado
para melhorar os padrões de vida e foi capaz ao contrário
dos governos ocidentais de enfrentar a pandemia do coronavírus.
Um estudo da Universidade de Harvard publicado em julho de 2020 mostra que o
governo liderado pelo Partido Comunista da China aumentou sua
aprovação de 2003 a 2016, em grande parte por causa dos programas
de bem-estar social e da luta contra a corrupção impulsionada
tanto pelo Partido Comunista da China quanto pelo governo. A
aprovação geral é de 95,5%
[25]
.
A época de dominação europeia do planeta, inaugurada em
1492, chegará ao fim. Na verdade, já podemos vislumbrar seu fim.
Mas surgem questões importantes. Não sabemos quanto tempo
levará o processo, quão efetiva e devastadora será a
resistência liderada pelos EUA, ou o que irá substituí-la.
Nossa tarefa é continuar, no presente, a resistência que em 1804
derrotou as potências escravistas no Haiti, até que haja outra
data para colocar ao lado de 1492, uma data que marque o fim da
dominação do planeta pela Europa e suas colônias.
[1]
Peter Linebaugh; Marcus Rediker,
The Many-Headed Hydra
:
The Hidden History of the Revolutionary Atlantic,
Boston: Beacon Press, 2000.
[2]
Dan Sperling, 'In 1825, Haiti Paid France $21 Billion To Preserve Its
Independence Time For France To Pay It Back',
Forbes
, 6 dez. 2017. Disponível em:
www.forbes.com/...
Acesso em: 7 dez. 2020.
[3]
Citação retirada de Melvyn Leffler. A Preponderance of
Power: National Security, the Truman Administration, and the Cold War (Palo
Alto, CA: Stanford University Press, 1992), p.18-19.
[4]
Leia mais sobre a repressão ao Partido Comunista da
Indonésia após o golpe de 1965 em nosso dossiê: O legado do
Lekra: organizando a cultura revolucionária na Indonésia, 1 dez.
2020.
[5]
"Excerpts From Pentagon's Plan: Prevent the Re-Emergence of a New
Rival", New York Times, 8 mar. 1992. Disponível em:
www.nytimes.com/...
Acesso em: 7 dez. 2020.
[6]
Vijay Prashad, Balas de Washington: uma história da CIA, golpes e
assassinatos (São Paulo: Expressão Popular, 2020).
[7]
U.S. National Security Strategy: Transform America's National Security
Institutions to Meet the Challenges and Opportunities of the 21st
Century', U.S. Department of State Archive, 20 set. 2001.
Disponível em:
2001-2009.state.gov/r/pa/ei/wh/15430.htm
. Acesso em: 7 dez. 2020.
[8]
Nan Tian; Alexandra Kuimova; Diego Lopes da Silva; Pieter D. Wezeman;
Siemon T. Wezeman, 'Trends in World Military Expenditure, 2019', Stockholm
International Peace Research Institute, abr. 2020. Disponível em:
www.sipri.org/sites/default/files/2020-04/fs_2020_04_milex_0_0.pdf
. Acesso em: 7 dez. 2020.
[9]
John Schmitt; Elise Gould; Josh Bivens, 'America's slow-motion wage
crisis', Economic Policy Institute, 13 set. 2018. Disponível em:
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[10]
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Disponível em:
www.whitehouse.gov/briefings-statements/the-inaugural-address/
. Acesso em: 7 dez. 2020.
[11]
'The Power of America's Example: The Biden Plan for Leading the
Democratic World to Meet the Challenges of the 21st
Century', Joebiden.com, jul. 2019. Disponível em:
joebiden.com/americanleadership
. Acesso em: 7 dez. 2020.
[12]
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Executive Summary: Regain the Advantage', U.S. Indo-Pacific Command, 5 abr.
2020. Disponível em:
int.nyt.com/...
. Acesso em: 7 dez. 2020.
[13]
'Factbox: How close is China to complete building a moderately prosperous
society in all respects', Xinhua, 2 ago. 2020. Disponível em:
www.xinhuanet.com/english/2020-08/02/c_139259082.htm
. Acesso em: 7 dez. 2020.
[14]
Para saber mais, leia nosso dossiê n.5 de 1 jun. 2018: Lula e a
Batalha pela Democracia. Disponível em:
www.thetricontinental.org/pt-pt/dossie-5-lula-a-a-batalha-da-democracia/
. Acesso em: 7 dez. 2020.
[15]
'Russia and China hold the biggest military exercises for decades',
The Economist
, 6 set. 2018, Disponível em:
www.economist.com/...
. Acesso em: 7 dez. 2020.
[16]
Vladimir Isachenko, 'Putin: Russia-China military alliance can't be ruled
out'.
AP News
, 22 out. 2020. Disponível em:
apnews.com/...
. Acesso em: 7 dez. 2020.
[17]
Milo Medin; Gilman Louie. 'The 5G Ecosystem: Risks & Opportunities for
DoD Defense Innovation Board'. Colaboradores: Kurt DelBene; Michael McQuade;
Richard Murray; Mark Sirangelo.
Defense Innovation Board
, 3 abr. 2019. Disponível em:
media.defense.gov/2019/Apr/04/2002109654/-1/-1/0/DIB_5G_STUDY_04.04.19.PDF
. Acesso em: 7 dez. 2020.
[18]
'Multipolarity Plays Key Role in World Peace: Chinese Vice President',
People's Daily, 6 nov. 2001. Disponível em:
en.people.cn/english/200111/05/eng20011105_83945.html
. Acesso em: 7 dez. 2020.
[19]
National Intelligence Council, Global Trends 2030: Alternative Worlds
(Washington, DC: Office of the Director of National Intelligence, 2012), iii.
[20]
Richard Haass, 'How to Build a Second American Century',
Washington Post
, 26 abr. 2013; Stephen Brooks; William C. Wohlforth, World Out of Balance:
International Relations and the Challenge of American Primacy. Princeton:
Princeton University Press, 2008.
[21]
Richard Haass, Foreign Policy Begins at Home. New York: Basic Books, 2013.
[22]
Andrew Korybko, Hybrid Wars: The Indirect Adaptive Approach to Regime
Change (Moscow: Peoples' Friendship University of Russia, 2015).
Disponível em:
orientalreview.org/wp-content/uploads/2015/08/AK-Hybrid-Wars-updated.pdf
. Acesso em: 7 dez. 2020
[23]
William S. Lind and Gregory A. Thiele, 4th
Generation Warfare Handbook (Kouvola: Castalia House, 2015).
[24]
'Venezuela sanctions harm human rights of innocent people, UN expert
warns', United Nations Human Rights, Office of the High Commissioner, 31 jan.
2019. Disponível em:
www.ohchr.org/...
. Acesso em: 7 dez. 2020).
[25]
Dan Harsha, 'Taking China's pulse', The Harvard Gazette, 9 jul. 2020.
Disponível em:
news.harvard.edu/...
. Acesso em: 7 dez. 2020.
04/Janeiro/2021
O original encontra-se em
www.thetricontinental.org/pt-pt/dossie-35-crepusculo/
Este dossier encontra-se em
https://resistir.info/
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