EUA: A enfaixar o cadáver

– Este salvamento da economia efectuado por Biden não alterará as iniquidades estruturais e nem a espiral da morte dos EUA

por Chris Hedges [*]

Biden a ser conduzido à Casa Branca. As elites dominantes estabelecidas sabem que há uma crise. Elas concordam, pelo menos temporariamente, em nela lançar dinheiro através da lei dos US$1,9 milhão de milhões (trillion) [NR] conhecida como Plano Americano de Resgate (American Rescue Plan, ARP).

Mas a ARP não alterará as iniquidades estruturais, seja pela elevação do salário mínimo para US$15 por hora seja imposição de tributos e regulamentações sobre corporações ou sobre a classe multimilionária que viu a sua riqueza aumentar uns estarrecedores US$1,1 milhão de milhões desde o começo da pandemia.

O sistema de saúde permanecerá privatizado, o que significa que as corporações de seguros e farmacêuticas colherão um bónus inesperado de dezenas de milhares de milhões de dólares com a ARP – e isto quando elas já estão a ganhar lucros recorde. As guerras infindáveis no Médio Oriente e o inchado orçamento militar que as financia permanecerão sacrossantos. A Wall Street e os especuladores predatórios globais que lucram com os níveis maciços de servidão da dívida impostos a uma classe trabalhadora mal paga e saqueiam o Tesouro dos EUA no nosso capitalismo de casino continuará a canalizar dinheiro para cima, para as mãos de uma minúscula quadrilha oligárquica.

Não haverá reforma do financiamento de campanhas para acabar com o nosso sistema de suborno legalizado. Os monopólios tecnológicos gigantes permanecerão intactos. As empresas de combustíveis fósseis continuarão a devastar o ecossistema. A polícia militarizada, a censura imposta pelas plataformas dos media digitais, o vasto sistema prisional, as leis mais duras e severas destinadas a conter tanto o terrorismo interno como a dissidência e a vigilância governamental generalizada serão, como antes, os instrumentos primários de controlo estatal.

Esta medida proporcionará, na melhor das hipóteses, um alívio momentâneo da espiral da morte do país, enviando cheques únicos de US$1.400 a 280 milhões de americanos, prolongando o subsídio semanal de desemprego de US$300 até ao final de Agosto e distribuindo US$3.600 através de um crédito fiscal para crianças menores de 6 anos e US$3.000 por criança com idades compreendidas entre os 6 e os 17 anos, a partir de 1 de Julho.

A maior parte deste dinheiro será instantaneamente devorado por senhorios, prestamistas, cuidados médicos e companhias de cartão de crédito. A medida, para seu crédito, salva cerca de um milhão de trabalhadores sindicalizados prestes a perderem as suas pensões e entrega 31,2 mil milhões de dólares em ajuda às comunidades nativas, alguns dos mais pobres da nação.

Mas o que acontece à maioria dos americanos que recebem apoio governamental apenas durante alguns meses? O que devem fazer quando os cheques deixarem de chegar no final do ano? Irá o governo federal orquestrar outro pacote de ajuda maciça? Duvido. Estaremos de volta ao ponto de partida.

Ao recusar-se a tratar as causas profundas do apodrecimento da América, ao não injectar vida de volta às instituições democráticas que outrora deram voz ao cidadão (por muito limitada que fosse) e ao tornar possível uma reforma gradual e fragmentada, por não abordar a grave desigualdade económica e social e o transtorno que aflige pelo menos metade do país, a anomia e a ruptura dos laços sociais que deram origem a um demagogo como Donald Trump irá expandir-se. O império norte-americano não travará a sua desintegração. As deformidades políticas irão metastasear-se.

Quando o próximo demagogo aparecer, e o Partido Republicano tiver apostado o seu futuro em Trump ou num duplo (doppelgänger) que o substitua, ele ou ela será provavelmente competente. O Partido Republicano propôs em 43 estados 250 leis a fim de limitar o correio, a votação presencial antecipada e, no dia das eleições, obrigar a requisitos de identificação mais rigorosos, bem como a redução do horário nos locais de votação e o número de locais de votação, privando potencialmente de direitos dezenas de milhões de eleitores. O partido não tem qualquer intenção de jogar de acordo com as regras. Uma vez de volta ao poder, camuflado no traje ideológico do fascismo cristão, o novo ou o antigo Trump abolirá o pouco que resta de espaço democrático.

As elites estabelecidas pretendem que Trump foi uma anomalia extravagante. Elas ingenuamente acreditam que podem fazer com que Trump e os mais vociferantes dos que o apoiam desapareçam ao bani-los dos media sociais. O ancien régime, asseveram eles, retornará com o decoro da sua presidencial imperial, o respeito pelas normas procedimentais, eleições elaboradamente coreografadas e fidelidade a políticas neoliberais e imperiais.

A era Trump em curso

Mas o que as elites dominantes estabelecidas ainda não entenderam, apesar da apertada vitória eleitoral de Joe Biden sobre Trump e da tempestade da multidão enfurecida na capital em 6 de Janeiro é que a credibilidade da velha ordem está morta. A era Trump, se não o próprio Trump, é o futuro. As elites dominantes, encarnadas por Biden e pelo Partido Democrata e a ala bem educada do Partido Republicano, representada por Jeb Bush e Mitt Romney, está destinada ao caixote do lixo da história.

As elites venderam colectivamente o público americano ao poder corporativo. Fizeram-no mentindo ao público sobre as consequências do Acordo de Comércio Livre Norte-Americano (NAFTA), acordos comerciais, desmantelamento do estado previdência, revogação da [lei] Glass-Stegall, imposição de medidas de austeridade, desregulamentação da Wall Street, aprovação de leis draconianas para o crime, lançamento de guerras intermináveis no Médio Oriente e salvamento (bailing out) dos grandes bancos e firmas financeiras ao invés das vítimas das suas fraudes. Estas mentiras foram muito, muito mais prejudiciais para o público do que qualquer das mentiras contadas por Trump. Estas elites foram descobertas. Elas são odiadas. Elas merecem ser odiadas.

A administração Biden – e Biden foi um dos principais arquitectos das políticas que espoliaram a classe trabalhadora e fizeram guerra aos pobres – não é mais do que um rápido desfecho do declínio e queda, contra o qual se contrapõe a crescente influência económica e militar global da China.

A perda de credibilidade tornou os media – os quais servem como cortesãos para as elites – em grande medida impotentes para manipular as percepções e a opinião pública. Como alternativa, os media dividiram o público em demografias competidoras. As plataformas dos media visam uma determinada demografia, alimentando as suas opiniões e inclinações, enquanto demoniza estridentemente a demografia do outro lado da divisão política. Isto tem-se revelado comercialmente bem sucedido. Mas também dividiu o país em facções beligerantes irreconciliáveis que já não se podem comunicar. A verdade e o facto verificável foram sacrificados. Russiagate é tão absurdo quanto a crença de que as eleições presidenciais foram roubadas a Trump. Escolha a sua fantasia.

Transferência de influência política

A perda de credibilidade entre as elites dominantes transferiu influência política para aqueles que estão foram dos centros de poder estabelecidos, tais como Alex Jones, celebridades e aqueles, tais como Joe Rogan, Glenn Greenwald e Matt Taibbi que nunca foram cuidados pelos conglomerados dos media.

O Partido Democrata, num esforço para reduzir a influência dos novos centros de poder, aliou-se aos gigantes da indústria dos media sociais, tais como Twitter, YouTube, Facebook, Patreon, Substack e Spotify para restringir ou censurar os seus críticos. O objectivo é arrebanhar o público de volta para organizações de notícias aliadas do Partido Democrata, tais como The New York Times, The Washington Post e CNN. Mas estes media, que ao serviço de anunciantes corporativos tornaram invisíveis as vidas da classe trabalhadora e dos pobres, são tão repudiados quanto as próprias elites dominantes.

A perda de credibilidade também deu lugar a novos grupos, muitas vezes espontâneos, bem como uma periferia de lunáticos que abraçam teorias da conspiração tais como QAnon. Contudo, nenhum destes grupos ou indivíduos, sejam eles de esquerda ou de direita, tem a estrutura organizacional, coerência e coesão ideológica dos movimentos radicais do passado, incluindo o antigo Partido Comunista ou militantes de sindicatos.

Ultraje emocional

Eles traficam com o ultraje emocional, muitas vezes substituindo um ultraje por um outro. Eles providenciam novas formas de identidade para substituir as identidades perdidas por dezenas de milhões de americanos que foram postos de lado. Esta energia podem ser aproveitada para causas louváveis, como acabar com abusos policiais, mas muitas vezes também é efémera. Há uma tendência para transformar o debate político em protestos de descontentamento, na melhor das hipóteses, e mais frequentemente em espectáculos televisivos.

Estas multidões que fazem manifestações relâmpago não representam qualquer ameaça para as elites a menos que construam estruturas de organização disciplinadas, o que leva anos, e articulem uma visão do que pode vir a seguir. (É por isso que apoio a Extinction Rebellion , a qual tem uma grande rede de base, especialmente na Europa, leva a cabo eficazmente actos prolongados de desobediência civil e tem um objectivo claramente declarado de derrubar as elites governantes e de construir um novo sistema governação através de comités populares e cooptações por sorteio (sortition) ).

Esta anti-política amorfa e emotiva é um terreno fértil para demagogos, que não têm consistência política mas que se dedicam exclusivamente ao estado de espírito (zeitgeist) do momento. Muitos dos que apoiam os demagogos sabem, a algum nível, que eles são vigaristas e mentirosos. Mas os demagogos são reverenciados porque, como todos os líderes de culto, desprezam as convenções, são ultrajantes e grosseiros, afirmam omnipotência e desprezam o decoro tradicional. Demagogos são armas contra elites bem sucedidas falidas que despojaram o público de oportunidades e identidades, extinguindo esperanças para o futuro. Uma população encurralada tem pouco mais do que ódio e a catarse emocional exprime o que ela traz consigo.

O motor da nossa distopia emergente é a desigualdade de rendimento, a qual está em crescimento. Este diploma legal nada faz para tratar este cancro. Os 50 por cento das famílias em 2019 representavam apenas 1 por cento do total da riqueza nacional. Os 10 por cento do topo representavam 76 por cento. E isto foi antes de a pandemia acelerar a disparidade de rendimento.

Mais de 18 milhões de americanos dependem de subsídios de desemprego, à medida que as empresas se contraem e encerram. Quase 81 milhões de americanos lutam para atender às despesas familiares básicas, 22 milhões não têm alimentos suficientes e 11 milhões dizem que não podem fazer o próximo pagamento da sua casa.

Só reformas estruturais profundas acompanhadas de legislação do tipo New Deal nos podem salvar, mas tais mudanças são um anátema para o estado corporativo e para a administração Biden. A história tem demonstrado amplamente o que acontece quando disparidades de rendimentos desta magnitude afligem um país. Não seremos excepção. Na ausência de uma esquerda forte, os Estados Unidos, em desespero, abraçarão o autoritarismo, se não o proto-fascismo. Este será, receio, o legado real de Biden e do Partido Democrata.

12/Março/2021
[NR] A quantia mencionada é cerca de 7,5 vezes maior que o PIB português.

[*] Vencedor o Prémio Pulitzer de jornalismo. Durante 15 anos foi correspondente estrangeiro do New York Times, tendo trabalhado no Médio Oriente e nos Balcãs. Anteriormente foi correspondente estrangeiro para The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

O original encontra-se em Scheerpost e em Consortium News


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14/Mar/21