EUA: A enfaixar o cadáver
Este salvamento da economia efectuado por Biden não
alterará
as iniquidades estruturais e nem a espiral da morte dos EUA
As elites dominantes estabelecidas sabem que há uma crise. Elas
concordam, pelo menos temporariamente, em nela lançar dinheiro
através da lei dos US$1,9 milhão de milhões
(trillion)
[NR]
conhecida como Plano Americano de Resgate
(American Rescue Plan, ARP).
Mas a ARP não alterará as iniquidades estruturais, seja pela
elevação do salário mínimo para US$15 por hora seja
imposição de tributos e regulamentações sobre
corporações ou sobre a classe multimilionária que viu a
sua riqueza aumentar uns estarrecedores US$1,1 milhão de milhões
desde o começo da pandemia.
O sistema de saúde permanecerá privatizado, o que significa que
as corporações de seguros e farmacêuticas colherão
um bónus inesperado de dezenas de milhares de milhões de
dólares com a ARP e isto quando elas já estão a
ganhar lucros recorde. As guerras infindáveis no Médio Oriente e
o inchado orçamento militar que as financia permanecerão
sacrossantos. A Wall Street e os especuladores predatórios globais que
lucram com os níveis maciços de servidão da dívida
impostos a uma classe trabalhadora mal paga e saqueiam o Tesouro dos EUA no
nosso capitalismo de casino continuará a canalizar dinheiro para cima,
para as mãos de uma minúscula quadrilha oligárquica.
Não haverá reforma do financiamento de campanhas para acabar com
o nosso sistema de suborno legalizado. Os monopólios tecnológicos
gigantes permanecerão intactos. As empresas de combustíveis
fósseis continuarão a devastar o ecossistema. A polícia
militarizada, a censura imposta pelas plataformas dos media digitais, o vasto
sistema prisional, as leis mais duras e severas destinadas a conter tanto o
terrorismo interno como a dissidência e a vigilância governamental
generalizada serão, como antes, os instrumentos primários de
controlo estatal.
Esta medida proporcionará, na melhor das hipóteses, um
alívio momentâneo da espiral da morte do país, enviando
cheques únicos de US$1.400 a 280 milhões de americanos,
prolongando o subsídio semanal de desemprego de US$300 até ao
final de Agosto e distribuindo US$3.600 através de um crédito
fiscal para crianças menores de 6 anos e US$3.000 por criança com
idades compreendidas entre os 6 e os 17 anos, a partir de 1 de Julho.
A maior parte deste dinheiro será instantaneamente devorado por
senhorios, prestamistas, cuidados médicos e companhias de cartão
de crédito. A medida, para seu crédito, salva cerca de um
milhão de trabalhadores sindicalizados prestes a perderem as suas
pensões e entrega 31,2 mil milhões de dólares em ajuda
às comunidades nativas, alguns dos mais pobres da nação.
Mas o que acontece à maioria dos americanos que recebem apoio
governamental apenas durante alguns meses? O que devem fazer quando os cheques
deixarem de chegar no final do ano? Irá o governo federal orquestrar
outro pacote de ajuda maciça? Duvido. Estaremos de volta ao ponto de
partida.
Ao recusar-se a tratar as causas profundas do apodrecimento da América,
ao não injectar vida de volta às instituições
democráticas que outrora deram voz ao cidadão (por muito limitada
que fosse) e ao tornar possível uma reforma gradual e fragmentada, por
não abordar a grave desigualdade económica e social e o
transtorno que aflige pelo menos metade do país, a anomia e a ruptura
dos laços sociais que deram origem a um demagogo como Donald Trump
irá expandir-se. O império norte-americano não
travará a sua desintegração. As deformidades
políticas irão metastasear-se.
Quando o próximo demagogo aparecer, e o Partido Republicano tiver
apostado o seu futuro em Trump ou num duplo
(doppelgänger)
que o substitua, ele ou ela será provavelmente competente. O Partido
Republicano propôs em 43 estados 250 leis a fim de limitar o correio, a
votação presencial antecipada e, no dia das
eleições, obrigar a requisitos de identificação
mais rigorosos, bem como a redução do horário nos locais
de votação e o número de locais de votação,
privando potencialmente de direitos
dezenas de milhões de eleitores. O partido não tem qualquer
intenção de jogar de acordo com
as regras. Uma vez de volta ao poder, camuflado no traje ideológico do
fascismo cristão, o novo ou o antigo Trump abolirá o pouco que
resta de espaço democrático.
As elites estabelecidas pretendem que Trump foi uma anomalia extravagante. Elas
ingenuamente acreditam que podem fazer com que Trump e os mais vociferantes dos
que o apoiam desapareçam ao bani-los dos media sociais. O
ancien régime,
asseveram eles, retornará com o decoro da sua presidencial imperial, o
respeito pelas normas procedimentais, eleições elaboradamente
coreografadas e fidelidade a políticas neoliberais e imperiais.
A era Trump em curso
Mas o que as elites dominantes estabelecidas ainda não entenderam,
apesar da apertada vitória eleitoral de Joe Biden sobre Trump e da
tempestade da multidão enfurecida na capital em 6 de Janeiro é
que a credibilidade da velha ordem está morta. A era Trump, se
não o próprio Trump, é o futuro. As elites dominantes,
encarnadas por Biden e pelo Partido Democrata e a ala bem educada do Partido
Republicano, representada por Jeb Bush e Mitt Romney, está destinada ao
caixote do lixo da história.
As elites venderam colectivamente o público americano ao poder
corporativo. Fizeram-no mentindo ao público sobre as consequências
do Acordo de Comércio Livre Norte-Americano (NAFTA), acordos comerciais,
desmantelamento do estado previdência, revogação da [lei]
Glass-Stegall, imposição de medidas de austeridade,
desregulamentação da Wall Street, aprovação de leis
draconianas para o crime, lançamento de guerras intermináveis no
Médio Oriente e salvamento
(bailing out)
dos grandes bancos e firmas financeiras ao invés das vítimas das
suas fraudes. Estas mentiras foram muito, muito mais prejudiciais para o
público do que qualquer das mentiras contadas por Trump. Estas elites
foram descobertas. Elas são odiadas. Elas merecem ser odiadas.
A administração Biden e Biden foi um dos principais
arquitectos das políticas que espoliaram a classe trabalhadora e fizeram
guerra aos pobres não é mais do que um rápido
desfecho do declínio e queda, contra o qual se contrapõe a
crescente influência económica e militar global da China.
A perda de credibilidade tornou os media os quais servem como
cortesãos para as elites em grande medida impotentes para
manipular as percepções e a opinião pública. Como
alternativa, os media dividiram o público em demografias competidoras.
As plataformas dos media visam uma determinada demografia, alimentando as suas
opiniões e inclinações, enquanto demoniza estridentemente
a demografia do outro lado da divisão política. Isto tem-se
revelado comercialmente bem sucedido. Mas também dividiu o país
em facções beligerantes irreconciliáveis que já
não se podem comunicar. A verdade e o facto verificável
foram sacrificados. Russiagate é tão absurdo quanto a
crença de que as eleições presidenciais foram roubadas a
Trump. Escolha a sua fantasia.
Transferência de influência política
A perda de credibilidade entre as elites dominantes transferiu influência
política para aqueles que estão foram dos centros de poder
estabelecidos, tais como Alex Jones, celebridades e aqueles, tais como Joe
Rogan, Glenn Greenwald e Matt Taibbi que nunca foram cuidados pelos
conglomerados dos media.
O Partido Democrata, num esforço para reduzir a influência dos
novos centros de poder, aliou-se aos gigantes da indústria dos media
sociais, tais como Twitter, YouTube, Facebook, Patreon, Substack e Spotify para
restringir ou censurar os seus críticos. O objectivo é arrebanhar
o público de volta para organizações de notícias
aliadas do Partido Democrata, tais como
The New York Times, The Washington Post
e CNN. Mas estes media, que ao serviço de anunciantes corporativos
tornaram invisíveis as vidas da classe trabalhadora e dos pobres,
são tão repudiados quanto as próprias elites dominantes.
A perda de credibilidade também deu lugar a novos grupos, muitas vezes
espontâneos, bem como uma periferia de lunáticos que
abraçam teorias da conspiração tais como QAnon. Contudo,
nenhum destes grupos ou indivíduos, sejam eles de esquerda ou de
direita, tem a estrutura organizacional, coerência e coesão
ideológica dos movimentos radicais do passado, incluindo o antigo
Partido Comunista ou militantes de sindicatos.
Ultraje emocional
Eles traficam com o ultraje emocional, muitas vezes substituindo um ultraje por
um outro. Eles providenciam novas formas de identidade para substituir as
identidades perdidas por dezenas de milhões de americanos que foram
postos de lado. Esta energia podem ser aproveitada para causas
louváveis, como acabar com abusos policiais, mas muitas vezes
também é efémera. Há uma tendência para
transformar o debate político em protestos de descontentamento, na
melhor das hipóteses, e mais frequentemente em espectáculos
televisivos.
Estas multidões que fazem manifestações relâmpago
não representam qualquer ameaça para as elites a menos que
construam estruturas de organização disciplinadas, o que leva
anos, e articulem uma visão do que pode vir a seguir. (É por isso
que apoio a
Extinction Rebellion
, a qual tem uma grande rede de base, especialmente na Europa, leva a cabo
eficazmente actos prolongados de desobediência civil e tem um objectivo
claramente declarado de derrubar as elites governantes e de construir um
novo sistema governação através de comités populares e cooptações por sorteio
(sortition)
).
Esta anti-política amorfa e emotiva é um terreno fértil
para demagogos, que não têm consistência política mas
que se dedicam exclusivamente ao estado de espírito
(zeitgeist)
do momento. Muitos dos que apoiam os demagogos sabem, a algum nível,
que eles são vigaristas e mentirosos. Mas os demagogos são
reverenciados porque, como todos os líderes de culto, desprezam as
convenções, são ultrajantes e grosseiros, afirmam
omnipotência e desprezam o decoro tradicional. Demagogos são armas
contra elites bem sucedidas falidas que despojaram o público de
oportunidades e identidades, extinguindo esperanças para o futuro. Uma
população encurralada tem pouco mais do que ódio e a
catarse emocional exprime o que ela traz consigo.
O motor da nossa distopia emergente é a desigualdade de rendimento, a
qual está em crescimento. Este diploma legal nada faz para tratar este
cancro. Os 50 por cento das famílias em 2019 representavam apenas 1 por
cento do total da riqueza nacional. Os 10 por cento do topo representavam 76
por cento. E isto foi antes de a pandemia acelerar a disparidade de rendimento.
Mais de 18 milhões de americanos dependem de subsídios de
desemprego, à medida que as empresas se contraem e encerram. Quase 81
milhões de americanos lutam para atender às despesas familiares
básicas, 22 milhões não têm alimentos suficientes e
11 milhões dizem que não podem fazer o próximo pagamento
da sua casa.
Só reformas estruturais profundas acompanhadas de
legislação do tipo New Deal nos podem salvar, mas tais
mudanças são um anátema para o estado corporativo e para a
administração Biden. A história tem demonstrado amplamente
o que acontece quando disparidades de rendimentos desta magnitude afligem um
país. Não seremos excepção. Na ausência de
uma esquerda forte, os Estados Unidos, em desespero, abraçarão o
autoritarismo, se não o proto-fascismo. Este será, receio, o
legado real de Biden e do Partido Democrata.
12/Março/2021
[NR]
A quantia mencionada é cerca de 7,5 vezes maior que o PIB
português.
[*]
Vencedor o Prémio Pulitzer de jornalismo. Durante 15 anos foi
correspondente estrangeiro do
New York Times,
tendo trabalhado no Médio Oriente e nos Balcãs. Anteriormente
foi correspondente estrangeiro para
The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor
e NPR.
O original encontra-se em
Scheerpost
e em
Consortium News
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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