Vida cotidiana e mercado mundial
(Breve diálogo com Harry Braverman)
por Mônica Hallak Martins da Costa
[*]
A revolução social (...) não pode tirar
sua poesia do passado, e sim do futuro.
(Marx,
O 18 brumário de Luís Bonaparte
)
O objetivo principal de
Trabalho e capital monopolista
(1987), como anunciado no subtítulo, é o exame da
degradação do trabalho no século XX. O capítulo
dedicado à análise do mercado mundial, portanto, não trata
diretamente do problema central da obra, apenas contextualiza as
mudanças que ocorreram na vida social de modo a apresentar a
discussão acerca do desenvolvimento dos processos de trabalho naquele
momento. Na introdução do livro, quando relata brevemente as
funções que havia exercido como trabalhador manual, Braverman
levanta a hipótese de seus argumentos serem interpretados como
"apego sentimental às condições antigas"
(Braverman, 1987, p. 17) de trabalho
[1]
. Ele afirma, no entanto, que cuidou para que suas conclusões não
decorressem desse romantismo, apesar de admitir ter gostado de trabalhar como
artífice. Declara, além disso, que suas
(...) opiniões sobre o trabalho estão dominadas pela nostalgia de
uma época que ainda não existe, na qual, para o trabalhador, a
satisfação do ofício, originada do domínio
consciente e proposital do processo do trabalho, será combinada com os
prodígios da ciência e poder criativo da engenharia, época
em que todos estarão em condições de beneficiar-se de
algum modo desta combinação (Braverman, 1987, p. 18)
Não discutiremos no presente texto
[2]
se Braverman teve ou não sucesso em se distanciar do saudosismo em
relação às formas anteriores de trabalho (este foi um tema
de disputa entre seus críticos e defensores). Limitamo-nos aqui a
desenvolver um brevíssimo diálogo com o autor a partir de suas
reflexões sobre as mudanças na vida social no contexto do
capitalismo dos monopólios, quando "a totalidade do
indivíduo, da família, da sociedade e das necessidades
sociais" (Braverman, 1987, p. 231) são subordinados ao mercado.
Este recorte, claro, não permite maiores generalizações
acerca dos resultados alcançados por Braverman. Mas com
relação ao tema aqui tratado, o da vida cotidiana, não
há dúvida quanto à sua nostalgia de uma vida
comunitária centrada no contato direto dos indivíduos na
família e na vizinhança, como veremos adiante.
Harry Braverman (1987) abre o capítulo dedicado à análise
do mercado mundial, de seu
Trabalho e capital monopolista,
listando os artigos que passam a fazer parte da vida doméstica a
partir do capitalismo dos monopólios. Ele arrola primeiramente aqueles
produtos que desde o início do século XIX entravam nas casas da
maioria da população:
gêneros básicos sob a forma mais ou menos inacabada, tais como
cereais e carnes, peixe e alimentos, derivados de leite e legumes, bebidas
destiladas e fermentadas, pão e biscoitos e melaços. Outras
necessidades domésticas normais incluíam fumo, carvão e
velas, lamparinas e sabão, sebo e cera, livro e jornais. A
produção de roupas estava em seus inícios, mas o mercado
na primeira parte do século XIX já estava bem desenvolvido para
fios e têxteis, inclusive artigos de tricô, botas e sapatos. Os
artigos domésticos incluíam também artefatos de madeira de
serrarias e carpintarias ferragens, tijolos e pedra, artigos de argila e vidro,
moveis, utensílios domésticos, porcelana e utilidades,
instrumentos musicais, lataria e prataria, cutelaria, relógios e
carrilhões, produtos farmacêuticos e drogas (Braverman, 1987, p.
231).
O autor completa a lista com aqueles materiais que eram necessários para
a manufatura de alguns dos artigos mencionados:
ferro e minérios não ferrosos, metais, madeira bruta,
alcatrão, breu, terebintina, potassa, cânhamo, artigos de pedra
etc. O transporte exigia fabricação de carroças, carretas,
coches e carruagens, navios e botes, tonéis e barris. E as
indústrias que produziam ferramentas e implementos tais como foices,
arados, machados e martelos haviam começado a produzir maquinaria sob a
forma de bombas, máquinas a vapor, equipamento de fiação e
tecelagem, e as primeiras máquinas-ferramentas (Barverman, 1987, pp.
231-2).
No momento descrito inicialmente por Braverman, "o papel da família
permanecia fundamental nos processos produtivos da sociedade". Apesar de a
indústria já estar presente na confecção de
vários artigos mencionados acima, a família era a unidade
econômica, reprodutora da existência social, por excelência.
Como afirma Tryon, citado por Braverman, "praticamente todas as
necessidades da família eram supridas por seus membros. O produtor e
consumidor eram virtualmente idênticos" (Tryon
apud
Braverman, 1987, p. 232). Nas fazendas norte-americanas o agricultor e sua
família cultivam os cereais e criam o gado que eles mesmos preparam para
consumo, além de:
fazer vassouras, colchões, sabão, carpintaria e pequenos
trabalhos em metal, curtumaria, fermentação e
destilação, manufatura de arreios, desnatação e
fabricação de queijos, prensamento e fervura de sucos para
melaços, corte de moirões e ripas para cercas,
panificação de compotas e às vezes até mesmo
fiação e tecelagem (Braverman, 1987, p. 232).
Esse quadro muda radicalmente a partir do final século XIX e
início do seguinte. Braverman mostra, por exemplo, que em um
período de vinte anos (de 1879 a 1899) a produção
domiciliar de manteiga caiu abaixo de três quartos.
[3]
Ou seja, se até 1879 toda manteiga consumida pelas famílias era
produzida em casa, em 1899 apenas uma em cada quatro casas produzia esse
alimento. A diminuição da produção domiciliar
é paralela ao vertiginoso aumento da produção nos
estabelecimentos comerciais. É o caso da fabricação do
pão, dos legumes em conserva e das compotas de frutas que chegou a
crescer doze vezes entre 1899 e 1939, como mostram as pesquisas apresentadas
pelo autor.
Braverman identifica alguns fatores que levaram a essa transição.
Primeiramente, a expulsão do agricultor da terra e o
"condicionamento urbano mais apertado" que "destrói as
condições sob as quais é possível levar a vida
antiga. O anel urbano fecha-se em torno do trabalhador (...) e os confina nas
circunstâncias que impedem as antigas práticas de
auto-abastecimento dos lares" (Braverman, 1987, p. 234).
Em segundo lugar, com frequência "o trabalho domiciliar torna-se
antieconômico em comparação com o trabalho assalariado pelo
barateamento dos artigos manufaturados" (Braverman, 1987, p. 234), o que
tem como uma de suas consequências a saída da mulher do lar para a
indústria.
Além da pressão material que leva todos os integrantes do grupo
familiar a buscar seu sustento fora de casa, Braverman identifica também
a pressão do costume social que, segundo ele, incide com maior
força sobre a geração jovem, mais suscetível aos
ditames da moda, da publicidade e dos próprios processos educacionais,
que a essa altura são exercidos fora de casa. Tudo isso contribui para o
menosprezo em relação ao "feito em casa", que é
paralelo à valorização do "comprado fora".
Essas mudanças objetivas na reprodução das necessidades
materiais da família são acompanhadas de um elemento novo que
pode surgir justamente pela disponibilidade dos artigos produzidos pela
indústria: "a poderosa necessidade de cada membro da família
de uma renda independente" (Braverman, 1987, p. 235). Até
então, cada pessoa do grupo familiar deveria se especializar em um
'ramo' das atividades domésticas para que a família pudesse obter
os artigos necessários para sua reprodução. Trabalhando
fora de casa, os membros da família, de um lado, perdem ou deixam de
adquirir aquelas habilidades nas quais se especializavam no trabalho
doméstico e, por outro, buscam no mercado outros produtos diferentes
daqueles produzidos por eles próprios. Para o autor, essa necessidade de
renda independente é "um dos sentimentos mais fortes instilados
pela transformação da sociedade em um gigantesco mercado de
trabalho e artigos, uma vez que a fonte de
status
já não é mais a capacidade de fazer coisas, mas
simplesmente a capacidade de comprá-las" (Braverman, 1987, p. 235).
O que o autor designa, no final da citação, com o advérbio
'simplesmente' é nada menos que o resultado da maior
transformação vivida pela humanidade nos seus últimos
milênios a revolução industrial.
As consequências positivas e/ou danosas para a classe operária das
grandes transformações ocorridas no começo do
industrialismo foram pesquisadas e divulgadas por inúmeros
historiadores. Hobsbawm (2000), no livro
Trabalhadores,
dedica o quinto capítulo exclusivamente para a polêmica entre os
que defendiam que houve um efetivo aumento do padrão de vida da classe
trabalhadora no período e aqueles que afirmavam, ao contrário,
que esse padrão declinou. Marx (1983), no livro I de
O capital
, em especial no capítulo XXIII, descreve as condições
deploráveis da classe trabalhadora da Inglaterra em meados do
século XIX. Mas, independentemente do resultado dessa disputa, o que
aconteceu na Inglaterra a partir de final do século XVIII gerou um
processo de mudança irreversível para a vida dos seres humanos de
todo o planeta. Em apenas um século, ou seja, nos cem anos que separam a
revolução industrial da era do capitalismo dos monopólios
o mundo se torna "genuinamente global" (Hobsbawm, 2005, p. 29).
É certo que a preocupação de Braverman é muito mais
a perda das habilidades
[4]
de "fazer coisas" e o domínio do consumo como modo de ser, de
individuação, e não somente o aumento ou o declínio
do padrão de vida. Mas ao considerar esse processo pelos seus aspectos
negativos que sem dúvida são reais o autor deixa de
valorizar a ampliação, sem precedentes, das possibilidades
humanas abertas por esse movimento (que Marx valoriza principalmente nos
Grundrisse
). De todo modo, o próprio Braverman mostra a
transformação dos afetos, costumes, sentimentos, enfim, dos
laços humanos que acompanha o movimento de ampliação do
consumo através da identificação da necessidade de cada
pessoa construir outras relações fora do grupo familiar.
O primeiro passo do processo que, segundo Braverman, "leva à
dependência de toda a vida social" (Braverman, 1987, p. 235) para
com o mercado foi a industrialização do alimento em
semi-preparado ou inteiramente preparado. Essa mudança tem como uma de
suas consequências a liberação da mulher de parte do
trabalho doméstico e serve, ao mesmo tempo, para impeli-la ao mercado de
trabalho. Ao identificar a industrialização do alimento como
momento inicial das transformações ocorridas na era do
capitalismo dos monopólios, Braverman se volta para as
implicações nas relações humanas decorrentes desse
movimento. Diz ele:
a população não conta mais com a organização
social sob forma de família, amigos, vizinhos, comunidade, velhos,
crianças, mas com poucas exceções devem ir ao mercado e
apenas ao mercado, não apenas para adquirir alimento, vestuário e
habitação, mas também para recreação,
divertimento, segurança, assistência aos jovens, velhos, doentes e
excepcionais. Com o tempo, não apenas necessidades materiais e de
serviço, mas também os padrões emocionais de vida
são canalizados através do mercado (Braverman, 1987, p. 235).
Braverman compreende a atomização da vida social nas cidades,
principalmente, a partir "das relações de mercado como
sucedâneo das relações individuais e
comunitárias" (Braverman, 1987, p. 235). Constata, assim, que as
relações entre os indivíduos não ocorrem mais
diretamente a partir de suas associações na família, na
vizinhança etc. mas nas relações de compra e venda. Por
isso, "quanto mais a vida social se transforma em uma densa e compacta
rede de atividades interligadas nas quais as pessoas são totalmente
dependentes, tanto mais atomizadas elas se tornam, e mais seus contatos com os
outros as separam em vez de torná-las mais próximas"
(Braverman, 1987, pp. 235-6). Trata-se daquilo que Marx caracterizou como
"interdependência indiferente", relação na qual o
interesse comum está submetido aos interesses particulares refletidos em
si mesmos, ao "interesse individual de um em oposição ao do
outro" (Marx, 1985a, p. 135).
A família como representante máxima das funções da
vida social, produção e consumo, se vê reduzida somente
à última, mesmo assim de "forma atenuada, visto que mesmo
como unidade consumidora a família tende a romper-se em partes
componentes que consomem separadamente" (Braverman, 1987, p. 236). Segundo
o autor:
Esse processo é apenas um aspecto de uma equação mais
complexa: à medida que a vida social e familiar da comunidade são
enfraquecidas, novos ramos da produção surgem para preencher a
lacuna resultante; e à medida novos serviços e mercadorias
proporcionam sucedâneos para relações humanas sob a forma
de relações de mercado, a vida social e familiar são ainda
mais debilitadas. Trata-se, pois, de um processo que implica
alterações econômicas e sociais de um lado, e profundas
mudanças nos padrões psicológicos e afetivos de outro
(Braverman, 1987, p. 236).
Essas alterações se realizam efetivamente no cotidiano das
pessoas. A maior parte do tempo de vida de um indivíduo até
então ocorria em casa, com os familiares. Na situação do
trabalho domiciliar moderno, o capital entrou nas casas dos trabalhadores
obrigando-os a trabalhar sob suas condições
[5]
, depois forçou a todos os membros da família a buscar seu
sustento em um espaço diferente do doméstico. A saída das
pessoas para trabalhar, ter de ganhar a vida fora de casa, significa
concretamente estabelecer relações com um universo de pessoas
muito mais amplo, desempenhar tarefas freqüentemente mais fragmentadas do
que no contexto anterior, adquirir novas necessidades, não só de
consumo, mas também de outras atividades e contatos sociais fora da
família.
A necessidade de tempo livre para exercer outras atividades fora do trabalho
é ainda muito tímida na fase inicial do capitalismo dos
monopólios. Era recente ainda a jornada de trabalho de 10 horas
diárias, que permitia pouco mais do que a convivência
mínima com a família no tempo fora da fábrica. Mesmo em
uma obra sem nenhuma vinculação com a tradição
marxista, como
História da vida privada
(1992), pode-se encontrar a afirmação, de Antoine Prost, de que
no início do século XX as classes populares (leia-se:
trabalhadora) "se definiam, acima de tudo, pelo trabalho, e sua vida
privada deveria se submeter primeiramente às obrigações
profissionais (Prost, 1992, pp. 33-4).
Por isso mesmo, como afirma Braverman, o mais característico em
"uma sociedade em que a força de trabalho é comprada e
vendida" é que "o tempo de trabalho torna-se aguda e
antagonisticamente dividido a partir do tempo de lazer, e o trabalhador suspira
pelo tempo 'livre' a que dá extraordinário valor, enquanto a hora
do trabalho é considerada tempo perdido ou desperdiçado".
(Braverman, 1987, p. 237). Nos
Manuscritos de 1844,
Marx tratou dessa contraposição caracterizando-a como "o
bestial" (comer, beber, procriar) que se torna e "humano"; mas
interessa-nos aqui mostrar, com Braverman, que o "preenchimento do tempo
ocioso também se torna dependente do mercado, que inventa continuamente
divertimentos passivos, entretenimentos, e espetáculos que se ajustam
às restritas circunstâncias da cidade e são oferecidos como
sucedâneos da própria vida" (Braverman, 1987, p. 237). Para o
autor o capital é tão empreendedor que "mesmo onde é
feito o esforço por um setor da população para ir em busca
da natureza, do esporte, da arte através da atividade pessoal e
amadorista ou de inovação 'marginal', essas atividades são
rapidamente incorporadas ao mercado" (Braverman, 1987, p. 237).
Braverman considera a crescente inserção do mercado em todas as
esferas da vida a "ruína da própria família e da
comunidade", que ao se desagregarem deixam um vazio em
relação aos cuidados dos membros da família uns com os
outros. Com todos os adultos saudáveis trabalhando fora, quem cuida dos
velhos, das crianças, dos deficientes, dos doentes? É assim que,
segundo o autor, "o cuidado dos seres humanos uns para com os outros
torna-se cada vez mais institucionalizado" (Braverman, 1987, p. 238). Ele
afirma que:
Cria-se todo um novo estrato de desamparados e dependentes, enquanto o antigo e
já conhecido amplia-se enormemente: a proporção dos
"doentes mentais" ou "deficientes", os
"criminosos", as camadas pauperizadas na parte baixa da sociedade,
todos representando variedades de desmoronamento sob as pressões do
urbanismo capitalista e das condições de emprego ou desemprego
capitalista. Além do mais, as pressões da vida urbana crescem
mais intensas e ela torna-se mais difícil aos necessitados de amparo na
selva das cidades. Uma vez que nenhum cuidado se pode esperar de uma comunidade
atomizada, e uma vez que a família não pode arcar com todas as
incumbências, já que tem que arrojar-se na ação para
sobreviver e "ter êxito" na sociedade de mercado, o cuidado de
todas essas camadas torna-se institucionalizado, muitas vezes das maneiras mais
bárbaras e opressivas. Assim compreendido, o maciço aumento das
instituições que se estendem de todos os modos, das escolas e
hospitais de um lado, a prisões e manicômios de outro, representa
não precisamente o progresso da medicina, da educação ou
da prevenção do crime, mas a abertura do mercado apenas para os
"economicamente ativos" e em "funcionamento" na sociedade,
em geral à custa pública e para um vultoso lucro para as empresas
fabris e de serviços que em geral possuem e invariavelmente patrocinam
essas instituições. (Braverman, 1987, p. 238)
O amparo aos necessitados é, portanto, crescentemente assumido
não diretamente pelo mercado, que raramente consegue transformar essas
atividades em investimentos lucrativos, mas pelo estado, que financia direta ou
indiretamente o sustento das instituições assistenciais.
Mas Braverman não trata apenas dos serviços voltados para os
cuidados imediatos com a população necessitada (incluídos
nessa categoria crianças e idosos), mas o aumento de
instituições como motéis, hotéis, restaurantes e
"também de imensos espaços de supermercados e lojas,
escritórios e unidades integradas habitacionais" (Braverman, 1987,
p. 238). Nestes ambientes aquelas atividades antes exercidas para
manutenção da própria casa, por exemplo, a limpeza,
são agora executadas por pessoas especializadas, "em grande parte
por mulheres que, de acordo com os preceitos da divisão do trabalho,
executam (...) funções que antigamente executavam em casa, mas
agora a serviço do capital" (Braverman, 1987, p. 239).
Para Braverman, a criação do mercado mundial depende, em primeiro
lugar, da transformação de todos os bens de consumo em
mercadoria. Em segundo, na conversão dos serviços em mercadoria
e, por fim naquilo que o autor chamou de "ciclo de produto",
"que inventa novos produtos e serviços, alguns dos quais tornam-se
indispensáveis" (Braverman, 1987, p. 239). Assim, para ele:
o habitante da sociedade capitalista é enlaçado na teia
trançada de bens-mercadorias e serviços-mercadoria da qual
há pouca possibilidade de escapar mediante parcial ou total
abstenção da vida social tal como existe. Isto é
reforçado de outro lado por um desenvolvimento que é
análogo ao que continua na vida do trabalhador: a atrofia da
competência. No fim, a população acha-se, quer queira quer
não, na situação de incapacidade de fazer qualquer coisa
que facilmente não possa ser feito mediante salário no mercado,
por um dos múltiplos ramos novos do trabalho social. E enquanto do ponto
de vista do consumo isso signifique total dependência quanto ao mercado,
do ponto de vista do trabalho significa que todo o trabalho é efetuado
sob a égide do capital e é suscetível de seu tributo de
lucro para expandir o capital ainda mais (Braverman, 1987, p. 239).
Exatamente por esse entrelaçamento inescapável, Marx (assim como
Braverman) considera a sociedade capitalista como a forma histórica mais
social da produção humana. O tom de reprovação de
Braverman em relação às conquistas do mercado e à
desqualificação do trabalhador colocadas por ele como dois
lados da mesma moeda deixa de enfatizar exatamente o que Marx chamou de
"aspectos civilizadores do capital" (Marx, 1985, p. 273).
Mas o próprio autor estadunidense admite que para os fins de sua
análise o que interessa mostrar são os aspectos desumanizadores
do mercado mundial, o "confinamento de amplo segmento da
população ao trabalho degradado" (Braverman, 1987, p. 239).
Ele esclarece que assim como na fábrica,
não é nas máquinas que está o erro, mas nas
condições do modo capitalista de produção sob as
quais elas são utilizadas; do mesmo modo, não é na
existência dos serviços que está o erro, mas nos efeitos de
um mercado todo-poderoso que, dominado pelo capital e seu investimento
lucrativo, tanto é caótico quanto profundamente hostil aos
sentimentos da comunidade (Braverman, 1987, p. 239).
Com seu saudosismo em relação à comunidade, Braverman
curiosamente se esquece de um aspecto que ele próprio identificou e que,
com certeza, está entre as maiores conquistas da forma social
capitalista de produzir: a constituição do indivíduo
social. De fato ela se exerce a custa de uma "comunidade" de
indivíduos atomizados. Isso não significa que os
indivíduos vivam somente voltados para si, isolados do mundo, ao
contrário, significa que a vida social mudou, que 'a' ou 'as'
comunidades não se formam somente pelo contato físico entre as
pessoas da mesma família ou da vizinhança, mas que elas podem se
reunir de outras tantas formas. Ou seja, a "abstenção da
vida social tal como existe" pode significar que não há uma
forma única de existir para a comunidade humana, que ela é
múltipla e as suas formas de existência se multiplicam com o
desenvolvimento das forças produtivas e com as
transformações individuais/sociais que necessariamente a
acompanha. Braverman morreu apenas dois anos depois de publicar
Trabalho e capital monopolista,
ou seja, em 1976. Ele não viu, portanto, o vertiginoso desenvolvimento
da informática do século XXI e não podemos dizer com
certeza se ele manteria ou não sua crítica ao "fim" da
comunidade ou se a estenderia ao surgimento de espaços virtuais de
troca. Claro que podemos, e devemos, como e com ele, denunciar a tentativa de
apropriação capitalista desses espaços que, em alguma
medida, tem êxito. Mas, ao mesmo tempo eles expõem, pela sua
própria existência, os limites dessa forma social que pretende
transformar tudo em mercadoria. O real/virtual (músicas, livros, filmes)
'liberado' no ciberespaço
[6]
é, digamos assim, resistente ao enquadre capitalista, o que não
significa, obviamente, que sua existência leve por si só à
superação do capital, mas que o desenvolvimento das forças
produtivas coloca dificuldades para essa forma de produzir e reproduzir a vida
social.
O trabalho de Braverman continua a ser uma referência obrigatória
para os estudiosos do marxismo, ainda que tenha perdido sua atualidade em um e
outro aspecto. De todo modo, chama a atenção a sensibilidade do
autor para a constante interação entre as esferas
superestruturais da formação social e a base material, elemento
que, por si só, faz de seu livro um clássico.
Referências Bibliográficas
BRAVERMAN, Harry.
Trabalho e capital monopolista.
Rio de Janeiro: LTC, 1987.
HOBSBAWM, Eric.
Os trabalhadores.
São Paulo: Paz e Terra, 2000.
______.
A era dos impérios.
São Paulo: Paz e Terra, 2005.
LÈVY, Pierre.
O que é o virtual?
São Paulo: Ed. 34, 1996.
______.
A inteligência coletiva.
São Paulo: Loyola, 1998.
MARX, Karl.
O capital
. São Paulo: Abril Cultural, 1983-1985, 3 v.
______. "Grundrisse, 1857-1858". In: Carlos Marx Frederico
Engels.
Obras Fundamentales
v. 6/7.
México: Fondo de Cultura Económica, 1985a.
______.
Manuscritos econômico-filosóficos.
São Paulo: Boitempo, 2004.
______.
Contribuição à crítica da economia política.
São Paulo: Expressão Popular, 2007.
MEIKSINS, Peter. Trabalho e capital monopolista para os anos 90: uma resenha
crítica do debate sobre o processo de trabalho.
Crítica marxista.
São Paulo: Brasiliense, nº 3 pp. 106-117, 1996.
PROST, Antoine; VICENT, Gérard.
História da vida privada
5. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.__
Notas
1. Braverman não se enganou em suas previsões. Ele foi, de fato,
acusado de "romantizar" a qualificação manual,
contrapondo um local de trabalho mítico do século XIX, dominado
majoritariamente por artesãos qualificados autônomos a um local de
trabalho do século XX, povoado por trabalhadores desqualificados que
desempenham trabalho degradado e monótono" (Meiksins, 1996, p.
109). Disponível no site:
http://www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/3_Meiksins.pdf
, acessado em mar. 2010.
2. A reflexão aqui apresentada foi desenvolvida no processo da
investigação para a tese de doutorado cujo tema é a vida
cotidiana no capitalismo contemporâneo; daí o recorte tão
estreito na obra de Braverman, que teve apenas o intuito de evidenciar a
perspicácia do autor ao tratar do mercado mundial a partir da vida
doméstica.
3. Esse processo é paralelo ao quadro apresentado por Braverman no
primeiro capítulo. Segundo o autor, no início do século
XIX quatro quintos da população norte-americana trabalhavam por
conta própria. Essa cifra caiu para um terço por volta de 1870
"e em 1940 para não mais de um quinto; no ano de 1970, apenas perto
de um décimo da população trabalhava por conta
própria" (Braverman, 1987, p. 55).
4. A questão da perda de habilidades (ou de qualificação)
é um dos alvos preferidos dos críticos de Trabalho e capital
monopolista. Melksins (1996) é uma referência esclarecedora para o
debate sobre as questões do processo de trabalho.
5. Essa também foi uma situação mencionada pelos
críticos de Braverman. Eles afirmam "que os artesãos estavam
longe de ser completamente autônomos, na medida em que os empregadores
desenvolveram várias formas de controle do trabalho qualificado, antes
do nascimento da gestão científica" (Meiksins, 1996, p. 109).
6. Essa é a discussão, por exemplo, de Pierre Lèvy (1996 e
1998) quando esclarece o significado de virtual e inteligência coletiva.
[*]
Graduada em serviço social pela PUC-MG, mestre em filosofia pela UFMG
e doutoranda em serviço social pela UFRJ. Professora da Escola de
Serviço Social da PUC-MG.
O original encontra-se em Verinotio revista on-line de
educação e ciências humanas, n. 11, Ano VI, abr./2010, ISSN
1981-061X,
http://www.verinotio.org/Verinotio_revistas/n11/ensaios/ens1_monica.pdf
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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