Numa conversa com o
Financial Times
na semana passada, Henry Kissinger fez uma observação altamente
significativa acerca da tentativa do presidente Donald Trump de melhorar as
relações dos Estados Unidos com a Rússia. A conversa
verificou-se sob o pano de fundo da cimeira de Helsínquia em 16 de
Julho. Disse Kissinger: "Penso que Trump pode ser uma daquelas figuras
históricas que surgem de tempos em tempos para assinalar o fim de uma
era e forçá-la a abandonar suas antigas pretensões. Isto
não significa necessariamente que ele saiba disto, ou que ele esteja a
considerar qualquer grande alternativa. Poderia ser apenas um acidente".
Kissinger não desenvolveu esta ideia, mas a deriva do seu pensamento
é coerente com opiniões que exprimiu no passado a
constante perda de influência dos EUA na arena global, a ascensão
da China e o ressurgimento da Rússia a tornar necessário um novo
equilíbrio global.
Já em 1972 numa discussão com Richard Nixon sobre a sua
próxima viagem à China, que significava a abertura
histórica a Beijing, Kissinger podia visualizar uma reequilibragem a
tornar-se necessária no futuro. Ele então exprimiu a visão
de que em comparação com os sovietes (russos), os chineses eram
"igualmente perigosos. De facto, eles são mais perigosos ao longo
de um período histórico". Kissinger acrescentou: "em 20
anos o seu sucessor (de Nixon), se ele for tão sábio quanto
você, acabará por inclinar-se para os russos contra os
chineses".
Kissinger argumentou que os Estados Unidos, o qual procurava aproveitar-se da
inimizade entre Moscovo e Beijing na era da Guerra Fria, precisaria portanto
"jogar este jogo do equilíbrio de poder de modo totalmente
não emocional. Neste momento, precisamos dos chineses para corrigir e
disciplinar os russos". Mas no futuro seria ao contrário.
Naturalmente, Kissinger não é o pioneiro da "diplomacia
triangular" EUA-Rússia-China. Não é segredo que na
década de 1950 os EUA fizeram tudo o que podiam para impulsionar uma
divisão entre Mao Zedong e Nikita Khruschev. A ênfase era sobre
isolar a "China comunista". A paixão de Khruschev pela
"coexistência pacífica" a seguir à sua cimeira
com Dwight Eisenhower em 1959, em Camp David, tornou-se um momento definidor no
cisma sino-soviético.
Mas mesmo com o cismo sivo-soviético aprofundado (culminando no
sangrento conflito no Rio Ussuri em 1969), Nixon reverteu a política de
Eisenhower e abriu a linha para Beijing, priorizando a competição
global dos EUA com a União Soviética. Os materiais dos arquivos
desclassificados da Guerra Fria mostram que Washington ponderou seriamente
acerca da possibilidade de uma guerra sino-soviética mais vasta. Um
memorando particular do Departamento de Estado dos EUA relata um momento
incrível na história da Guerra Fria um responsável
do KGB a indagar acerca da reacção americana a um
hipotético ataque soviético a instalações chinesas
de armas nucleares.
Depois, há um memorando escrito para a atenção de
Kissinger pelo então influente observador da China, Allen S. Whiting, a
advertir sobre o perigo de um ataque soviético à China.
Claramente, 1969 foi um ano crucial quando o cálculo dos EUA foi
redefinido com base na estimativa de que as tensões
sino-soviéticas providenciaram uma base para a
reaproximação sino-americana. Isso levou à abertura
dramática de Nixon e Kissinger para abrir comunicações
secretas com a China através do Paquistão e da Roménia.
Esta recapitulação é útil nos dias de hoje porque
os movimentos de Trump até agora são indicativos de uma agenda
para reverter à era de Eisenhower contenção da
China forjando uma aliança com a Rússia.
Putin cairá na isca de Trump? Bem, isto depende. Na minha
opinião, não há dúvida de que Putin verá
aqui uma grande abertura para a Rússia. Mas isso dependerá do que
os EUA têm a oferecer. Os abundantes elogios de Putin à Trump
quanto à questão norte-coreana e a resposta calorosa deste
último foi um diálogo significativo em Helsínquia, foi um
bom ponto de partida para sublinhar a ânsia de Moscovo por desempenhar um
papel mais amplo na Ásia-Pacífico.
Beijing deve estar a observar o "degelo" em Helsínquia com
algum desconforto. O porta-voz do Ministério dos Negócios
Estrangeiros chinês saudou a cimeira de Helsínquia. Mas a
avaliação predominante de analistas chineses é que nada
vai acontecer uma vez que as contradições nas
relações EUA-Rússia são fundamentais e a russofobia
está demasiado difundida dentro do establishment dos EUA.
O
China Daily,
de propriedade governamental, publicou um editorial
Será que a reunião de Helsínquia reiniciou as
relações EUA-Rússia?
onde considera que na melhor das hipóteses, "a cimeira de
Helsínquia representa um bom ponto de partida para melhores
relações entre os EUA e a Rússia". Entretanto, de
forma notável, o editorial é pessimista acerca de qualquer grande
avanço real nas relações EUA-Rússia, inclusive
sobre a Síria, o tópico que Putin destacou como um teste para a
eficácia da cooperação russo-americana.
Por outro lado, o tablóide do Partido Comunista Chinês,
Global Times,
publicou um editorial em que faz uma análise impressionante do que
levou Trump a prestar tanta atenção ("respeito")
à Rússia
a China pode aprender com o respeito de Trump pela Rússia.
Conclui que a única razão concebível poderia ser que,
embora a Rússia não seja uma potência económica,
reteve influência no cenário global devido ao poder militar:
Trump enfatizou reiteradamente que a Rússia e os EUA são as duas
maiores potências nucleares do mundo, com o seu arsenal nuclear combinado
representando 90 por cento do total mundial, e portanto os EUA devem viver em
paz com a Rússia. Sobre as relações EUA-Rússia,
Trump é lúcido.
Pelo contrário, se os EUA estão hoje a acumular pressão
sobre a China é porque esta, embora um gigante económico, ainda
é uma potência militar fraca. Portanto:
As armas nucleares da China não só garantem um segundo
ataque mas também desempenham um papel importante na
formação de um forte dissuasor para que potências externas
não ousem intimidar a China militarmente... Parte da arrogância
estratégica dos EUA pode vir da sua vantagem nuclear absoluta... A China
deve acelerar seu processo de desenvolvimento do poder nuclear
estratégico... Não só deveríamos possuir um forte
arsenal nuclear, como também devemos deixar que o mundo exterior saiba
que a China está determinada a defender seus principais interesses
nacionais com o poder nuclear.
Na verdade, se vierem tempos de crise, a China estará por sua conta
e risco dentro do triângulo kissingeriano. E a China precisa de se
preparar para uma tal eventualidade. Por outro lado, o impulso da China para
criar um vasto arsenal nuclear poderia ridicularizar as grandes
noções de Moscovo e Washington de que são os únicos
adultos na sala de manutenção do equilíbrio
estratégico global.
23/Julho/2018
O original encontra-se em
blogs.rediff.com/mkbhadrakumar/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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