Estados Unidos: a irresistível chegada da recessão

por Jorge Beinstein [*]

Crescimento trimestreal do PIB. Acaba de se tornar conhecida a cifra definitiva do crescimento da economia dos Estados Unidos durante o primeiro trimestre de 2007. A percentagem inicial avaliada em 1,3% anualizados foi reduzida para 0,6%. Trata-se da taxa mais baixa dos últimos quatro anos, que confirma a tendência para a desaceleração já iniciada no último trimestre de 2006.

Quando em Fevereiro deste ano Alan Greenspan, ex-titular da Reserva Federal, anunciou a possibilidade de os Estados Unidos entrarem em recessão antes de fins de 2007 (sua observação coincidiu com a derrocada bursátil desencadeada pela queda da bolsa de Shangai) choveram desmentidos de peritos e autoridade monetárias dos países centrais. Mas a realidade não pode ser exorcizada com manipulações mediáticas. A acumulação de défices, a degradação do dólar e sobretudo o desinchar da borbulha imobiliária tornavam inevitável o desenlace. A borbulha imobiliária, peça mestra da estratégia económica da administração Bush juntamente com a avalanche de despesas militares (com a loucura militarista que a acompanhou) e as reduções fiscais conseguiram sacar a economia estado-unidense do estancamento inflando um consumo não apoiado pelo desenvolvimento produtivo local (a decadência do sistema industrial norte-americano já tem muitos anos). Somaram-se as dívidas internas e externas, os créditos fáceis, em especial os destinados às habitações que cresceram de maneira desmesurada, o défice energético expandiu-se… pelos finais de 2006 a dívida total estado-unidense (pública, empresarial e pessoal) chegara aos 48 mil milhões de dólares: mais de três o Produto Interno Bruto norte-americano e superior ao Produto Bruto Mundial. As dívidas com o exterior saltavam para 10 mil milhões de dólares… a corda não podia ser esticada indefinidamente.

TUDO MAL

A estratégia do governo Bush pode ser sintetizada como a combinação de duas operações que, apoiando-se mutuamente, deveriam ter relançado e consolidado o poderio imperial dos Estados Unidos: a expansão rápida de uma borbulha consumista-financeira para produzir um forte arranque económico associada a uma ofensiva militar sobre a Eurásia que lhe daria a hegemonia energética global e daí a primazia financeira, encurralando as outras potências (China, União Europeia, Rússia). A partir de 2001 apostou numa contundente vitória das suas forças armadas que lhe permitiria controlar militarmente a faixa territorial que vai desde os Balcãs no Mediterrâneo Oriental até o Paquistão, atravessando a Turquia, a Síria, o Iraque, o Irão, as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central, a Bacia do Mar Cáspio, o Afeganistão, atapetando-a de implantações militares que vigiariam um complexo leque de protectorados. Os preparativos da ofensiva haviam-se desenvolvido ao longo dos anos 1990 sob governos republicanos e democratas: a primeira Guerra do Golfo, os intermináveis bombardeios sobre o Iraque ao longo de toda a década, a guerra do Kosovo. Tratou-se de uma 'política de Estado' que incluiu os dois partidos governantes e o conjunto do sistema de poder. Eles sabiam que a borbulha económica lançada paralelamente à ofensiva militar não podia sustentar-se muito tempo, os desajustamentos financeiros acumular-se-iam e a borbulha de créditos estimulando a especulação imobiliária acabaria por desinchar: 2005-2006 aparecia como uma barreira temporal intransponível. Mas nesse momento, apostavam os falcões, a vitória militar do Império permitiria redefinir as regras do jogo económicas do planeta, os cowboys do Pentágono chegariam just-in-time para auxiliar os magos das finanças. Mas tudo saiu errado; os cowboys atolaram-se no Iraque, a ofensiva fulminante sobre a Eurásia fracassou na primeira batalha importante, enquanto o globo especulativo entrou em crise e já nenhum punho de ferro pode salvá-lo.

SINAL DE ALARME, DESACELERAÇÃO, INTERROGAÇÕES

A partir de 2005 peritos de signos ideológicos muito diversos começaram a alertar acerca do próximo desinchaço da borbulha imobiliária. Em Agosto desse ano The Economist assinalava as consequências mundiais da inevitável contracção do globo especulativo [1] . Mas nos Estados Unidos, onde o fosso entre os empréstimos imobiliários e os rendimentos pessoais crescia sem cessar, a festa financeira continuou imperturbável aos alertas, ditando o ritmo das outras potências económicas. O contágio chegou a regiões muito remotas da periferia.

Finalmente, em 2006, os preços da habitações começaram a descer, a borbulha estado-unidense contraía-se inexoravelmente. A partir desse momento seu impacto negativo sobre a procura e a seguir sobre o conjunto do Produto Interno Bruto era só uma questão de tempo.

Pelos finais de 2006 apareceram os primeiros sintomas de desaceleração económica, que se tornaram dramáticos durante o primeiro trimestre de 2007. Em Fevereiro produziu-se uma sacudidela bursátil internacional afectando em primeiro lugar a China, país extremamente dependente da capacidade de compra do mercado norte-americano. Agora, em meados de 2007, independentemente de altos e baixos e recuperações efémeras, a interrogação central é como e a que ritmo o arrefecimento se propagará ao conjunto da economia mundial. Por exemplo: como afectará os preços das matérias-primas, em primeiro lugar o do petróleo, empurrado para cima pelo processo de redução de reservas (a aproximação do Pico Petrolífero global ) e pressionado para baixo pela desaceleração dos grandes sistemas industriais. Enfrentaremos logo uma recessão com queda geral de preços ou antes uma combinação de recessão e inflação semelhante à estagflação dos anos 1970? Assistiremos a grandes contracções de negócios financeiros ou a sua combinação com novos surtos especulativos (por exemplo: euforias nos mercados de metais preciosos)? Por fim, quais serão as consequências políticas, militares e ideológicas desta grande perturbação do capitalismo mundial? De algo devemos estar certos: esta crise não se parece com nenhuma das anteriores, este nível de hipertrofia financeira nunca fora atingido, também é inédito o grau de interdependência entre todas as grandes economias e, além disso, misturam-se perigosamente aspectos característicos de uma crise de sobre-produção com outros próprios de uma situação de sub-produção de produtos decisivos para a sobrevivência do sistema. Este último exprime-se por agora só no tema energético, mas ao mesmo tempo está a impulsionar outras penúrias, por exemplo: a de alimentos devido à utilização de terras cultiváveis na produção de biocombustíveis.

PARA ALÉM DAS CONSPIRAÇÕES

Balança de transacções correntes dos EUA. Seria ingénuo atribuir a crise à aplicação de uma estratégia errónea por parte da Casa Branca. Devemos inserir a referida estratégia no contexto mais amplo da decadência da sociedade norte-americana e a mesma como parte (decisiva) de um processo de crise global. Se focalizarmos o médio prazo, desde princípios dos anos 1990 (fim da guerra fria) observaremos como a economia estado-unidense foi-se convertendo num sistema baseado na especulação financeira e no défice comercial, ao qual se acrescentaram o défice fiscal e as dívidas de todo tipo num processo geral de concentração de rendimentos. Em suma, uma dinâmica elitista e parasitária cuja primeira etapa teve uma certa aparência produtivista em torno das chamadas indústrias de alta tecnologia. Seu centro motor foi a euforia bursátil e as célebres "acções tecnológicas" expressas no índice Nasdaq, que crescia vertiginosamente. Os peritos-comunicadores da época assinalavam que se havia posto em andamento um círculo virtuoso que empurrava a economia norte-americana para uma espécie de prosperidade infinita. Segundo eles, a expansão do consumo alentava novos desenvolvimentos tecnológicos que impulsionavam a produtividade e em consequência os rendimentos e portanto o consumo, etc. Na realidade, o que estava a ocorrer era uma euforia bursátil que proporcionava rendimentos financeiros presentes e futuros a empresas e indivíduos, incitando-os a gastar mais e mais.

A festa acabou em começos da década actual e a economia estancou-se. A nova administração republicana não encontrou outro caminho de saída senão uma nova borbulha muito maior que a anterior, desta vez baseada numa avalanche de créditos imobiliários.

Junto ao delírio financeiro desenvolveram-se outros fenómenos como a criminalidade e a criminalização estatal das classes baixas, em especial de algumas minorias como a dos latino-americanos e afro-norteamericanos pobres ou a degradação do sistema político (corrupção, submissão aos grupos de negócios ascendentes). Em especial, criou-se uma convergência de interesses que foi reconfigurando o tradicional "complexo militar industrial" para transformá-lo numa extensa rede de grupos financeiros, petroleiros, industriais, políticos, militares e paramilitares mafiosos. Em princípios da presente década verificou-se um salto qualitativo, representado pela chegada de George W. Bush e seus falcões.

Num enfoque a mais longo prazo, desde o fim do padrão dólar-ouro (1971) e da crise planetária que o seguiu observamos uma crise de sobre-produção que foi adiada, emplastrada, na base da expansão dos negócios financeiros e do superconsumo norte-americano inscrito numa corrente mundial de concentração de rendimentos.

A aventura militar-financeira não foi uma descarga súbita ou um desvio neofascista do sistema de poder norte-americano e sim um arranque estratégico lógico (fortemente impregnado de componentes fascistas) do núcleo central de poder dos Estados Unidos que desse modo prolongava, acentuava, as tendências económicas, ideológicas e políticas dominantes. Que foram crescendo até se tornarem hegemónicas a partir da presidência Reagan, passando por Cárter, Bush pai, Clinton até chegar aos auto-atentados do 11 de Setembro de 2001 e à invasão do Iraque.

O FIM DAS ILUSÕES

A prosperidade fictícia do Império forjou, sobretudo nos anos 1990, a ilusão de um Poder mundial avassalador perante o qual só era possível adaptar-se. Surgiu uma direita global triunfalista que cobriu com um discurso "neoliberal" a orgia financeira, mas também um progressismo cortesão que na base da submissão ao capitalismo pretendia adorná-lo com matizes humanistas. Tanto para uns como para outros a vitória do universo burguês era definitiva ou pelo menos de muito longa duração. Mas quando, ao iniciar-se a presente década, começaram a despontar as primeiras fissuras do sistema optaram em geral por negar fanaticamente a realidade: o declínio do dólar ou o super-endividamento norte-americano eram apresentados como expressões de uma recomposição positiva na marcha do capitalismo global, a desordem financeira como o ocaso da especulação superado por uma próxima reconversão produtivista da economia de mercado, enfim, cada amostra de fracasso era transformada em demonstração de rejuvenescimento. É possível que isso ainda continue por mais algum tempo, inclusive o declínio dos Estados Unidos e de outras potências arrastadas pelo gigante pode dar lugar a ilusões passageiras acerca do ascensão de capitalismos nacionais ou regionais autónomos na periferia ou em reconversões milagrosas de algumas economias centrais. O truque de substituir a realidade pelos desejos ilusórios costuma dar bons resultados a curto prazo. O problema é que as grandes tendências da história acabam por impor-se.

06/Jun/2007

[1] "The global housing boom. In come the waves", The Economist, 16/Jun/2005.

[*] Economista, argentino.

O original encontra-se em http://www.resumenlatinoamericano.org , Nº 903


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
09/Jun/07