Tal como a
"bazuca"
de 45 mil milhões para Portugal
Reconstrução do capital a custa da nossa
destruição. O que fazer?
Após os ataques sofridos na crise anterior, prepara-se [em Espanha] um
novo assalto de dimensões muito maiores, gestado conscientemente mediante um
cenário de terror generalizado destinado a minimizar nossas
possibilidades de resposta.
À medida que se aprofunda o abismo da crise, o capitalismo mostra sem
máscaras que a liberdade de mercados e a sua defesa da livre
concorrência são mera propaganda. O botim porque lutam
encarniçadamente as facções oligárquicas dominantes
é o dinheiro público que o Estado, o seu Estado, o Estado ao
serviço do capital, põe à sua disposição.
E essa enésima apropriação da nossa riqueza, a que produz
a classe operária, não é só a mais-valia,
não apenas os lucros que lhes geramos ao comprar suas mercadorias,
é além disso o roubo dos fundos públicos que geramos com
nossos impostos que é pago praticamente só pelos
trabalhadores e nossas contribuições sociais.
Os Fundos da UE como instrumento de chantagem
As 2000 páginas que o governo espanhol enviou a Bruxelas dando conta das
contra-reformas a empreender em troca dos Fundos de Reconstrução
são secretas.
São-no por duas razões:
-
a primeira, porque mudam todos os dias em função das
pressões exercidas por aqueles que mandam de verdade: a UE em
representação da banca e das multinacionais.
-
e a mais importante, porque como todos os crimes contra o povo, perpetram-se na
obscuridade, procurando que tardemos o mais possível a tomar
conhecimento.
Está a acontecer exactamente o mesmo que em 2011. Então, enquanto
a "nossa" dívida crescia e se disparavam os alarmes, o
governador do Banco Central Europeu e o do Banco de Espanha, o social-democrata
Fernández Ordóñez, escreveram uma carta secreta
[1]
ao presidente do governo, o muito "progressista" Zapatero,
intimidando-o, so a ameaça de não comprar Títulos de
Dívida Pública, a reduzir pensões e direitos laborais,
recortar [o orçamento] e privatizar ainda mais
serviços públicos como a saúde e a educação.
O governo do PSOE não só fez o que lhe pediam como, em pleno
Agosto e em uma semana, reformou com o apoio do PP a sacrossanta
Constituição, para antepor o pagamento da Dívida a
qualquer necessidade social. Há que recordar que essa Dívida foi
construída a base de transferências maciças de dinheiro
público para os bancos e de redução de impostos às
grandes empresas.
Agora o conto é reeditado: o Plano de Choque aprovado em
princípios do Verão passado, entre outras medidas, punha à
disposição dos bancos 100 mil milhões de euros mediante os
quais o Estado se convertia em avalista da dívida de todas as empresas e
autónomos que entrassem em quebra e não pudessem pagar os
créditos solicitados à banca.
Além disso, em fins de Julho anunciavam-se outros 40 mil milhões.
Recentemente informava-se que, efectivamente, grande parte desses
créditos não foi paga e que foram contabilizados como
défice público
[2]
.
Com uma dívida de 125% do PIB em consequência de uma economia que
entrou em colapso, pela crise e pelo saqueio, os vampiros da UE pressionam para
que se executem todo tipo de contra-reformas de maneira a que a classe
operária e as PMEs paguem a crise descomunal engendrada pelo
próprio capitalismo.
Perante estas agressões, o governo do PSOE e Unidas Podemos, como antes
o de Zapatero, submete-se sem se queixar e prepara o enésimo ataque
contra a classe trabalhadora e as camadas populares.
Apesar de, como dizia, a opacidade acerca das reformas exigidas ser total,
já há indícios suficientes para saber o roteiro do drama
que se avizinha e que, em traços gerais, será o seguinte:
1. Para onde irão?
Os Fundos europeus, esses 140 mil milhões de euros, serão
destinados à "reconversão verde" e à
"digitalização". A UE decidiu, e o governo aceitou, que
essas são "nossas" prioridades.
As necessidades sociais prementes, habitação, saúde,
educação, protecção social, precariedade, etc, ou a
planificação democrática da economia após o
afundamento do turismo e da construção, não contam
absolutamente para nada.
2. Quem os receberá?
Não sabemos exactamente como se distribuirão mas é um
segredo público que os 140 mil milhões serão repartidos
pelos tubarões do
Ibex
, desta vez disfarçados de "verde", de ecologistas. E
será assim porque se sabe que tanto a reforma das
administrações públicas e o procedimento administrativo
para agilizar as tramitações para aceder aos Fundos
assim como os critérios de repartição, foram elaborados
por gabinetes jurídicos vinculados à
CEOE
. Eles concebem e o governo põe a assinatura.
3. O que será destinado à saúde?
Na pandemia, em plenos aplausos e louvações, já vimos como
ia a coisa. Todo o gasto extra provocado pela pandemia foi sistematicamente
para bolsos privados
[3]
. Nada para contratar mais pessoal ou reforçar a saúde
pública.
Os escassos Fundos que serão destinados à saúde
representam apenas 1,5%, pouco mais de 1000 milhões de euros, que
irão para a "colaboração
público-privada", o novo eufemismo da privatização.
Já o ministro da Saúde, em plena pandemia, teve a desvergonha de
presidir um acto financiado pela indústria farmacêutica
[4]
sobre "A saúde do futuro", onde não havia outro
horizonte senão essa "colaboração" que consiste
na vampirização de fundos públicos pela empresa privada.
4. O que se passará com a digitalização?
A digitalização, como qualquer outra técnica, depende de
em que mãos esteja e para que se utilize. A digitalização
aumenta enormemente a produtividade do trabalho, ou seja, produz-se o mesmo em
menos tempo. A digitalização, em boa lógica, num
país com níveis de capacidade ociosa tão terríveis,
deveria servir para reduzir a jornada laboral e repartir o trabalho, obviamente
sem diminuição salarial, uma vez que se produzem incrementos
enormes da mais-valia salário não pago a qual
é apropriada pelo empresário.
Será exactamente ao contrário. A entidade patronal, com a reforma
laboral sem ser abolida no enésimo incumprimento do pacto de governo
[5]
, prepara-se para reduzir efectivos (veja-se o que sucedeu com a banca
[6]
) e aumentar a jornada laboral (na Grécia pretende-se aumentar para 10
horas
[7]
). Além disso é preciso não esquecer que a principal
utilidade da digitalização é a "Defesa", ou
seja, melhorar as armas destinadas à repressão das trabalhadoras
e trabalhadores e ao massacre dos povos.
Mas a coisa não acaba aqui.
QUEM PAGARÁ O QUE VÃO RECEBER "NOSSAS" MULTINACIONAIS
DOS FUNDOS EUROPEUS?
Está tudo concebido para que os paguemos nós. Ainda não
sabemos tudo, mas já avançaram algo:
1º) Pagaremos a metade desses 140 mil milhões de euros como
Dívida, ou seja, com cortes na despesa pública, diminuindo
efectivos, salários e recursos nos serviços públicos.
Assim se matem dois pássaros com um só tiro: engorda-se pela
enésima vez o negócio dos bancos, que não nossos credores,
e afundam-se os serviços públicos em benefício dos
privados.
2º) O governador do Banco de Espanha anunciava há poucos dias
[8]
: a classe trabalhadora deverá pagar-se a sua própria
indemnização por despedimento e destinar uma parte, outra mais,
do seu salário a um fundo de pensões privado para ter uma
pensão que lhe permita viver (missão impossível
após os cortes que pensam nos impor). É a chamada mochila
austríaca
[NT]
. O negócio é claro: esvaziam os cofres da Segurança
Social construídos com o nosso dinheiro e, como não há
dinheiro, dizem, impõem-nos financiamento adicional de seguros privados.
3º) Além disso, como são "verdes",
"ecologistas" e preocupa-os a mudança climática,
vão reformar os impostos. E como o farão? Fazendo pagar empresas
contaminantes que estão a ter impactos terríveis sobre a
saúde dos seus efectivos e população circundante, como as
incineradoras? Nada disso. Vão introduzir novos impostos indirectos, ou
seja, aqueles que toda a gente paga por igual, ricos e pobres, como as
portagens nas auto-estradas ou sobre o gasóleo nos automóveis.
Nesta altura do filme, a trama deveria estar clara. Propõem-se a
continuar a destroçar da vida da classe trabalhadora e de pequenos e
médios empresários, enquanto banqueiros e donos de multinacionais
acumulam fortunas cada vez maiores. E os governos, seja de que cor forem,
servem-nos sem refilar.
QUE FAZER?
É urgente reagirmos. Não podemos continuar com lutas parcelares
quando os desastres (desemprego, habitação, precariedade,
discriminação de género, fracasso escolar, desmantelamento
da saúde pública, etc) caem todos sobre as mesmas costas: as da
classe operária.
Mas a unidade não pode ser uma simples soma de
reivindicações ou de siglas. Deve ter como objectivo impedir, em
conjunto, o plano sinistro que a UE pretende impor-nos.
Por isso, o novo processo de lutas que sem dúvida será aberto
deve centrar-se, em grandes traços e em acréscimo às
reivindicações concretas de cada sector, com estas palavras ou
com outras, nos seguintes objectivos:
-
Os fundos da UE, que são públicos, são administrados
pelo povo e o povo decide as prioridades. Planificação
democrática da economia.
-
Não pagaremos a Dívida construída dando dinheiro
público a bancos e multinacionais.
-
Expropriação da banca e empresas estratégicas.
-
Regresso às mãos públicas de tudo o que foi privatizado.
Empresas fora dos serviços públicos.
Contra o desânimo e a impotência que impera em muitos sectores,
Bertolt Brecht escreveu estes versos a que chamou "Louvor à
dialéctica":
Com passo firme passeia-se hoje a injustiça
Os opressores dispõem-se a dominar mais dez mil anos.
A violência garante: "Tudo continuará igual".
Não se ouve outra voz senão a dos dominadores,
e no mercado a exploração grita: "Agora é que
começo".
E entre os oprimidos, muitos agora dizem:
"Jamais se conseguirá o que queremos".
Quem ainda esteja vivo não diga "jamais".
O firme não é firme.
Tudo não continuará igual.
Quando hajam falado os que dominam,
falarão os dominados.
Quem se pode atrever a dizer "jamais"?
De quem depende que continue a opressão? De nós.
De quem depende que se acabe? Também de nós.
Que se levante aquele que está abatido!
Aquele que está perdido, que combata!
Quem poderá conter aquele que conhece a sua condição?
Pois os vencidos de hoje não são os vencedores de amanhã
e o jamais converte-se em hoje mesmo.
Maio/2021
[1]
hayderecho.com/...
[2]
www.elconfidencial.com/...
[3]
www.casmadrid.org/...
[4]
www.elsaltodiario.com/...
[5]
podemos.info/coalicion-progresista/
[6] Depois de haver reduzido à metade os postos de trabalho em
consequência das fusões verificadas nos últimos tempos,
mais uma vez os grandes bancos, que repartem milhares de milhões em
dividendos e que foram resgatados por dinheiro público, anunciam
despedimentos maciços.
www.naiz.eus/...
[7]
insurgente.org/...
[8]
www.elconfidencial.com/...
[NT] Mochila austríaca: Sistema em que é criada uma conta
em nome de cada trabalhador na qual a empresa credita uma quantia (com valor
equivalente a seis dias de trabalho por ano) para constituir um mealheiro
com fundos pertencentes ao empregado, o qual pode levá-lo para outro
emprego ou dele dispor no caso de 1) ser despedido ou 2) para
formação ou 3) para
guardá-lo até a aposentação. No caso espanhol a
dita "mochila" seria financiada inicialmente com 8,6 mil
milhões de fundos europeus a fim de respeitar direitos adquiridos de
indemnização no caso de despedimento. O sistema opera na
Áustria desde 2003. Ver
El Pais
.
[*]
Médica. Dirigente da
Red Roja
.
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
.
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