Depois do petróleo:
Por que não nos salvarão os combustíveis alternativos
por James Howard Kunstler
[*]
Com base em tudo o que sabemos até agora, nenhuma
combinação dos chamados combustíveis ou procedimentos
energéticos alternativos nos permitirá manter a vida quotidiana
nos Estados Unidos da maneira a que estávamos acostumados durante o
regime do petróleo. Nenhuma combinação de
combustíveis alternativos nos permitirá manter em funcionamento
uma parte substancial dos sistemas que utilizamos actualmente desde o
fabrico de alimentos e indústria até à
produção de energia eléctrica, às cidades de
arranha-céus, às vulgares tarefas diárias que implicam um
grande número de percursos de automóvel por dia, ao funcionamento
das grandes escolas centralizadas com as suas frotas de autocarros amarelos.
Estamos em dificuldades.
As alternativas conhecidas ao petróleo convencional que discutirei neste
capítulo incluem o gás natural, o carvão e as areias
betuminosas, o óleo de xisto, o etanol, a fissão nuclear, a
energia solar, eólica, hidráulica, das marés e os hidratos
de metano. Recorreremos decerto a muitas delas, e aos vários sistemas a
que obrigam, mas nada compensará a depleção das nossas
reservas petrolíferas. Na verdade, todas as fontes energéticas
que se baseiam em combustíveis não-fósseis dependem, em
certa medida, da economia subjacente assente nos combustíveis
fósseis. Não conseguimos fabricar turbinas metálicas para
produzir energia eólica utilizando a tecnologia da energia
eólica. Não conseguimos fabricar baterias de ácido e
chumbo para sistemas eléctricos solares utilizando os sistemas de
energia solar que conhecemos.
O pseudo-combustível hidrogénio será analisado como uma
categoria especial, porque a expectativa popular que suscita se baseia num
imenso irrealismo. A chamada "economia do hidrogénio" centrada
em torno de automóveis a hidrogénio, prometida pelo presidente
Bush no discurso sobre o Estado da União, proferido em 2003, é,
neste momento, uma fantasia, especialmente perigosa porque promove uma atitude
indulgente em relação à situação que
enfrentamos. Se a "economia do hidrogénio" vier a
concretizar-se alguma vez, não iremos transitar pacificamente para ela
quando a economia dos combustíveis fósseis começar a
vacilar. Na melhor das hipóteses, o mundo irá passar por um
período de caos económico e de tensão social entre o fim
da era dos combustíveis fósseis e seja o que for que vier a
seguir. A questão que se coloca tem a ver com a duração
deste intervalo: dez anos, cem anos, mil anos ou para sempre?
A crença de que a "economia de mercado" nos facultará
automaticamente um substituto para os combustíveis fósseis
constitui um tipo de pensamento mágico semelhante ao culto dos cargueiros
[1]
no Pacífico Sul.
Esta velha tendência dos seres humanos para acreditarem na magia e para
desejarem desfechos felizes tem-se agravado com os triunfos tecnológicos
que a era do petróleo produziu. A própria tecnologia tornou-se
uma espécie de força sobrenatural que, na memória de
muitas das pessoas que ainda estão vivas, realizou todos os tipos de
milagres desde as viagens de avião aos filmes e transplantes
cardíacos. É incontestável que a tecnologia prolongou a
vida, suavizou a miséria e tornou luxuosa a vida do dia-a-dia para uma
minoria afortunada (os rendimentos decrescentes e as consequências
indesejadas da tecnologia são assuntos importantes que serão
analisados mais adiante, no Capítulo 6). Um público optimista,
incluindo empresários e políticos importantes, encara o problema
crescente da depleção do petróleo como uma questão
muito simples de carácter prático, idêntica às
questões que a tecnologia e o engenho humano têm sido capazes de
resolver até agora, motivo pelo qual parece razoável esperar que
essa combinação volte a ser bem sucedida. No entanto, esta
crença tem muitas falhas.
Uma delas reside no facto de tendermos a confundir e a misturar energia com
tecnologia. Embora andem de mãos dadas, não são
exactamente o mesmo. A dádiva do petróleo foi uma
ocorrência geológica extraordinária e singular, que nos
permitiu usar a energia armazenada ao longo de milhões de anos de luz
solar. Quando se esgotar, acaba-se de vez. A tecnologia não é
mais do que o equipamento e os programas para gerir esse combustível,
não é o próprio combustível. Acresce que a
tecnologia ainda está sujeita às leis da Física e da
Termodinâmica, que afirmam que não conseguimos obter nada sem ser
a troco de algo e que o movimento perpétuo não existe. Tudo isto
para dizer que grande parte da nossa tecnologia actual não funciona sem
petróleo, e que, sem a "plataforma" do petróleo, talvez
não tenhamos as ferramentas de que precisamos para superar o actual
nível de tecnologia baseada nos combustíveis fósseis. Por
outras palavras, dispomos de uma janela de oportunidade extremamente estreita
para levar a cabo essa mudança. Entretanto, eis os problemas que os
diversos combustíveis alternativos colocam, com base nos conhecimentos
que temos neste momento.
GÁS NATURAL
Nesta exposição, quando falo em gás natural quero dizer
metano. Dos diversos gases naturais que brotam do solo, o metano (CH
4
), o mais leve, representa 75% do produto comercial utilizado na
indústria, na produção de energia eléctrica e no
aquecimento doméstico. Os outros propano, butano, etc.
separam-se durante o processamento e prestam-se com mais facilidade a ser
liquefeitos porque são mais densos e pesados.
O gás natural é incolor e inodoro. É costume acrescentar
ao gás comercial uma quantidade mínima de sulfureto de dimetilo
para lhe dar um mau cheiro detectável, a fim de as pessoas se
aperceberem se houver fugas (e ficarem alarmadas). É explosivo quando se
mistura com o ar em concentrações de 5 a 15%. A origem do
gás natural é semelhante à do petróleo, mas as
condições geológicas implicam maior calor e pressão
porque os estratos de rocha são empurrados por forças
tectónicas para uma profundidade superior à da "janela"
de petróleo e os depósitos de gás costumam estar
associados a campos petrolíferos. Cerca de um terço da energia
total utilizada nos Estados Unidos deriva do gás natural.
O gás natural é um combustível maravilhoso. Brota do solo
com facilidade, por efeito da sua própria pressão, sem
necessidade de ser bombeado (também pode ser destilado do carvão,
mas os custos da extracção do minério, bem como a energia
despendida no processo de destilação, fazem aumentar o seu
preço). É um combustível "limpo". Durante a
combustão, não produz quase nenhuma matéria, embora
liberte dióxido de carbono, o mais importante gás de
"estufa". O gás natural é facilmente transportado
à temperatura do ar por toda a América do Norte, em redes de
gasodutos que ligam os poços e locais de armazenamento aos utilizadores
finais. Não é tão versátil como a gasolina, mas
desempenha muitas tarefas às maravilhas. O gás é a
matéria-prima de uma grande quantidade de produtos químicos,
farmacêuticos e plásticos. Dos adubos azotados utilizados nos
Estados Unidos 95% são feitos a partir de gás natural, motivo
pelo qual se tornou indispensável à agricultura americana.
No início do século XX, o gás natural abundava ao ponto de
ser encarado como um subproduto incómodo da indústria
petrolífera e queimado nos poços. Depois da Segunda Guerra
Mundial, a construção de uma vasta rede nacional de gasodutos
transformou-o num bem lucrativo. Nos Estados Unidos, a produção
petrolífera atingiu o pico em 1970, mas a produção de
gás natural teve o seu próprio pico pouco depois, em 1973, com
22,9 mil milhões de pés cúbicos
[648,46 milhões de metros cúbicos]
, tendo vindo a declinar desde então. Fornos mais eficazes,
flutuações na procura e regulamentações
contraditórias ajudaram a obscurecer este facto fundamental até
ao século XXI.
Talvez ironicamente, o embargo petrolífero da OPEP em 1973 levou muitos
proprietários de casas a mudarem das caldeiras a petróleo para as
caldeiras a gás natural justamente no ano em que a
produção de gás atingiu o seu máximo, embora esse
pico só viesse a ser identificado retrospectivamente. O gás era
mais limpo, mais barato e produzido nos Estados Unidos. O conforto das pessoas
no Inverno não estava à mercê de estrangeiros. O embargo
traumático da OPEP promoveu também a ideia geral de
conservação da energia, que levou a uma maior eficácia na
tecnologia de combustão. Em 1978, contudo, era evidente um vincado
declínio na produção de gás. A
administração Carter integrou a depleção na sua
política de energia, ilegalizando a utilização do
gás natural ou do petróleo como combustíveis em quaisquer
instalações destinadas a gerar electricidade. A política
de Carter estimulava as centrais a carvão e as centrais nucleares a
satisfazerem a nova procura. Então, em Março de 1979, a central
nuclear de Three Mile Island, perto de Harrisburg, na Pensilvânia, sofreu
uma fusão parcial, que suspendeu, por tempo indeterminado, o
desenvolvimento da indústria nuclear americana. A
legislação ambiental dos anos 70 também tornou a
utilização do carvão cada vez mais problemática,
devido à sua implicação na chuva ácida.
Entretanto, em meados dos anos 80, o consumo do gás natural tinha
diminuído 24% em comparação com os níveis
alcançados na década anterior. Os produtores de gás
natural começaram a abrir falência. Para salvar a
indústria, a administração Reagan inverteu as
regulamentações de Carter. Em vez de proibir o gás natural
nas centrais energéticas, os legisladores encorajavam a sua
utilização. O acidente em Chernobil, na Ucrânia, em Abril
de 1986, foi muito mais grave que o de Three Mile Island. A horrorosa
história de Chernobil liquidou praticamente quaisquer perspectivas de
desenvolvimento da indústria nuclear americana, porque passou a ser
impossível vencer a chamada reacção NIMBY
[NT 1]
. Os Estados Unidos estavam num dilema. A nível interno, tanto o
gás natural como o petróleo estavam a esgotar-se. Já
estavam a ser utilizadas todas as centrais hidroeléctricas mais
importantes. O carvão era sujo. O combustível nuclear
politicamente intocável. Nessa altura, estávamos a importar cerca
de metade do petróleo líquido que consumíamos e não
queríamos passar por outra crise de chantagem em torno da energia vinda
do estrangeiro. Embora os Estados Unidos estivessem a produzir menos gás
do que em anos anteriores, também estávamos a consumir menos, e,
futuramente, o abastecimento proviria do Canadá, um vizinho amistoso.
À falta de melhor, o gás tornou-se a opção menos
desagradável para satisfazer a futura procura das centrais produtoras de
energia eléctrica. Previa-se a entrada em funcionamento, em 2006, de
mais de 275 centrais termoeléctricas movidas a gás, em
comparação com as 158 existentes em 2000, o que faria aumentar o
consumo de gás em mais de 8,5 mil milhões de pés
cúbicos por ano
[240,69 milhões de metros cúbicos/ano].
Em 2000, apesar dos melhoramentos na tecnologia de perfuração,
das deduções fiscais favoráveis e de um intenso
esforço de exploração no Golfo do México, a
produção americana de gás natural ainda era 10% inferior
à de 1973. O fosso entre o consumo e a produção era
colmatado por um aumento nas importações de gás que nos
chegava do Canadá por gasodutos e de pequenas quantidades de gás
natural liquefeito (GNL), transportadas em navios. Apesar de ser um grande
produtor de petróleo, o México tornou-se um importador
líquido de gás natural. Ironicamente, o NAFTA (Acordo de
Comércio Livre da América do Norte) obriga os Estados Unidos a
venderem gás do Texas ao México, que os Estados Unidos têm
de compensar com gás importado do Canadá. Por sua vez, o
Canadá, que também já ultrapassou a sua
produção máxima de gás, é obrigado, pelo
NAFTA, a vender gás aos Estados Unidos aos preços de mercado.
[2]
Em 1999, o National Petroleum Council previu que o aumento do abastecimento de
gás seria suficiente para responder a um aumento de 36% na procura, em
2010. A previsão da organização revelou-se errada,
ultrapassando em muito os piores pesadelos dos especialistas. Neste momento, a
produção americana de gás natural está a diminuir
5% ao ano, não obstante a perfuração frenética,
podendo vir a registar uma redução muito mais acentuada. Os 167
grandes poços que, em 2001, produziram 14,5% do gás total
já só representam 3% em 2003 (uma quebra de 82%).
Quando os poços se esgotam, o gás deixa de brotar. Ao
contrário do que acontece com os poços petrolíferos, que
começam por jorrar a alta pressão, mantendo, depois, um fluxo
moderado durante um longo período, até começarem a gotejar
lentamente (muitas vezes com o petróleo misturado com água), de
uma maneira muito previsível, a produção de um poço
de gás termina repentinamente, muitas vezes sem aviso. É
exactamente o que tem estado a acontecer aos poços americanos. Na
última década, as taxas individuais de depleção dos
campos têm vindo a aumentar em flecha. A única coisa que tem
ajudado a manter o nível de produção de gás tem
sido a perfuração de novos poços, embora os campos mais
recentes estejam a esgotar-se a uma velocidade particularmente alarmante,
muitos deles ao cabo de menos de um ano de exploração.
[3]
Esta situação pode ser atribuída em parte aos
melhoramentos na tecnologia de perfuração e em parte ao facto de
os campos mais recentes serem muito mais pequenos do que os anteriores.
Entretanto, a descoberta de novos campos de gás nos Estados Unidos
está a diminuir acentuadamente, tal como acontece com a descoberta de
novos campos petrolíferos em todo o mundo. A depleção dos
campos de gás americanos em terra foi tão uniforme que a
exploração foi praticamente interrompida. O único
gás que tem sido descoberto em território americano jaz por baixo
de água, nomeadamente no Golfo do México.
As reservas americanas de gás eram tão diminutas em Março
e Abril de 2003, depois de um Inverno particularmente agreste, que as
autoridades chegaram a pensar em realizar operações de triagem
para ir suspendendo o abastecimento aos utilizadores finais de uma maneira
racional, que preservasse a vida e os bens. Uma decisão destas
significaria a interrupção do abastecimento aos industriais, em
primeiro lugar, depois às centrais de energia eléctrica e, por
último, aos clientes domésticos. A teoria subjacente era de que
as pessoas sofreriam menos numa casa quente, às escuras, do que a
observar as canalizações congeladas a explodir, com as luzes
acesas. Nunca se chegou a esse ponto, mas esteve-se suficientemente perto para
atemorizar os empresários e autoridades governamentais que assistiam,
horrorizados, à situação.
A escassez de gás natural tem outras implicações
interessantes e assustadoras, como, por exemplo, o medo de as reservas de
gás diminuírem tanto que a pressão nas
canalizações baixa perigosamente. Quando a pressão nas
canalizações numa determinada cidade ou povoação
desce demasiado ou começa a flutuar, as luzes-piloto apagam-se nas
caldeiras domésticas. A maioria das pessoas não sabe como
funcionam as suas próprias caldeiras. Para pô-las a funcionar
novamente, seria necessário um exército de técnicos. Os
custos de uma operação deste tipo seriam tremendos para uma
companhia de electricidade. O que aconteceria às casas que, por alguma
razão, não tivessem tido assistência? Depois do
restabelecimento do serviço numa localidade, o gás que sai dos
esquentadores e caldeiras que ficaram ligados durante a descida de
pressão pode causar explosões quando o gás recomeça
a circular. A repressurização das condutas seria uma
operação difícil e dispendiosa, mesmo depois de repostas
as reservas.
Durante a situação que se foi criando no fim do Inverno de 2003,
o preço do gás natural duplicou, de cerca de 3 dólares por
mil pés cúbicos
[28,317 metros cúbicos]
para 6 dólares, tendo dado origem a outra consequência: muitas
empresas químicas, incluindo as fábricas que produzem adubos,
decidiram mudar-se para outros países. Era óbvio para elas que a
situação do gás natural nos Estados Unidos não iria
melhorar, e que as perspectivas a longo prazo eram sombrias para as
indústrias que usavam o gás como matéria-prima para os
seus produtos. Portanto, começaram a mudar-se para a Ásia e o
Médio Oriente.
Esta situação, que devia ter sido um aviso para os líderes
políticos e para os meios de comunicação, foi encarada
como mais uma fase aborrecida do processo de globalização.
Independentemente do que possamos pensar da agricultura industrial baseada em
produtos derivados dos combustíveis fósseis (discutirei mais
adiante, em pormenor, a desesperada necessidade de reformar a agricultura nos
Estados Unidos), a verdade é que assim produzimos o grosso dos nossos
alimentos (e de alimentos destinados a muitas pessoas noutros países) e
a perda de controlo sobre os meios básicos de produção,
antes de estarmos preparados para a mudança, pode ter
repercussões catastróficas.
O essencial é que os Estados Unidos na verdade, a América
do Norte enfrentam uma escassez crónica e crescente de gás
natural que será, mais tarde ou mais cedo, descrita como uma crise. O
Canadá enfrenta dilemas complexos. Já exporta para os Estados
Unidos dois terços da sua produção de gás que
não pára de diminuir. Sofre uma enorme pressão
política e económica para explorar as vastas extensões de
areias betuminosas, em Alberta, que conterão o equivalente a 200
milhares de milhões de barris de petróleo (ou seja, 20% do
petróleo convencional remanescente). Porém, a
transformação de areias betuminosas em petróleo não
é fácil nem barata. O alcatrão não brota do solo
como o petróleo. Extraí-lo assemelha-se mais a trabalhar numa
mina a céu aberto, e o material pegajoso, uma vez retirado, tem de ser
"lavado" com enormes quantidades de água superaquecida antes
de poder passar pela fase de refinação. O processo também
gera enormes quantidades de água subterrânea poluída. Tanto
a extracção como a lavagem requerem uma imensa quantidade de
energia, e tem-se afirmado que a exploração comercial das areias
betuminosas de Alberta gastaria 20% da produção total de
gás natural do Canadá. A longo prazo, talvez não valha a
pena gastar energia produzida pelo gás para extrair energia das areias
betuminosas. Se o petróleo extraído das areias fosse usado para
processar mais areias, o retorno seria de três barris de petróleo
por cada dois consumidos no processo. Acontece o mesmo com o petróleo de
xisto. O custo de separar o petróleo da matriz rochosa a uma escala que
valesse o esforço dificilmente justificaria a operação em
termos económicos.
Trata-se do problema clássico da economia de energia: a rendibilidade da
energia, ou seja, a relação entre a energia obtida e a energia
investida (ERoEI). A fórmula aplica-se, de uma maneira ou de outra, a
todas as categorias de combustível e a todos os procedimentos destinados
a obtê-las e a utilizá-las, e resume-se a uma lei básica,
tanto da Física como da Metafísica: é impossível
obter alguma coisa a troco de nada. Nos primeiros tempos do petróleo
convencional no Texas, o rácio ERoEI era muito favorável, cerca
de vinte para um. O petróleo jazia muito perto da superfície, em
terra seca, em lugares temperados onde era fácil trabalhar, e jorrava do
solo sob a sua própria pressão. A seguir, quando a pressão
já não era suficiente, acabava por ter de ser extraído do
solo, e o custo dessa operação reduzia um pouco a ERoEI. A
equação foi-se tornando menos favorável, à medida
que os produtores tinham, ano após ano, de extrair petróleo de
poços mais fundos em lugares mais inóspitos e menos
acessíveis, recorrendo a métodos de perfuração mais
avançados (e dispendiosos). Obter petróleo nas plataformas
offshore,
no Mar do Norte frio e tempestuoso, por exemplo, é mais caro do que
extraí-lo no solo plano do Texas, embora ainda seja economicamente
rendível. Contudo, acaba por chegar o momento em que talvez ainda seja
teoricamente possível extrair petróleo da terra (e
refiná-lo, e distribuí-lo), investindo menos energia do que a
fornecida pelo recurso, embora possa tornar-se economicamente irracional para
as grandes empresas darem-se ao trabalho de o fazer e se não
forem elas a fazê-lo, quem o fará? As empresas petrolíferas
globais usufruem das suas economias de escala devido à grande margem dos
seus lucros. São enormes organismos que se criaram para um fim
específico no âmbito de uma determinada ecologia económica.
Se algum elemento importante dessa ecologia mudar (por exemplo, a
equação básica custo/lucro), os organismos podem
extinguir-se, mesmo que ainda existam no mundo depósitos substanciais de
petróleo, de gás e de alcatrão. Avançando um pouco
mais, as equações fundamentais que apoiam todos os gigantescos
organismos económicos globais, desde as empresas petrolíferas aos
Wal-Mart e às nações, podem já não render, e
a vida humana terá de reorganizar as suas actividades numa base
diferente. Além disso, quando estes complexos sistemas e subsistemas
suspenderem as suas actividades, pode ser difícil ou mesmo
impossível reatá-las trata-se da síndroma do
Humpty-Dumpty
[NT 2]
(estou a adiantar-me um pouco, mas voltarei a esta questão do fracasso
dos sistemas mais pormenorizadamente no Capítulo 6).
Regressando ao assunto da ERoEI, a produção de gás natural
na América do Norte poderá chegar a uma situação de
inexequibilidade económica. A depleção está prestes
a acelerar acentuadamente. Não há perfuração
frenética e dispendiosa, em campos cada vez mais pequenos, capaz de
responder à procura. Ninguém correrá o mais depressa
possível para depois ficar para trás indefinidamente. Na ordem
natural das coisas, os preços em alta devido à escassez deveriam
desencadear a "destruição da procura". Porém,
porque não existem recursos energéticos capazes de realizar o
trabalho que o gás faz neste momento, precisamente da mesma maneira,
essa "destruição da procura" traduzir-se-ia na
destruição do nível de vida do povo americano. Por
exemplo, a substituição do aquecimento doméstico a
gás natural por aquecimento eléctrico deixaria muitas
famílias americanas a tiritar e falidas. As implicações
políticas são óbvias.
As actuais propostas de alargamento do abastecimento de gás são
claramente inadequadas. Um gasoduto para a região do Delta do McKenzie,
no norte do Canadá, seria dispendioso (cerca de 10 mil milhões de
dólares), levaria anos e talvez não produzisse gás
suficiente. O mesmo se aplica ao Arctic National Wildlife Refuge (ANWR), no
Alasca.
A questão essencial e central é que ou dispomos do gás que
existe no continente em que habitamos ou enfrentamos um grande problema. O
gás natural é distribuído pela América do Norte por
meio de um vasto sistema de gasodutos. Bombas de pequena dimensão
mantêm-no em movimento com um dispêndio de energia que representa
aproximadamente 0,03% do gás por cerca de 160 km. Este transporte faz-se
à temperatura do ar. O gás natural proveniente de outros
continentes tem de ser liquefeito e transportado em navios-tanque especiais,
sob a forma de um líquido superfrio e altamente pressurizado. Tudo isto
implica grandes despesas adicionais. O gás natural liquefeito (GNL)
é depois descarregado em instalações portuárias
especiais, nos países de destino, regaseificado e canalizado para
gasodutos. Os custos são tão elevados que este processo
só se torna económico no âmbito de contratos a longo prazo,
com uma duração de vinte anos e as perspectivas de
estabilidade política internacional a longo prazo pioram todos os dias,
com os países a disputarem reservas de petróleo e de gás.
As maiores reservas de gás existem justamente nos locais politicamente
mais instáveis (o Médio Oriente e a Ásia), o que é
o mesmo que dizer que estão nas piores mãos no que toca a
contratos credíveis de longa duração.
Presentemente, as importações de GNL representam menos de 2% do
gás consumido nos Estados Unidos. Entretanto, o país carece
infelizmente da infra-estrutura portuária que lhe permite receber GNL, e
as empresas de energia possuem um número muito reduzido dos dispendiosos
navios-tanque pressurizados necessários ao transporte de gás sob
esta forma. O Departamento de Energia americano propôs a
construção de, pelo menos, uma dúzia de terminais de
recepção de GNL para evitar um grave estrangulamento nos
abastecimentos, mas os acontecimentos sucedem-se mais rapidamente do que a
burocracia federal. Os Estados Unidos não terão uma década
para resolver este problema.
Vale a pena referir que os navios-tanque de GNL, altamente explosivos, dariam
excelentes alvos para ataques terroristas e que, mesmo em
condições normais de funcionamento, o transporte de gás
liquefeito é muito mais perigoso que o transporte de petróleo. As
instalações e terminais portuários são igualmente
vulneráveis a ataques e sabotagens. Por conseguinte, os problemas
políticos relacionados com a instalação de terminais de
GNL são consideráveis. Um terminal de GNL é um exemplo
clássico de LULU
[NT 3]
, capaz de provocar uma reacção NIMBY. Por último, mesmo
no caso improvável de construção expedita de um enorme
sistema de terminais de GNL e de navios-tanque, é razoável
duvidar que o povo americano pudesse fazer face ao enorme custo que implicaria
depender de GNL importado para lhe aquecer a casa e gerar electricidade. Como
afirmou repetidas vezes o especialista em energia, Matthew Simmons, "Os
Estados Unidos não têm Plano B".
A ECONOMIA DO HIDROGÉNIO
A crença generalizada de que o hidrogénio irá salvar as
sociedades tecnológicas do ajuste de contas iminente com o
petróleo e o gás talvez seja um bom indicador de como a nossa
sociedade se tornou delirante e dependente do petróleo. A ideia é
sedutora, porque o único subproduto da combustão do
hidrogénio é o vapor de água, o que parecia obviar
à maior parte dos inconvenientes causados pelo aquecimento global do
planeta e pela poluição atmosférica. Além disso, o
hidrogénio é um elemento químico superabundante. Seria
agradável, limpo e simples se todas as infra-estruturas e equipamentos
da nossa sociedade que necessitam de combustível pudessem mudar para o
hidrogénio, mas isso não vai acontecer. Alguns podem funcionar a
hidrogénio, mas não os automóveis e os camiões
americanos. A longo prazo, o hidrogénio não irá substituir
o petróleo e o gás que perdemos.
As propostas de passagem de uma economia do petróleo e do gás
para uma economia do hidrogénio estão geralmente associadas
à tecnologia da pilha de combustível
(fuel cell).
Uma pilha de combustível é, basicamente, uma peça de
plástico entre duas placas de carbono, entaladas entre outras duas
placas que actuam como eléctrodos. Essas placas possuem canais que
distribuem o combustível e o oxigénio. São modulares e
podem ser empilhadas de modo a produzir diferentes quantidades de energia. As
pilhas de combustível podem ter uma eficácia duas a três
vezes superior à de um motor de combustão interna, e não
requerem partes móveis. Numa espécie de electrólise
inversa, o hidrogénio introduzido através de uma membrana
catalítica em metal combina-se com o oxigénio para produzir vapor
de água e corrente eléctrica, que, a seguir, faz o seu trabalho.
Num automóvel alimentado a hidrogénio, por exemplo, a
electricidade proveniente da pilha de combustível faria funcionar o
motor eléctrico e poria o automóvel a andar. Contudo, devido ao
custo de produção do hidrogénio puro, a maior parte dos
actuais sistemas de células de combustível para um mercado de
massas propõem o uso de gás natural ou metanol como
combustíveis, o que produziria dióxido de carbono como qualquer
tubo de escape.
As pilhas de combustível já existem há muito tempo. Foi
Sir William Robert Grove que demonstrou o processo em 1839. Em finais dos anos
50, a NASA começou a construir um gerador eléctrico baseado em
pilhas de combustível para ser usado em missões espaciais. Os
custos não eram impeditivos. As pilhas de combustível e o
hidrogénio necessário ao seu funcionamento pesavam menos do que
as baterias, um dado importante quando se lançam no espaço cargas
a partir de foguetes. Mais tarde, quando as naves já transportavam
homens, os astronautas também podiam beber a água produzida pelas
pilhas de combustível.
Não há dúvida de que as pilhas de combustível
existem e funcionam. No entanto, a economia do hidrogénio levanta
enormes questões de grande complexidade. O problema é que o
hidrogénio não é exactamente um combustível, mas
sim um "transportador" de energia. A produção de
hidrogénio requer mais energia do que a produzida pelo próprio
hidrogénio. Por conseguinte, neste momento, a produção de
hidrogénio depende das outras fontes de energia que se conhecem, todas
problemáticas por uma razão ou outra nomeadamente o
petróleo, o gás natural, o carvão, a energia nuclear,
hidráulica, solar, da biomassa e eólica. Em certa medida, o termo
"economia do hidrogénio" é um disfarce para
"economia nuclear", porque a energia nuclear pode ser o único
recurso realista das sociedades avançadas no que toca à
produção de electricidade em grande escala, pois um sistema vasto
e actualizado de centrais nucleares poderia produzir grandes quantidades de
hidrogénio a um custo económico. Voltarei à questão
da energia nuclear mais adiante neste capítulo.
É evidente que o hidrogénio é produzido comercialmente
neste momento e tem muitos usos industriais e químicos. Porém, em
comparação com o petróleo que consumimos, a quantidade de
hidrogénio utilizada pela indústria é minúscula. A
utilização do hidrogénio como catalisador industrial ou
ingrediente químico é uma coisa bastante diferente do seu emprego
na produção de energia básica. No que respeita ao
funcionamento de centenas de milhões de automóveis, o
hidrogénio não se ajusta, como dizem os engenheiros. A quantidade
de hidrogénio necessária para pôr em funcionamento a frota
automóvel americana seria imensa e implicaria grandes perdas de energia.
Uma vez que retiramos menos energia do hidrogénio do que a energia que
gastamos a produzi-lo, qual a vantagem? A fantasia da "economia do
hidrogénio" também não responde à
questão da substituição do petróleo e do gás
no aquecimento de dezenas de milhões de casas e outros edifícios.
O hidrogénio constitui cerca de 73% de toda a matéria existente
no universo, pelo menos na parte do universo que fica próxima de
nós. No entanto, não se encontra naturalmente em estado livre
perto do planeta Terra, onde surge sempre ligado a outros elementos, formando
compostos químicos. A água, H
2
O, é o mais comum: dois átomos de hidrogénio ligados a um
átomo de oxigénio. Os hidrocarbonetos como o petróleo e o
gás natural (metano) são compostos de hidrogénio que
ocorrem naturalmente, e que podem arder e libertar energia.
Porque não tentar sintetizar petróleo e gás a partir de
grandes quantidades de hidrogénio e carbono? Porque os procedimentos
para libertar o hidrogénio e combiná-lo a seguir com o carbono
também implicariam mais energia do que a produzida pelo composto
resultante (sintetizar gasolina a partir do carvão é diferente,
porque se trata de refinar um hidrocarboneto para obter outro, embora
não deixe de ser muito dispendioso). Os hidrocarbonetos naturais
representam milénios de energia solar armazenada, recolhida por plantas
e destilada por um acidente geológico. A chama que obtemos quando
ateamos fogo a uns gramas de carvão dura uns segundos, mas essa energia
proveio, por exemplo, de um arbusto Pré-histórico que absorveu
luz solar durante nove anos (os cem anos que durou a civilização
movida a petróleo não são nada quando comparados com o
tempo geológico). O petróleo e o gás não são
renováveis, e as suas reservas são limitadas. Não podemos
fabricá-los artificialmente a partir de hidrogénio e carbono sem
despender uma energia que excederia o valor em combustível dos
hidrocarbonetos assim produzidos. O dilema é esse. No que toca à
poluição, os procedimentos utilizados para sintetizar metano (CH
4
) a partir do carvão, e metanol (CH
3
OH) a partir do petróleo e da biomassa produzem mais dióxido de
carbono do que o produzido se os precursores dos hidrocarbonetos ardessem por
si, razão pela qual a qualidade do ar não retiraria qualquer
benefício.
A água, por seu lado, não é combustível. É
necessária muita energia para libertar os átomos de
hidrogénio combustíveis dos átomos de oxigénio. A
electrólise é um dos métodos. Pode fazer-se passar uma
corrente eléctrica por um recipiente contendo água e atrair
separadamente os gases "soltos", com base no facto de o
hidrogénio ser muito mais leve do que o oxigénio (tem menos
protões, neutrões e electrões) e se elevar no recipiente.
A electricidade necessária a este processo terá de ser gerada
utilizando-se outro combustível. Outra maneira de obter
hidrogénio é superaquecer água para "lavar" o
gás natural a uma pressão muito elevada, o que
"arranca" os átomos de hidrogénio. Como é
evidente, este processo pressupõe a existência de reservas
abundantes de gás natural para serem usadas como matéria-prima, o
que talvez seja pedir muito. Além de que seria necessária muita
energia para superaquecer a água. Estes processos de
"libertação" de hidrogénio estão sempre
associados a uma perda líquida de energia. Nestes diversos processos, a
proporção mediana da ERoEI é de cerca de 1 para 1,4
isto é, obtém-se uma unidade de energia por cada 1,4 unidades
investidas. Perde-se energia com todos eles. Comparemo-los com a ERoEI de 20
para 1 registada nos anos 30 para o petróleo texano, e logo vemos por
que motivo o petróleo foi uma bênção.
Existem ainda mais problemas no que toca ao hidrogénio como substituto
dos combustíveis de hidrocarbonetos que utilizamos actualmente para
fazer funcionar uma civilização industrial. Os problemas
têm a ver com o armazenamento e transporte. A densidade extremamente
baixa do hidrogénio, dado o seu baixo peso atómico, significa que
ocupa muito espaço. Nos automóveis, tem de ser comprimido e
armazenado em tanques de alta pressão. O depósito de
"combustível" ocuparia a maior parte do espaço do
automóvel. A compressão do gás também implica muita
energia, um custo adicional. Para fabricar um automóvel com
fuel cell
da mesma gama que um automóvel a gasolina dos nossos dias, com um
espaço semelhante para os passageiros, seria necessário armazenar
o hidrogénio a 10 000 psi (libras por polegada quadrada)
[689,48 bar]
, ou seja, a uma pressão muitíssimo elevada. Pode ser feito,
usando fibras de carbono ultrafortes para reforçar os depósitos.
Até é possível que um depósito desses sobrevivesse
a um acidente a grande velocidade. A questão reside em saber se as
tubagens mais delicadas aguentariam. Se não aguentassem, o
hidrogénio sob uma pressão extremamente elevada
escapar-se-ia rapidamente. O hidrogénio é extremamente
inflamável. As misturas de hidrogénio e ar entram em
combustão numa ampla gama de concentrações que vai de 4% a
75%, e, para as detonar, basta uma pequeníssima quantidade de energia,
um décimo inferior à energia necessária à
ignição de uma mistura de ar e gasolina. Como o hidrogénio
produz um calor considerável no momento da descompressão, poderia
auto-incendiar-se num acidente, quando o gás jorrasse do depósito
pelas válvulas danificadas.
Em matéria de depósitos, o hidrogénio apresenta ainda
outros dois problemas. Difunde-se com facilidade, ou seja, escapa-se. Devido ao
seu peso atómico extremamente baixo, pode escapar-se por
orifícios muito pequenos. É muito difícil de conter.
Além disso, também é extremamente corrosivo. Tende a
combinar-se com outros elementos e compostos. O interior dos depósitos,
das tubagens, das válvulas e das juntas estaria sujeito a uma
desintegração muito mais rápida do que no caso dos gases
como o metano. Por outro lado, ao contrário da gasolina, que, à
temperatura do ar, é um líquido, os gases comprimidos são
difíceis de transferir de um recipiente para outro. Retirar
hidrogénio de tanques fixos de abastecimento para o depósito do
automóvel implicaria um consumo adicional de energia.
Outro tipo de preocupações relaciona-se com o transporte do
hidrogénio para uma infra-estrutura de postos de abastecimento de
"combustível" semelhante à que os Estados Unidos
desenvolveram para apoiar o seu actual sistema de condução
automóvel. A gasolina é distribuída às
estações por camiões com tanques despressurizados. O
hidrogénio líquido teria de ser transportado em tanques a uma
pressão elevadíssima. Um camião-cisterna de 40 toneladas
destina-se a transportar cerca de 25 toneladas de gasolina. Como o
hidrogénio é mais leve, um camião com dimensões
comparáveis só poderia transportar cerca de meia tonelada de
hidrogénio. A comparação entre o consumo de energia do
camião e o valor energético da sua carga faria com que o
hidrogénio não fosse rendível a praticamente nenhuma
distância.
Bossel e Eliasson escrevem:
Um posto de abastecimento de gasolina de média dimensão, numa
qualquer auto-estrada frequentada, vende com facilidade 25 toneladas de
combustível por dia, combustível esse que pode ser transportado
num camião-cisterna de 40 toneladas. No entanto, seriam
necessários 21 camiões de hidrogénio para fornecer a mesma
quantidade de energia ao posto, isto é, para fornecer combustível
a um mesmo número de carros por dia. Veículos eficazes equipados
com células de combustível reduziriam estes números, mas
não consideravelmente. A transferência do hidrogénio
pressurizado do camião para o posto de abastecimento levaria muito mais
tempo do que a transferência da gasolina do camião para um tanque
subterrâneo de armazenamento. O posto de abastecimento poderia ter de
encerrar a actividade durante algumas horas por dia, por uma questão de
segurança. Hoje, cerca de um em cada cem camiões transporta
gasolina ou gasóleo. Dos camiões que andam na estrada, 21 entre
120 (ou seja, 17%) transportam hidrogénio. Dos acidentes com
camiões, um entre seis envolveria um camião de transporte de
hidrogénio. Este cenário é inaceitável por motivos
políticos e sociais.
[4]
A construção de gasodutos para distribuir hidrogénio pelos
Estados Unidos apresentaria mais problemas. O sistema existente,
construído para o gás natural, não pode ser utilizado.
É composto por tubagens que não são suficientemente
largas, dada a densidade extremamente baixa do hidrogénio. O
hidrogénio corroeria as juntas e destruiria a lubrificação
nas bombas que são necessárias para manter o gás em
movimento nas condutas, a intervalos regulares, ao longo de centenas de
quilómetros. A sua tendência para se difundir resultaria em taxas
de fugas inaceitáveis. Em suma, a rede existente de gasodutos teria de
ser completamente reconstruída, em paralelo, para o hidrogénio,
com um custo de milhares de milhões de dólares, partindo-se do
princípio de que os outros problemas técnicos seriam
ultrapassados. É improvável que tal venha a acontecer.
Além disso, seria necessário adaptar as infra-estruturas de todos
os postos de venda de combustíveis dos Estados Unidos.
Tudo isto aponta para a impossibilidade, em quaisquer circunstâncias
plausíveis actualmente conhecidas, de substituir um sistema baseado no
petróleo por um sistema de automóveis movidos a
hidrogénio, bem como toda a sua infra-estrutura de apoio. Sem postos de
combustível por toda a parte e métodos de abastecimento
racionais, tanto em termos económicos como logísticos, não
há bases para um sistema deste tipo. Esta afirmação
sublinha a natureza muito especial do petróleo e a originalidade dos
sistemas que concebemos para funcionarem com base nele. Também possui
implicações sociais poderosas. Por exemplo, se o sistema de
transporte pessoal baseado no hidrogénio, e nas células de
combustível, não for democraticamente acessível às
grandes massas, como foi o sistema baseado no petróleo, como poderemos
acalentar a expectativa de que será politicamente aceitável?
É verdade que já se demonstrou que é possível
construir um automóvel com células de combustível, pelo
menos um protótipo dispendioso. E se só for possível
produzi-lo em massa por um preço que o inclua nos automóveis de
luxo para pessoas comuns? E se esses carros não puderem ser vendidos por
menos de 80 000 dólares (a preços de 2005)? Isso significaria
que uma parte substancial da população não poderia
continuar a conduzir, colocando problemas a uma sociedade na qual os
automóveis se tornaram quase obrigatórios para as actividades
normais da vida quotidiana.
Quanto mais analisamos os pormenores da "economia do
hidrogénio", mais ela nos parece uma fantasia risível.
Porém, é instrutiva ao revelar os limites do nosso pensamento,
como, por exemplo, a nossa cegueira em relação a outras
soluções para a extrema dependência dos automóveis
que atinge os Estados Unidos, na próxima crise petrolífera que se
tornará permanente. Em vez de tentar-se descobrir um novo
combustível para manter os subúrbios, seria muito mais
saudável e inteligente se os americanos vivessem em comunidades
tradicionais servidas por transportes públicos. Contudo, a psicologia do
investimento anterior, agravada pela nossa mitologia nacional do individualismo
e da vida no campo, tem impedido os americanos comuns de pensarem nesta
alternativa. Investimos tanto dinheiro nos subúrbios e nos seus
acessórios que não nos podemos dar ao luxo de nos imaginarmos a
abdicar deles. E o feixe paradoxal de ideias que associam a natureza
libertadora das intermináveis viagens de automóvel à
atracção de uma casa na paisagem rural (o Sonho Americano) exerce
ainda uma pressão tremenda na nossa capacidade de sonhar com outras
maneiras de viver. Os americanos que se deslocam à Europa com
regularidade, e que apreciam a vida das cidades europeias onde se anda a
pé e de transportes públicos, também votam regularmente
contra as propostas de edifícios com grande densidade habitacional
quando regressam a Minneapolis e a Nashville.
A conclusão de tudo isto é que não vai haver uma
"economia do hidrogénio". Podemos usá-lo para alguns
fins, e continuar a fabricar produtos químicos com hidrogénio
para comercializar. Uma infra-estrutura nuclear ampliada poderá baixar o
custo do fabrico de hidrogénio por electrólise. Mas não
é com hidrogénio que vamos manter cidades como Hackensack, na
Nova Jérsia, ou Anaheim, na Califórnia. Não vamos
substituir a actual frota de automóveis e camiões por
veículos movidos a hidrogénio. E, na eventualidade de ocorrerem
avanços tecnológicos miraculosos que alterem as leis da
Termodinâmica, permitindo que se fabrique hidrogénio tão
barato como o foi o petróleo texano, iremos ter, mesmo assim, uma Longa
Emergência, desde o momento presente até à
concretização desse futuro cor-de-rosa.
CARVÃO
O carvão foi o combustível que desencadeou a
revolução industrial. Na Inglaterra, começou por ser
retirado de poços superficiais e por ser encontrado no litoral, em
sítios onde as ondas tinham arrancado veios dos penhascos. Era
difícil recolhê-lo em grandes quantidades e mais fácil
abater árvores, quando as pessoas as possuíam. O carvão
tendia a ser utilizado pelos pobres sem terra, que não podiam comprar
madeira. Era considerado inferior à madeira para efeitos de aquecimento
e confecção de alimentos, devido ao fumo e odor que libertava.
Ainda não tinham sido inventados os fogões e lareiras que
permitiriam usá-lo com conforto. Contudo, quando o abastecimento de
madeira na Inglaterra começou a diminuir gravemente no século
XVIII, tanto os ricos como os pobres passaram a ter menos escolha e a recorrer
cada vez mais ao carvão. As características superiores do
carvão em matéria de produção de energia só
começaram a ter importância quando a madeira se tornou
relativamente escassa e o equipamento de queima melhorou.
À medida que o carvão se foi tornando um bem
indispensável, passou a valer a pena extraí-lo do solo e
transaccioná-lo comercialmente. Os poços de carvão
transformaram-se em minas; frequentemente as minas ficavam inundadas. A
necessidade de extrair água das minas de carvão não tardou
a provocar o desenvolvimento de bombas movidas a vapor, utilizando o
carvão como combustível, que desembocaram rapidamente nas
máquinas a vapor capazes de mover barcos, locomotivas e maquinaria
industrial a Inglaterra estava lançada, tal como os Estados
Unidos, pouco depois. O carvão era sujo e altamente poluente, mas
realizava tanto trabalho que a poluição passou a ser tolerada
como um custo a pagar pelas comodidades da civilização. Apesar
dos "nevoeiros", maioritariamente compostos por fumo proveniente da
queima do carvão, não houve em Londres qualquer movimento popular
para pôr fim à utilização do mesmo. No século
XX, contudo, o carvão começou a ser eliminado progressivamente
nos locais onde havia petróleo à disposição. O
petróleo era mais fácil de extrair, sobretudo nos primeiros
tempos, e muito mais versátil do que o carvão. Na história
industrial, a América liderou este capítulo, porque os Estados
Unidos possuíam muito petróleo no seu território, em
locais de onde era fácil extraí-lo, e desenvolveram essa
indústria a uma escala gigantesca, antes de qualquer outro país.
Neste momento em que o petróleo se encaminha para a
depleção no século XXI, é provável que o
carvão esteja de volta. Presentemente, a maior parte do carvão
utilizado nos Estados Unidos é consumido em centrais destinadas a gerar
electricidade. O carvão produz um quarto da electricidade dos Estados
Unidos. Em 2004, estávamos a consumir cerca de mil milhões de
toneladas por ano. A melhor utilização do carvão é
nas turbinas fixas, usadas nas centrais geradoras de electricidade.
Historicamente, o carvão foi o primeiro combustível empregue no
moderno aquecimento central das casas americanas, e poderá ter de voltar
a ser usado para o mesmo fim, embora num país acostumado a caldeiras a
gás, limpas, sem problemas e praticamente automáticas, o regresso
ao carvão possa significar uma marcada falta de conforto. Na sua forma
sólida normal, o carvão é, obviamente, inadequado ao outro
importante sorvedouro de energia, o automóvel.
Podíamos fazer funcionar locomotivas com motores a vapor alimentados a
carvão, e talvez tenhamos de recorrer a isso, mas faria mais sentido
produzir electricidade para mover os comboios, quanto mais não fosse por
causa da poluição e dos resíduos sólidos.
Actualmente, grande parte da expectativa em torno do carvão emana da
indústria mineira. Segundo ela, resta-nos muito carvão, o
suficiente para centenas de anos. Ver-se-á. Já extraímos
grande parte do carvão da melhor qualidade, mais próximo da
superfície e mais fácil de retirar. Grande parte do que resta
pode ser tão difícil de extrair que não valerá a
pena gastar energia para esse fim. Com efeito, existe uma grande disparidade de
opiniões acerca da quantidade de carvão que conseguiremos
realmente usar. Não duvido de que teremos, em certa medida, de recorrer
ao carvão, quando os problemas relacionados com a escassez de
petróleo e de gás nos baterem realmente à porta, mas
não vai ser barato, a qualidade poderá não ser muito boa,
não vai durar assim tanto nem vai ser tão eficaz como o
gás e o petróleo. Tudo dependerá, em parte, do que
decidirmos fazer da energia nuclear. Se não for possível
ultrapassar as objecções a esta forma de energia, o carvão
será o candidato lógico para gerar o grosso da nossa
electricidade, pelo menos por enquanto, se queremos manter as luzes acesas.
A combustão do carvão continua a ser ainda a maior fonte de
poluição atmosférica tóxica no país,
constituindo, provavelmente, um contributo significativo para o aquecimento
global. O carvão em combustão produz uma grande quantidade de
resíduos sólidos, entre 5
a 20% do seu volume original. Uma única central eléctrica
alimentada a carvão pode produzir mais de um milhão de toneladas
de resíduos sólidos por ano. O carvão é
responsável por 60% das partículas emitidas (os automóveis
e os camiões produzem grande parte dos restantes 40%). O carvão
está implicado na poluição por mercúrio que, todos
os anos nos Estados Unidos, causa 60 mil casos de lesões cerebrais em
recém-nascidos. O carvão está associado à asma. As
centrais energéticas alimentadas a carvão são as
principais responsáveis pela chuva ácida. É
possível que seja este o preço que os americanos estão
dispostos a pagar para virem a usufruir de elevados níveis de consumo de
electricidade. Sem dúvida que é possível limpar as
emissões das centrais energéticas alimentadas a carvão,
mas isso tornará a electricidade mais dispendiosa, e o desejo
político de uma indústria mais limpa pode não existir numa
economia mais austera. Seja como for, mesmo que os metais pesados e as
partículas sejam retirados das emissões, o carvão
continuará a produzir grandes quantidades de dióxido de carbono,
o principal suspeito no aquecimento global. A administração Bush,
em 2003, adoptou padrões mais permissivos em matéria de
poluição para a indústria da energia.
[5]
A extracção do carvão também causa uma grande
destruição na paisagem e nos
habitats
. A exploração mineração superficial e a céu
aberto, que presentemente é o método mais comum, nivela as
topografias regionais e envenena os lençóis freáticos a
uma velocidade prodigiosa. Recorrer ao carvão como principal fonte de
energia seria um enorme passo atrás no progresso da humanidade. Isto
não quer dizer que não venha a acontecer. A Idade Média,
uma época de trevas, também representou um retrocesso após
as realizações da Roma clássica, mas ainda assim
aconteceu. O que enfrentamos talvez não seja exactamente uma
época de trevas, mas antes de pouca luz.
ENERGIA HIDROELÉCTRICA
A energia hidroeléctrica significa electricidade gerada pela energia
hidráulica, envolvendo geralmente locais em rios onde a água em
movimento pode ser dirigida para turbinas giratórias que activam um
gerador a fim de produzir electricidade, ou em reservatórios por
trás de barragens, onde a água de um rio cuja corrente é
variável ou sazonal se transforma num fluxo constante e regular.
Também é possível produzir energia eléctrica a
partir do movimento das ondas, embora seja mais difícil e dispendioso e
só levado a cabo em grande escala.
A energia hidroeléctrica é importante. É um dos
métodos mais antigos, mais testados e mais fiáveis de produzir
electricidade. Não produz dióxido de carbono, embora a
manufactura dos seus componentes seja poluente. A última
geração de turbinas possui uma eficiência energética
superior a 90%. Temos vindo a usar energia hidroeléctrica nos Estados
Unidos desde que se inaugurou a primeira estação geradora, no rio
Fox, em Appleton (Wisconsin), em 1882. Presentemente, 10% da electricidade dos
Estados Unidos provém da energia hidráulica, em
comparação com os 40% de 1940. A energia hidráulica
é bem conhecida e bastante fiável. A escala a que pode ser
utilizada varia entre um microgerador num ribeiro, que serve uma única
habitação, até à barragem do Hoover, que ilumina
várias cidades. A energia hidroeléctrica é produzida em
cerca de 2 200 locais reconhecidos pela Federal Energy Regulatory Commission.
Os Estados Unidos têm explorado todos os locais de grandes
dimensões nos seus maiores rios. São problemáticos, porque
o solo e outros materiais arrastados pelos rios se depositam por detrás
das barragens, acabando por torná-las inoperantes. Quase todas as
principais barragens americanas têm menos de cem anos, e todas têm
problemas de sedimentação. Nos Estados Unidos, os grandes
reservatórios perdem capacidade de armazenamento a uma média de
0,2% por ano, com variações regionais da ordem dos 0,5% por ano
nos estados do Pacífico até apenas 0,1% nos reservatórios
do Nordeste. Muitos destes reservatórios ainda possuem uma vida
útil de um século ou mais. Mas não estamos a construir
grandes barragens novas, e a capacidade geradora total não
aumentará muito. O Departamento de Energia americano (DOE) identificou 5
677 locais nos Estados Unidos com uma capacidade por instalar de cerca de 30
000 megawatts (MW), em comparação com os 80 000 MW das centrais
hidroeléctricas actualmente existentes no país. Quase todos estes
locais se situam em ribeiros ou riachos. Na verdade, são boas
notícias, porque, num país onde os recursos petrolíferos e
de gás natural estão a diminuir, tal como o dinheiro que o
governo tem para investir, os projectos futuros terão necessariamente de
ser a uma escala mais pequena. Os pequenos projectos também são
concebidos para servir as localidades onde se desenvolvem, o que será
bom, numa sociedade que, pela força das circunstâncias,
terá de ter uma orientação muito mais local.
Nem todas as regiões dos Estados Unidos são igualmente dotadas de
cursos de água. As que os possuem terão sorte. A zona onde vivo,
a leste da parte norte do estado de Nova Iorque, por exemplo, um terreno
acidentado sulcado por ribeiros que correm velozmente, desaguando no rio
Hudson, está carregada de pequenas centrais hidroeléctricas
desactivadas. Estas instalações foram construídas na
primeira metade do século XX por produtores de energia independentes
para iluminar as povoações locais, e deixaram de prestar
serviços depois da Segunda Guerra Mundial, quando as maiores empresas do
sector se transformaram em gigantes. As grandes empresas, como a Niagara
Mohawk, não se deram ao trabalho de manter as pequenas centrais, que
foram fechadas e cujo equipamento foi vendido ao desbarato. Nos últimos
anos, alguns dos edifícios vazios foram convertidos em casas de
habitação. Durante a Longa Emergência, terão de ser
reconvertidos em centrais hidroeléctricas.
Se a estimativa do DOE estiver correcta, os Estados Unidos poderiam aumentar
rapidamente a sua capacidade hidroeléctrica em cerca de 50% do
nível actual. Como a energia hidroeléctrica representa apenas 10%
da electricidade total gerada nos Estados Unidos, ganharíamos o
equivalente a aproximadamente 5% do consumo total actual, se todos os locais
possíveis se tornassem operacionais. A estimativa inclui locais que
poderiam ser considerados ambientalmente sensíveis, pelo que alguns
nunca seriam explorados. A energia hidroeléctrica é boa, mas a
sua utilização ao máximo só parcialmente
compensaria as iminentes perdas de gás natural. A energia
hidroeléctrica também coloca uma questão fundamental que
discutirei mais pormenorizadamente: seremos capazes de construir as centrais e
fabricar o equipamento de que necessitamos sem dispor de combustível
fóssil barato?
Generalizou-se a ideia de que o nosso sistema nacional de
distribuição regional interdependente está num estado
perigosamente decrépito, evidenciado pelo grande
"apagão" regional de 2003, que interrompeu o fornecimento de
electricidade desde Nova Iorque até Detroit. As próprias
companhias de electricidade parecem apontar para uma grande mudança nos
sistemas a que chamam "geração distribuída", o
que significa que as pessoas obterão energia mais perto de casa.
O problema está em que as grandes companhias estão longe de saber
como é que essa mudança se pode concretizar. Nos anos 90, houve
uma grande excitação em torno do desenvolvimento de geradores
domésticos com
fuel cell.
Essas unidades, do tamanho de um frigorífico, iriam gerar toda a
corrente eléctrica de uma casa por intermédio das pilhas de
combustível. As linhas de alta tensão deixariam de ser
necessárias. Um dos pontos fracos da teoria consistia no facto de as
pilhas de combustível necessitarem de gás natural, um bem
presentemente escasso. Outro ponto fraco era a investigação e
desenvolvimento realizada por diversas empresas e liderada pela General
Electric não ter sido capaz de conceber uma unidade geradora
doméstica acessível em termos de preço. Por conseguinte, a
"geração distribuída" deu, para já, em
nada. Em consequência, os gigantescos sistemas regionais, com as suas
longas filas de torres, linhas de alta tensão e
subestações, não estão a ser mantidos porque as
empresas ainda estão a apostar na possibilidade de se tornarem obsoletos
e quanto mais cedo melhor. Não tardará a chegar o momento
crítico em que o equipamento deixará de poder ser reparado, e,
durante a Longa Emergência, não disporemos certamente de recursos
financeiros para substitui-lo. Depois disso, é possível que toda
a energia eléctrica tenha de ser local, e algumas localidades
terão mais sorte que outras.
ENERGIA SOLAR E EÓLICA
Em geral, designamos por energia solar tanto as técnicas de
construção
passivas
que permitem que os edifícios captem a luz solar sob a forma de calor ou
luz, como a conversão
activa
da radiação solar em electricidade utilizável por
células fotovoltaicas. Na sua acepção mais profunda,
"solar" também se poderia aplicar aos combustíveis
fósseis, que representam eternidades de energia solar armazenada em
compostos de hidrocarbonetos, e aos combustíveis de todos os dias, como
a lenha e o estrume de vaca, que devem a sua existência à luz
solar. Porém, nesta análise, refiro-me às duas primeiras
acepções.
A energia solar passiva é considerável. Construímos uma
coisa bem e ela está sempre a recompensar-nos do investimento,
devolvendo-o sob a forma de conforto. A arquitectura pré-modernista foi
concebida para aproveitar a luz solar para o aquecimento e
iluminação dos edifícios (e as brisas, que também
são produzidas pela acção solar no ar, para o
arrefecimento). O desenvolvimento dessas técnicas tradicionais foi uma
acumulação lenta e dolorosa de experiências ao longo de
séculos. Foi a abundância anómala de petróleo e
gás baratos na nossa época que permitiu aos construtores, e
sobretudo aos arquitectos, preocupados com questões de estilo,
afastarem-se das práticas tradicionais que tiravam partido da energia
solar passiva. O século XX foi a era das
curtain walls
[NT 4]
em vidro nos prédios de escritórios, das janelas que não
abriam (ou que não existiam), das fachadas em titânio e de outras
façanhas da moda destinadas a decorar os edifícios para proclamar
o génio ousado e criativo de quem os concebia. Este comportamento
narcisista só foi possível numa sociedade com uma energia barata,
na qual pouco mais importava na arquitectura do que a moda e o estatuto
associados a um lugar de vanguarda. Num museu concebido por Frank Gehry, pouco
importava que entrasse ar ou luz, porque era para isso que serviam o ar
condicionado e os focos de halogéneo. O que importava era que a cidade
fosse abençoada com um objecto da moda criado por um xamã
célebre. Ora, nada está mais sujeito a desvalorizar-se por deixar
de estar na moda do que uma coisa que só é valorizada por ser
moderna.
No que respeita às casas, o processo foi um pouco diferente, quanto mais
não fosse porque as massas detestavam abertamente a arquitectura de
vanguarda e continuavam a preferir casas com um aspecto tradicional. A manha
estava no facto de só exteriormente parecerem tradicionais. Noutros
aspectos, eram realmente muito experimentais, sobretudo no que toca aos
materiais de construção e à orientação em
relação aos elementos naturais. Materiais de
construção como os painéis de revestimento em poliestireno
(marca Dryvit) criaram todos os tipos de problemas (condensação e
apodrecimento). Os construtores não prestavam atenção
às diferenças regionais. Construía-se exactamente o mesmo
modelo em San Diego ou em Rochester, Nova Iorque, sem ter em conta as
variações climáticas, porque a electricidade barata
compensava as diferenças. A fealdade que invadia a paisagem nos Estados
Unidos decorria de uma enorme homogeneidade que se ia tornando visível.
Sobretudo nos estados do Sudeste, as casas do pós-guerra dispensaram
todas as características arquitectónicas tradicionais destinadas
a amenizar o desconforto do clima (varandas, tectos altos, janelas com
bandeiras), e o resultado foi uma espécie de
bunkers
terrivelmente feios, equipados com ar condicionado, literalmente isolados dos
ambientes que os cercavam.
Não temos de chegar a extremos para tirar partido da energia solar
passiva. Construí uma cabana de madeira concebida para absorver a luz
solar durante o dia e armazená-la numa laje de cimento. Em termos de
eficiência energética, não era um sólido
esforço de construção. Contudo, era capaz de manter toda a
habitação confortavelmente quente num dia de Inverno, se
acendesse um pequeno fogão a lenha de manhã, que só era
necessário voltar a acender à noite. A conta do aquecimento era
baixíssima. A manutenção não exigia muito
esforço sete minutos por dia para cortar alguma lenha e mais
cinco para acender o fogão. Há que contar ainda com uma tarde por
ano, passada a empilhar lenha que me era levada por um camião. A casa
nem sequer tinha um aspecto esquisito, como acontecia, nessa época, com
as casas todas "produzidas" que aproveitavam energia solar. Em
contrapartida, em termos de utilização mínima da energia
solar passiva, os modelos da indústria de construção dos
últimos anos têm sido ridículos. A típica
"McMansion", ou casarão erigido num lote de 0,5 meio acre
[2023,4 m2],
com a sua "entrada de escritório de advogado" e a sua enorme
sala, é um sorvedouro de energia, e é possível que muitas
delas se tornem inabitáveis na era próxima de austeridade
energética. Foram concebidas com base na pressuposição de
que o gás natural seria sempre barato e abundante.
Com efeito, a habitação independente unifamiliar poderá
ter um destino trágico nos próximos anos. Há
gerações que esta maneira de viver tem sido a norma nos Estados
Unidos, mas nem sempre foi assim. A habitação unifamiliar num
lote dos subúrbios depende inteiramente da energia barata e da
vasta classe média que a energia barata tornou possível.
Até ao século XX, as habitações independentes em
ambientes rurais eram casas de quinta, casas de campo ou casebres de
camponeses. As pessoas que viviam no campo tinham um modo de vida rural,
geralmente ligado à produção de alimentos. As pessoas que
trabalhavam no comércio, nos serviços e na indústria
viviam nas cidades, e, em comparação com os dias de hoje, os
proprietários de casas eram muito menos. No meu entender, iremos
regressar a esse estado. A habitação unifamiliar suburbana do
século XX, isolada no seu meio circundante, depressa se tornará
obsoleta. Na era próxima de austeridade energética, as normas
habitacionais terão de ser mais tradicionais e integradas no seu meio.
Como teremos de produzir mais alimentos perto dos locais onde habitamos, a
terra será valorizada mais em termos de agricultura do que de
habitação para pessoas que todos os dias percorrem longas
distâncias para ir trabalhar. Esta profunda mudança de valores
restabelecerá a distinção entre a vida no campo e a vida
na cidade, com tipologias de construção apropriadas, que
implicarão, certamente, um regresso às técnicas de
construção que aproveitam a energia solar passiva.
A energia solar activa, ou seja a utilização da luz do sol para
gerar electricidade, é outra questão. Dispomos de tecnologia
comprovada. Funciona, mas não tão bem como os modos de gerar
energia a partir de combustíveis fósseis. Não estou certo
de que a energia eléctrica solar possa continuar a existir fora das
fronteiras amistosas de uma economia baseada nos combustíveis
fósseis. Sabemos produzir células fotovoltaicas com
silício, plástico e metal, e sabemos fabricar baterias com
plástico e chumbo, e sabemos construir aparelhos de controlo de carga,
inversores e outros dispositivos para regular o armazenamento e fluxo da
electricidade, mas será que seremos capazes de fabricá-los no
futuro, sem petróleo, gás ou carvão? Talvez não.
Para fabricar baterias de longa duração e painéis solares,
precisamos de muita energia, de muitos barris de petróleo, e para
produzir em massa todos os componentes e estandardizar o seu rendimento,
necessitamos de uma plataforma de sistemas avançados, desde a metalurgia
à indústria de plásticos. Não estou convencido de
que esta energia solar activa possa ser mais do que um substituto
temporário durante a Longa Emergência que se seguirá
à era dos combustíveis fósseis.
Há quatro anos que mantenho um modesto sistema eléctrico solar
numa casa de férias isolada, nos Adirondacks. Estamos muito longe da
rede eléctrica nacional, não podendo recorrer a quaisquer linhas
de alta tensão dos serviços públicos. Temos quatro
painéis solares de 50 watts, que alimentam uma bateria de longa
duração com seis pilhas ligada a um inversor de 2 400 watts, que
transforma a corrente contínua proveniente das baterias na corrente
alterna dos vulgares electrodomésticos. O sistema foi concebido para
movimentar uma bomba eléctrica de corrente alterna, com 1/2
cavalo-vapor, que retira água do lago para um tanque de ar comprimido. A
bomba funciona durante dois a três minutos por dia. Não usamos
tanta água. Além disso, o sistema fornece energia a um computador
portátil, a uma pequena aparelhagem estéreo e a meia dúzia
de lâmpadas fluorescentes (que nunca estão todas acesas ao mesmo
tempo, mas que são usadas em tarefas como ler e lavar a loiça).
Não temos frigorífico, porque os frigoríficos costumam
consumir demasiada electricidade. Durante uns tempos, tivemos um
frigorífico a gás propano, mas era antiquado e ineficaz. Neste
momento, portanto, recorremos a sacos de gelo industrial que trazemos connosco.
O sistema eléctrico é jeitoso mas muito delicado. As baterias
têm de ser tratadas com todo o desvelo. Tenho de verificá-las uma
vez por mês com um hidrómetro manual, para me assegurar de que
estão a carregar como deve ser. É uma tarefa suja e um pouco
perigosa porque o líquido dentro da bateria é ácido
sulfúrico. Tenho de usar óculos para proteger-me de espirros e
salpicos. Durante a operação, tenho de deitar água
destilada em cada pilha, se necessário.
O sistema funcionou muito bem nos dois primeiros anos. Usávamos toda a
energia que queríamos dentro de certos limites, paranóicos, de
não exagerar. Tínhamos muita água e tomávamos duche
quente uma amabilidade do esquentador a gás propano
ouvíamos
rock and roll
e acendíamos as luzes depois de escurecer. Contudo, no Verão de
2003, houve um período anormal de cerca de seis semanas sem um
único dia completo de sol e com muitos dias de chuva. O sítio
onde temos a casa está longe de ser ideal, pois fica numa colina virada
a oeste, e, mesmo nos melhores dias, a luz solar directa só atinge o
painel depois das 12:30 h. Portanto, em meados de Julho, depois de uma semana
inteira de chuva, as baterias não tinham carga suficiente para
movimentar a bomba. O sistema manteve-se inactivo durante toda a semana.
Desliguei o inversor, que consome electricidade só por estar ligado, e
esperei que o sol voltasse a aparecer durante vários dias seguidos.
Entretanto, passamos sem água corrente, sem electricidade, sem
rock and roll
e sem computador.
O sistema custou cerca de 3 000 dólares em 2001. Se estivéssemos
ligados à rede, não teríamos gasto essa quantia em
electricidade aos preços actuais em trinta verões (na verdade,
durante o resto da minha vida). Não o adquirimos para poupar dinheiro.
Adquirimo-lo porque era a única maneira de termos electricidade na nossa
casa de Verão. Como disse, trata-se de um sistema muito modesto. Se
tivéssemos de manter uma normal casa americana isto é, um
frigorífico, um secador de roupa (outro demoníaco sorvedouro de
energia), televisões, computadores, etc. , necessitaríamos
de uma bateria com cerca de vinte e quatro pilhas, alimentada por dezasseis
painéis solares. Só o equipamento custaria cerca de 20 000
dólares, sem contar com a instalação. O tempo
necessário para verificar e manter as baterias seria obviamente maior, e
as baterias estragam-se. Mesmo com uma manutenção cuidadosa,
poderiam ter de ser mudadas de dez em dez anos, custando milhares de
dólares. Os painéis solares durariam um pouco mais que as
baterias, mas mesmo estes estão sujeitos aos raios ultravioletas e
à exposição à água e ao gelo. É
evidente que, em certas regiões do país, a luz solar sazonal
limitada talvez permitisse apenas uma utilização marginal deste
tipo de energia, mesmo que não houvesse alternativa.
É possível que venham a ser concebidas melhores baterias e pilhas
solares mais eficazes. Até ao momento, no entanto, o problema da bateria
tem sido particularmente frustrante. A tecnologia não mudou assim tanto
nos últimos cem anos. As pilhas líquidas de ácido e chumbo
do meu sistema solar eléctrico de 2001 não são
substancialmente diferentes da bateria de um
Oldsmobile
de 1912, e, embora os investigadores se tenham esforçado arduamente nos
últimos anos por melhorar esta tecnologia, o seu trabalho só
produziu aperfeiçoamentos modestos. As baterias de lítio, por
exemplo, funcionam bem nos portáteis e dispositivos LED, mas, até
ao momento não têm sido uma opção económica
para os sistemas domésticos de energia solar. Trata-se de uma das
principais razões para o fracasso dos automóveis
eléctricos na última década: não foi
possível melhorar as baterias, tornando-as significativamente menos
volumosas ou mais leves, nem aumentar a extensão do percurso entre as
cargas. Além disso, os automóveis eléctricos teriam um
preço de base 30% superior ao dos modelos comparáveis a gasolina,
sendo que as baterias teriam de ser substituídas ao cabo de poucos anos,
por muitos milhares de dólares. Estes problemas fizeram esquecer os
automóveis eléctricos. A verdade é que não se
desenvolveram na expectativa de uma escassez de petróleo, mas sim para
atenuar o problema da poluição do ar. Em 2001, a
Califórnia legislou no sentido de, em 2003, 10% de todos os carros
vendidos no estado serem veículos de baixa emissão. Em 2003,
tendo fracassado estrondosamente em interessar o público pela compra de
automóveis eléctricos, a Califórnia desistiu da lei.
Entretanto, a General Motors relegou para a prateleira o projecto de
desenvolvimento do outrora apregoado veículo eléctrico (EV). Em
finais de 2003, tanto a Ford como a General Motors estavam a transferir a sua
atenção para os automóveis com
fuel cell,
com a ideia de que seriam, de facto, automóveis eléctricos, com
motor eléctrico, mas sem as incómodas baterias. Estes
automóveis, porém, são problemáticos pelas
razões atrás apresentadas, relacionadas com o hidrogénio e
o gás natural.
Existe um conjunto de noções populares erradas sobre a
possibilidade de os sistemas de energia renovável, como a energia solar,
eólica, etc., substituírem o nosso sistema baseado nos
combustíveis fósseis e não poluírem nem causarem
problemas as energias renováveis representariam, assim, algo de
semelhante ao movimento perpétuo, uma dádiva do Sol. O
funcionamento de um sistema eléctrico solar, como o que possuo num lago
dos Adirondacks, não produz poluição em si, mas o fabrico
dos seus componentes sim, certamente. As baterias, os painéis, a
electrónica, os fios e os plásticos requerem actividade
extractiva e fábricas que utilizam combustíveis fósseis.
Acresce que os componentes são transportados em camiões a
gasóleo para um cais, vindos de muito longe, após o que
são enviados por barco a motor para o seu destino. Regressamos assim
à questão de saber se esses sistemas poderiam existir sem uma
economia baseada no petróleo ou no carvão para os produzir.
Não creio. E, na ausência de combustíveis fósseis,
que outros haveria? Não é nada claro, por exemplo, que a energia
nuclear possa ser utilizada para produzir componentes solares, pois, à
excepção dos fins militares, só tem sido usada para gerar
electricidade, e não em processos industriais em larga escala. E seria
possível recorrer a ela para esse efeito? A fissão nuclear pode
produzir muito calor. Essa é uma das razões pelas quais os
reactores podem ser tão perigosos. Porém, nunca foram usados em
processos de produção directos, excepto no fabrico de outros
materiais radioactivos.
A energia eléctrica solar e eólica devem, por conseguinte, ser
encaradas como acessórios da economia baseada nos combustíveis
fósseis.
Os argumentos a favor e contra a energia eólica são muito
semelhantes. A energia eólica apresenta mais possibilidades que a
energia solar. A energia captada por turbinas eólicas pode ser
armazenada por meios que não as baterias eléctricas, sobretudo
nos momentos em que um parque eólico (um conjunto de moinhos de vento)
produz mais energia do que a utilizada pelos consumidores. Uma possibilidade
é introduzir água nos reservatórios para mover
hidroturbinas em períodos de funcionamento autónomo. Mas isso
depende de uma topografia favorável, e não funcionaria no
Nebrasca, por exemplo, além de que se perderia uma quantidade
substancial de energia no processo de conversão. Na mesma linha, haveria
a possibilidade de injectar ar comprimido, ou outros gases, em cavidades
salinas ou formações aquíferas, captando a energia para
movimentar equipamento gerador. Bons locais para armazenar subterraneamente ar
comprimido são um problema e, para ser eficiente, o ar comprimido tem de
ser usado em parceria com o gás natural. As turbinas de ar comprimido e
gás natural são três vezes mais eficientes do que as
turbinas convencionais de gás, mas o sistema implica um abastecimento
fiável de gás natural, e os Estados Unidos já
ultrapassaram o pico da produção, estando o gás a
esgotar-se muito depressa. É concebível que a energia
eólica possa ser usada para produzir metano sintético, formando
novamente dióxido de carbono na presença de um catalisador sob
calor e pressão. Porém, à semelhança de outros
sistemas de combustíveis alternativos, levantam-se problemas
económicos e de escala. Poderá a infra-estrutura dos Estados
Unidos, tal como existe actualmente, depender dessas energias? De modo algum.
Nem sequer uma pequena parcela dessa infra-estrutura.
As questões que se colocam relativamente à energia eólica
acabam por levar-nos a uma interrogação idêntica à
que formulámos acerca da energia solar: poderão estas tecnologias
existir sem a plataforma de combustíveis fósseis que as suporta?
É verdade que é possível gerar electricidade usando
turbinas eólicas. Sim, os países europeus investiram muito nos
parques eólicos. Em 2003, 18% da electricidade total da Dinamarca
provinha da energia eólica, a percentagem mais elevada entre todos os
países. A Alemanha estava a instalar mais de 10 000 megawatts, e a
Espanha mais de 3 000. Tudo isto é possível porque o mundo
atingiu ou está prestes a atingir o pico histórico da
produção de petróleo, o que significa que, neste
milénio, a economia baseada no petróleo estava no máximo
da sua força quando se criaram este parques eólicos.
Graças aos combustíveis fósseis, foi possível
produzir os metais de ligas especiais necessários ao fabrico das
turbinas, manter fábricas capazes de produzi-los em massa e de fabricar
as peças sobressalentes (porque as turbinas eólicas são
reconhecidamente sensíveis e estragam-se muito) e construir as
instalações e instalar o material, usando equipamento pesado
movido a petróleo retroescavadoras e escavadoras e o mais que foi
necessário para preparar o terreno e instalar as máquinas nos
seus lugares. Que acontece se não houver por trás o
fantástico apoio tecnológico da economia baseada no
petróleo?
As nações industriais avançadas precisam de ter todas as
infra-estruturas de energia alternativa preparadas muito antes de esse apoio
desaparecer. Ainda assim, iludem-se as questões sobre o que virá
a passar-se para lá de um futuro a curto prazo. As nações
avançadas poderiam empenhar-se conscienciosamente no esforço de
dedicar uma parte do petróleo mundial remanescente à
produção de turbinas eólicas, dispositivos solares e
baterias, mas não podemos contar com isso. Os dirigentes americanos
não prestaram atenção às questões
energéticas desde as crises petrolíferas dos anos 70. É
difícil acreditar que, de repente, iremos comportar-nos de uma maneira
mais lúcida. Seja como for, grande parte do petróleo remanescente
não é controlado pelos americanos. Já estamos a lutar por
esse controlo.
Que acontecerá quando todas pessoas estiverem envolvidas num conflito
pelo petróleo restante? Uma situação dessas irá
pôr à prova a relativa ordem internacional que permitiu à
economia global funcionar bem, ordem essa que tomámos por certa. Poderia
dar origem a um clima internacional de conflito militar, de suspeitas
mútuas e de outros mal-estares que destruiria a cooperação
global nas finanças e no comércio de que passámos a
depender. Os abastecimentos poderiam ser suspensos ou interrompidos. Como obter
minérios exóticos, crómio, titânio, dos poucos
locais que os possuem e fazê-los chegar às fundições
onde se produzem as ligas necessárias ao fabrico de turbinas
eólicas? Que iremos usar nas fornalhas? Carvão? A
extracção do carvão costuma fazer-se com equipamento
movido a gasóleo. Bom, é possível produzir gasóleo
artificial a partir de carvão, ou reinventar escavadoras a vapor
alimentadas a carvão, e outras coisas do género, mas seria
necessário lançar toda uma gama de novas indústrias quando
o petróleo escasseia. E quando se acabar o carvão? A
indústria do carvão prevê que as reservas dos Estados
Unidos durem cerca de duzentos anos. Historicamente, trata-se de um
período bastante curto, comparável à época entre a
derrota dos Astecas por Cortez e o nascimento de Ben Franklin. E esse é
o melhor cenário. O mais provável é que a ponta final das
reservas seja constituída pelo carvão mais difícil de
extrair, localizado nos piores sítios, com a ERoEI mais baixa e,
possivelmente, impossível de recuperar com as técnicas actuais de
mineração.
A minha ideia é que a visão, de alta tecnologia e dirigida para
engenhocas, da energia "renovável", tal como é
concebida pelos mais optimistas, assenta nas areias movediças dos
rendimentos decrescentes. Parece existir uma crença paralela entre um
subgrupo pragmático dos optimistas segundo a qual a táctica de
usar os combustíveis fósseis remanescentes para preparar um
futuro pós-combustíveis fósseis é uma
questão de ganhar tempo até "eles", os génios,
cientistas e inovadores,
se saírem com
uma fonte de energia nova e superior. É possível um milagre
destes. Já aconteceram coisas mais estranhas na História da
Humanidade (que teria Ben Franklin pensado do Adobe Photoshop?). Contudo, esta
ideia de ganhar tempo até os semideuses da tecnologia realizarem um
milagre é apenas uma outra maneira de descrever um culto de cargueiro.
Do ponto de vista da psicologia de grupo, coloca a espécie humana numa
alhada, a preparar-se para um exame final em que não pode dar-se ao luxo
de reprovar. E, como se a situação não fosse
suficientemente má, existem outras forças e circunstâncias,
que passarei a analisar, como as alterações climáticas e a
disseminação das doenças, que também iludem a
questão de saber até que ponto a situação é
má se já excedemos (e, na verdade, violámos) a
capacidade de suporte do planeta a ponto de nenhuns projectos de energia
alternativa nos permitirem continuar o jogo.
Embora nos possa privar de alguns tipos de tecnologia a que nos
habituámos, o desaparecimento dos combustíveis fósseis
talvez não implique uma perda de conhecimentos tecnológicos. Os
Romanos desenvolveram a um elevado grau de refinamento a tecnologia de
construção em cimento reforçado, bem como um talento
artístico para o trabalhar. Após a queda do império, o
conhecimento perdeu-se durante mais de mil anos. Não obstante a sua
majestade, as grandes catedrais da Europa medieval representam uma
técnica muito mais primitiva a mera ligação de
pedras com argamassa do que a construção de algo como o
Panteão mil anos antes, onde, desde a base até ao topo da
cúpula, se foram empregando camadas mais finas e misturas mais leves de
cimento. Esse nível de tecnologia só foi recuperado em
princípios do século XX, e o processo de adquirir, perder e
depois reconquistar o conhecimento teve tanto a ver com a
organização social e económica como com a posse de simples
informações tecnológicas. A arquitectura romana teria sido
impossível sem a complexa base socio-económica do império.
A plataforma social medieval para a vida na Europa setentrional era menos
elaborada e incontestavelmente menos complexa. Comparemos estes dois casos
históricos com a complexidade da organização social e
económica que permite que o petróleo seja extraído do
solo, refinado e transformado em gasolina, transportado a distâncias de
mais de 9000 km e utilizado numa máquina de grande engenho e
precisão chamada automóvel, que se move em auto-estradas de seis
faixas. Se a plataforma social e económica ruir, dentro de quanto tempo
desaparecerá o conhecimento de base? Será que, duzentos anos
depois, alguém saberá construir ou mesmo reparar o motor de seis
cilindros em V de um
Chrysler
de 1962? Já para não falar de uma turbina eólica
Nordex
1500 kW?
Presentemente, possuímos conhecimentos suficientes para utilizar e
optimizar as futuras actividades de baixa entropia ou, pelo menos, para
reconhecer a futilidade da tentativa de sustentar o insustentável no
nosso actual modo de vida de alta entropia. Os conhecimentos em matéria
de Física e Química básicas estão tão
generalizados que é provável que venham a persistir durante
bastante tempo e a fornecer bases para podermos realizar mais com menos, em
comparação, por exemplo, com o que as pessoas do século
XVIII foram capazes de fazer com os seus conhecimentos mais limitados.
Não estou a propor que nos limitemos a regressar a um modo de vida
pré-industrial. A própria modernidade já fez com que
perdêssemos muitos conhecimentos sobre maneiras de viver
sustentáveis que foram seguidas durante milhares de anos.
Existem outras maneiras de utilizar o sol e o vento que não dependem de
engenhocas de alta tecnologia do tipo dos painéis solares e das
turbinas, e, futuramente, recorreremos cada vez mais a elas. Um cavalo de carga
é uma ferramenta agrícola movida a energia solar, capaz de se
reproduzir, ou seja, auto-renovável. Implica, no entanto, um sistema de
agricultura inteiramente diferente. Uma horta é uma actividade movida a
energia solar que produz alimentos à escala familiar. Na nossa
época, as hortas perderam importância, transformando-se quase em
decoração de exteriores. Com o fim do petróleo, teremos
certamente de produzir mais alimentos perto dos locais em que habitamos, e
será isso que farão aqueles de nós que possuírem
alguma terra, nem que seja um quintal numa casa citadina. A energia
eólica, solar e hidráulica pode realizar muito trabalho
útil, a pequena e média escala, sem recorrer aos
combustíveis fósseis. Teremos certamente de recorrer mais a elas
em pequena escala e a nível local, seja o que for que nos reserve o
futuro.
Os combustíveis fósseis permitiram que a espécie humana
criasse e mantivesse sistemas altamente complexos a escalas gigantescas. As
fontes de energia renovável não são compatíveis com
esses sistemas e escalas. As energias renováveis não
conseguirão ocupar o lugar do petróleo e da gasolina nesses
sistemas. Teremos de renunciar aos próprios sistemas. Mesmo muitos
"ecologistas" e "verdes" dos nossos dias parecem pensar que
basta mudar a energia. Em vez de usarmos electricidade gerada por
petróleo ou gás para fazer funcionar os aparelhos de ar
condicionado de Houston, usaremos parques eólicos ou enormes
painéis solares; teremos automóveis com combustíveis
super-eficientes e continuaremos a circular de um lado para o outro no sistema
rodoviário interestadual. Não é isso que vai acontecer. O
desejo de manter os mesmos sistemas gigantescos a escalas gigantescas,
recorrendo a energias renováveis, ocupa o lugar central nas nossas
ilusões sobre energia solar, eólica e hidráulica.
PETRÓLEO SINTÉTICO
O carvão pode dar origem a petróleo e gasolina sintéticos,
porque é uma versão sólida da mesma substância
orgânica viscosa Pré-histórica que deu origem ao
petróleo. Durante a Segunda Guerra Mundial, os nazis conseguiram fazer
muita coisa com o carvão. Foram obrigados a isso, porque não
possuíam praticamente petróleo nenhum. Porém, dispunham de
reservas enormes de carvão. Nos anos 30, quando já só
metade da energia dos Estados Unidos provinha do carvão, na Alemanha a
proporção ainda era de 90%, e só 5% provinham do
petróleo. Quando Adolfo Hitler chegou ao poder em 1933, tinha já
garantido o apoio da enorme empresa química I. G. Farben, para um
sistema destinado a produzir quantidades significativas de petróleo
sintético a partir de carvão.
[6]
O processo tinha sido inventado na Alemanha em 1913 pelo químico
Friedrich Bergius, que ganhou o prémio Nobel, e a I. G. Farben detinha a
patente. Tratava-se de acrescentar hidrogénio ao carvão, sob
temperaturas e pressões elevadas, na presença de um catalisador.
O processo consumia muita energia e era dispendioso, mas os custos não
eram problema para Hitler. Em Setembro de 1939, quando se preparava para
invadir a Polónia, a Alemanha possuía já catorze
fábricas de hidrogenação para produzir gasolina
sintética e combustível para aviação, e projectava
construir mais seis.
O carvão iria fornecer cerca de metade do combustível
líquido de que as forças armadas de Hitler necessitariam para a
guerra mundial que se avizinhava. O equilíbrio em matéria de
petróleo convencional chegou, primeiro, da Roménia e da
Rússia. Mas Hitler não queria depender do petróleo dos
bolcheviques que tanto desprezava. Acabou por lançar os olhos para os
campos petrolíferos soviéticos em torno de Baku e, na verdade,
foi por isso que rompeu, em 1941, o pacto de não-agressão que
celebrara com Estaline em 1939, lançando a Operação
Barbarossa, a invasão da Rússia que daria início à
sua ruína. O fracasso da campanha na Rússia e a incapacidade de
controlarem os campos petrolíferos romenos deixou os alemães sem
petróleo para manterem em funcionamento a máquina de guerra. De
uma forma surpreendente, conseguiram, apesar dos bombardeamentos maciços
dos Aliados contra a indústria alemã, continuar a produzir
combustível sintético em quantidade suficiente para quase
rechaçar o avanço americano nas Ardenas, em Dezembro de 1944.
Contudo, na Primavera seguinte, a máquina de guerra nazi ficou
literalmente sem combustível, e foi o fim.
Anos mais tarde, com a guerra, Hitler e o nazismo bem para trás, a
memória dos combustíveis sintéticos persiste. O presidente
Nixon falou nos combustíveis sintéticos na sequência do
embargo petrolífero da OPEP em 1973 pelo menos, a ideia
seduzia-o, pois podia ser maravilhosamente embalada, para consumo
político, no momento em que se afundava no pântano de Watergate.
É evidente que uma coisa era os nazis extraírem gasolina do
carvão em tempo de guerra, numa economia que recorria a muito trabalho
escravo, e outra coisa bastante diferente era fazê-lo num país
livre e em bases economicamente sólidas. Apesar da paranóia
tremenda e da destruição económica induzidas pela crise
petrolífera de 1973, não se construiu nenhuma fábrica para
produzir combustíveis sintéticos a partir do carvão a
seguir ao embargo da OPEP. O sucessor de Nixon, Gerard Ford, propôs
apoio governamental para um programa mais específico que criaria vinte
fábricas destinadas a produzir um total de 1 milhão de barris de
combustível sintético por dia (os Estados Unidos consomem
actualmente cerca de 20 milhões de barris de petróleo por dia). A
proposta de lei de Ford não passou no Congresso. Anos mais tarde, em
Julho de 1979, o presidente Carter propôs um investimento de 88 mil
milhões de dólares, ao longo de dez anos, para promover a
produção de combustíveis sintéticos a partir de
carvão e de óleos de xisto. Carter vivia assombrado pelo problema
da energia. Na sua condição de engenheiro naval experiente,
conseguia distinguir as tendências futuras em matéria de energia
que se desenhavam para os Estados Unidos. Tinha sido eleito para o cargo quando
o país estava ainda a sofrer as sequelas do embargo da OPEP, e as suas
preocupações confirmaram-se quando rebentou a segunda crise
petrolífera, na sequência do derrube do xá do Irão.
Infelizmente, Carter estava adiantado em relação ao povo
americano, que se limitava a encarar as maquinações em torno do
petróleo como actos de perfídia por parte dos Árabes ou de
companhias petrolíferas gananciosas. Carter tentou persuadir os
americanos de que o problema era real, "o equivalente moral da
guerra", mas os seus esforços foram ridicularizados.
O sucessor de Carter, Ronald Reagan, cancelou as iniciativas em matéria
de combustíveis sintéticos porque acreditava que não havia
problema energético que não pudesse ser resolvido pela
desregulamentação e pela livre iniciativa. Reagan teve sorte. A
meio dos seus dois mandatos, o mercado petrolífero afundou-se e os
preços começaram a cair, tendência que se manteve durante
quinze anos, por uma série de factores: a produção a todo
o gás de uma União Soviética fragilizada, tentando
desesperadamente conseguir divisas fortes e evitar o colapso; os frutos da
exploração petrolífera desenfreada que se iniciou
após as crises dos anos 70, incluindo os filões do Mar do Norte
para a Grã-Bretanha e a Noruega; e o desfazer da disciplina de
preços da OPEP causado pela produção excessiva de
países desesperados como a Nigéria e a Venezuela. Todos estes
factores lançaram mais petróleo no mercado global, diminuindo
drasticamente o preço por barril de 1986 a 2001.
Por conseguinte, o primeiro presidente George Bush pôde ignorar as
questões energéticas, excepto quando se manifestavam nos assuntos
internacionais: a primeira Guerra do Golfo, a seguir à invasão do
Kuwait pelo Iraque, que foi causada, em parte, pelas aldrabices dos
kuwaitianos, que realizavam perfurações horizontais fora das suas
fronteiras, em campos em território iraquiano. Entretanto, Bush
não ressuscitou o programa dos combustíveis sintéticos. O
seu sucessor, Bill Clinton, ocupou o cargo no auge da abundância
petrolífera dos anos 90, quando os campos do Mar do Norte funcionavam a
todo o gás e a produção mundial continuava a aumentar,
já perto do pico histórico, e quando se vivia uma paz global
relativa, ainda que frágil. Os preços do petróleo
continuaram a cair a pique depois da guerra. Clinton, o arquétipo de um
yuppie
suburbano, não fez nada para preparar o país para a era
pós-pico e, no geral, deu-se ao luxo de ignorar as questões
energéticas, enquanto o país deslocalizava a sua capacidade
produtiva, e uma "nova" economia, baseada no imobiliário
destinado à expansão suburbana, se ia instalando
sub-repticiamente. George W. Bush, o segundo presidente Bush, teve o
infortúnio de estar na Casa Branca quando o pico global se aproximava e
os mercados petrolíferos começavam a oscilar. Bush e o seu
vice-presidente, Dick Cheney, ambos ex-executivos da indústria
petrolífera, só abordaram uma das suas
manifestações, o terrorismo fundamentalista islâmico,
empenhando-se na primeira fase da que será provavelmente uma longa
guerra pelo controlo e pacificação do Médio Oriente. No
início de 2005, Bush nada tinha feito de significativo em matéria
de política energética em geral e de combustíveis
sintéticos em particular.
Esta inacção em torno dos combustíveis sintéticos
nos últimos trinta anos, tanto por parte do sector público, como
do sector privado, ou de uma combinação dos dois, parece iludir
uma questão fundamental: será que os combustíveis
sintéticos fazem sentido em circunstâncias que não sejam as
do tempo de guerra? Penso que não fazem. Os promotores da
indústria do carvão afirmam que o custo do petróleo
fabricado a partir do carvão desceu de cerca de 50 dólares por
barril em 1973 para 30 dólares por barril em 2003, mas, quando o
preço do petróleo bruto natural aumentou para 50 dólares
no Outono de 2004, não houve fanfarras a anunciarem novas iniciativas
por parte da indústria do carvão em matéria de
petróleo sintético. Os produtores de carvão estão a
contar que, quando as reservas globais de petróleo se acabarem de vez,
os americanos estejam tão desesperados que se disponham a pagar seja o
que for pelos seus combustíveis líquidos derivados do
carvão.
Contudo, o dinheiro tem de vir de algum lugar, e, se os americanos estão
a gastar proporcionalmente mais para encher os depósitos dos seus
automóveis e camiões, essa despesa prejudicará outras
áreas que definem o nosso nível de vida. Em minha opinião,
podemos afirmar muito categoricamente que uma economia sem reservas de
petróleo barato fiáveis irá tornar-se muito mais
débil, gerar menos actividades e criar cada vez mais pessoas
economicamente derrotadas que serão incapazes de adquirir
combustíveis sintéticos ou automóveis para os consumir.
Por outras palavras, o facto de ser possível produzir petróleo a
partir do carvão não significa que possa substituir,
economicamente, as reservas baratas e fiáveis de petróleo
natural, de modo a manter em funcionamento o Sonho Americano. Tal como o
hidrogénio, o combustível sintético pode ser produzido,
mas não se adequa à produção e consumo de massas.
A única aplicação plausível dos combustíveis
sintéticos líquidos derivados do carvão será nas
forças armadas, e mesmo esta é discutível. Se os actuais
conflitos pelo controlo do Médio Oriente prosseguirem durante muito
tempo, como é provável que aconteça, ou se alastrarem para
outras regiões produtoras de petróleo, ou se não correrem
bem os Estados Unidos podem vir a enfrentar, pouco a pouco, uma
situação tão difícil como a que a Alemanha
enfrentou há seis décadas. No entanto, antes de isso acontecer,
os civis seriam sujeitos a um racionamento brutal de gasolina, que tornaria
muito difícil a manutenção da maneira de viver suburbana
do Sonho Americano, e prejudicaria a capacidade de o país lutar pelo
petróleo, a liberdade, ou qualquer outra coisa.
Nos primeiros anos do século XXI, a rara actividade em torno dos
combustíveis sintéticos reduziu-se a pouco mais do que um
"esquema" em matéria de deduções fiscais para
empresas. O carvão "quimicamente modificado" possibilitava
significativas deduções fiscais. A legislação
não explicitava o que "quimicamente modificado" queria dizer
exactamente. Por conseguinte, alguns advogados astutos, associados a
fanáticos das tecnologias, cozinharam uma maneira de pulverizar
carvão com pequenas quantidades de gasóleo, resina de
alcatrão vegetal e outras substâncias, e os simpáticos
"patrões" do departamento federal das
contribuições e impostos decretaram que o produto era um
combustível sintético. As empresas envolvidas neste
"esquema" legalizado nem sequer pertencem a esse ramo de actividade
como, por exemplo, a cadeia hoteleira Marriott, que adquiriu quatro
"fábricas de combustíveis sintéticos" em Outubro
de 2001. Chamar-lhes "fábricas de combustíveis
sintéticos", no entanto, é um cómico exagero:
tratava-se apenas de uns telheiros, munidos de tapetes rolantes, onde o
carvão era pulverizado. No ano seguinte, a Marriott ganhou 159
milhões de dólares em deduções fiscais por ter
pulverizado carvão com petróleo e outras substâncias. A
empresa só teve de pagar 46 milhões de dólares pelas
instalações, o que quer dizer que, em apenas um ano, o
"esquema" lhes rendeu um retorno de investimento de 246%, num momento
em que os rendimentos decorrentes do aluguer de quartos nos seus hotéis
tinham diminuído 4,8%. Além disso, a taxa do imposto sobre o
rendimento registou uma diminuição acentuadíssima, de
36,1% em 2001 para 6,8% em 2002, "sobretudo devido ao impacte das nossas
actividades em matéria de combustíveis sintéticos",
afirma o seu relatório anual.
DESPOLIMERIZAÇÃO TERMAL
Na Primavera de 2003, quando a revista
Discover
publicou um artigo aparatoso intitulado "Anything Into Oil"
[7]
, houve uma grande movimentação nos círculos ligados
à energia. Uma empresa chamada Changing World Technologies, com
fábrica no Missuri, proclamou que era capaz de pegar em qualquer
matéria-prima imaginável contendo carbono "incluindo
restos de peru, pneus, garrafas de plástico, velhos computadores, lixo
municipal, maçarocas, pasta de papel, resíduos hospitalares
infecciosos, resíduos de refinaria de petróleo e até armas
biológicas como esporos de carbúnculo" e
convertê-la em três produtos valiosos: petróleo de elevada
qualidade, gás não-poluente e minerais úteis. Chamaram-lhe
"despolimerização termal". Tratava-se de um
método de alta tecnologia para reproduzir e acelerar imenso o processo
seguido pela natureza na criação de petróleo
geológico a partir de resíduos orgânicos fósseis. O
artigo afirmava: "Se um homem com 80 quilos tombasse numa das extremidades
da cadeia sairia pela outra sob a forma de 17 quilos de petróleo, 3
quilos de gás e 3 quilos de minerais, bem como 56 quilos de água
esterilizada". O petróleo extraído de restos de peru, por
exemplo, assemelhar-se-ia quimicamente ao óleo combustível
nº 2 que é usado nas fornalhas domésticas. Os engenheiros e
banqueiros de investimento aplaudiram. O governo federal concedeu ao projecto
um empréstimo de 12 milhões de dólares para
investigação.
A maquinaria utilizada assemelha-se à das refinarias de petróleo
convencionais, a uma escala muito mais pequena. Segundo a empresa, a
eficiência energética do processo era de 85% para
matérias-primas como restos de peru isto é, por cada 100
Unidades Térmicas Britânicas (BTU)
[29 watts]
extraídas da matéria-prima, gastar-se-iam apenas 15 BTU
[4 watts]. A água nas misturas húmidas, como restos de peru, era
utilizada
para ajudar na primeira fase do processo, uma "cozedura" inicial a
500º F
[260º C]
e a uma pressão de 600 psi
[41,37 bar], que convertia gorduras, proteínas e hidratos de carbono em
ácido carboxílico. Quando a pressão diminuía
rapidamente, cerca de 90% da água eram arrastados para fora, o que
dispensava a operação de a remover por meio de aquecimento e
evaporação. Na segunda fase do processo, as cadeias de
hidrocarbonetos eram decompostas, acabando por transformar-se num
petróleo leve. A terceira fase assemelhava-se a uma destilaria
convencional. Os hidrocarbonetos eram separados por peso molecular em
querosene, gasolina, nafta, etc. O gás inflamável captado era
usado como combustível no processo.
Matérias-primas secas como plástico PVC proveniente de
electrodomésticos e materiais de construção
misturar-se-iam com água para produzir substâncias químicas
úteis como ácido clorídrico e combustíveis contendo
hidrocarbonetos. As diferentes matérias-primas requeriam diferentes
"receitas" e tempos de cozedura. A Changing World Technologies
afirmava-se capaz de reciclar fosse o que fosse, à
excepção de resíduos nucleares. A sua primeira
fábrica à escala comercial em Carthage, no Missuri, que custou 20
milhões de dólares, foi construída ao lado de uma
fábrica da ConAgra Foods Butterball Turkey. Segundo os porta-vozes da
empresa, viriam a ser capazes de produzir petróleo por este
método ao preço de 10 dólares por barril, aos valores de
2003.
Qualquer coisa que pareça boa demais para ser verdadeira costuma
sê-lo, e foi o que se passou com a despolimerização termal.
Implicava os esquemas de movimento perpétuo herdados do século
XIX. Entra lixo, sai petróleo (e lixo é coisa que sempre
abundará, não é?). Com efeito, tudo se reduz a um programa
de reciclagem. A despolimerização termal pega em artigos
produzidos pela nossa economia, de alta entropia, baseada no petróleo e
converte-os em petróleo com, supostamente, uma modesta perda de energia
de 15%, como uma afirmação da segunda lei da termodinâmica
(a "lei da entropia"). O truque está no facto de ser
necessária uma economia baseada no petróleo. A
criação de perus em grande escala realizada pela ConAgra
só é possível num sistema agrícola baseado no
petróleo e gás baratos, em particular para produzir adubos que
permitem obter os cereais destinados à alimentação das
aves, mas também para as alojar, abater, congelar, transportar e
comercializar um gigantesco empreendimento que termina numa
secção de congelados de um imenso hipermercado com mais de 13000 m
2
. Sem combustíveis fósseis, a criação de perus
teria de fazer-se a uma escala muito menor e numa base mais local, e a
quantidade de resíduos sob a forma de penas, vísceras e fezes
não constituiria matéria-prima suficiente nem sequer para uma
destilaria de despolimerização termal que servisse para
demonstrar o processo (e se fosse necessário andar de um lado para o
outro a recolher todos os restos de peru de muitos produtores locais, para
levá-los para uma fábrica de despolimerização
termal centralizada, a gasolina ou o gasóleo gastos nesse esforço
poderiam equivaler ao petróleo obtido a partir desses restos). A segunda
lei da Termodinâmica não nos dá descanso.
Verifica-se o mesmo com todas as outras pretensas
"matérias-primas" do processo de
despolimerização termal: pneus, garrafas de plástico,
velhos computadores, lixo municipal, etc. Todas estas coisas existem porque o
petróleo abundante as produziu. Sem petróleo barato, ficaremos
sem matéria-prima mais tarde ou mais cedo. A
despolimerização termal pode ser um método excelente e
eficaz de lidar com lixo e resíduos que já existem, nas
circunstâncias actuais. Mas as circunstâncias actuais são de
curta duração. A nossa economia baseada no petróleo
não tardará a cambalear e, nesse momento, não iremos
extrair dos desperdícios, restos e lixo que por aí ficaram
petróleo suficiente para manter, durante algum tempo, a nossa maneira de
viver. Se todo o lixo produzido diariamente nos Estados Unidos nas
circunstâncias actuais fosse convertido em petróleo por
despolimerização termal, a quantidade obtida não atingiria
sequer 5% do nosso consumo diário de petróleo. Então, a
conclusão que podemos tirar é a seguinte: se reduzíssemos
o nosso consumo de energia em 95%, a despolimerização termal
poderia funcionar, mas, se reduzíssemos assim tanto o nosso consumo de
energia, não produziríamos a quantidade de lixo necessária
à produção desses miseráveis 5%.
BIOMASSA
Esqueçamos a biomassa. Trata-se apenas de uma variação
mais grosseira da despolimerização termal. A ideia é que
suplementaríamos as nossas centrais geradoras que funcionam com
combustíveis fósseis, recorrendo a materiais orgânicos como
maçarocas, galhos de salgueiro e serradura. Os sistemas assentes na
biomassa baseiam-se inteiramente na existência de uma plataforma de
combustíveis fósseis, sobretudo em termos de resíduos da
agricultura, como maçarocas, produzidos num regime de agricultura
industrial que recorre a enormes quantidades de petróleo e gás
natural quer para fabricar adubos artificiais, quer para as tarefas de colheita
e de transporte dos produtos agrícolas. Isto aplica-se em particular a
todos os sistemas que promovem o etanol (álcool derivado de plantas)
como um aditivo "amigo do ambiente" para a gasolina. A quantidade de
petróleo e de gás natural necessária para produzir os
cereais de onde se fabrica o etanol anularia qualquer vantagem decorrente da
utilização de um combustível pretensamente
não-fóssil.
Na verdade, teremos certamente de recorrer a uma forma particular de
"biomassa", mas de modo algum a uma que se assemelhe às
fantasias propostas pelos "mestres" empresariais e ambientalistas.
Quer isto dizer que teremos, provavelmente, de queimar muita madeira para nos
mantermos quentes no Hemisfério Norte, o que significa que muitos de
nós, nas sociedades industriais avançadas, regressaremos, em
alguns aspectos, a modos de vida pré-industriais. Nesta eventualidade,
poderemos esperar uma devastação bastante maciça das
florestas em regiões onde elas puderam recuperar durante as muitas
décadas em que o carvão, o petróleo e o gás natural
imperaram no aquecimento doméstico, como o leste do Mississípi. A
futura desflorestação da América do Norte (e da Europa)
poderá ser tão rápida e dramática como o
extermínio dos bisontes americanos nas décadas que se seguiram
à Guerra da Secessão.
HIDRATOS DE METANO
Pensa-se que os sedimentos oceânicos contêm, sob a forma de hidrato
gasoso, uma imensa quantidade de metano, igual a pelo menos o dobro de todos os
combustíveis fósseis do planeta. Trata-se de uma espécie
de "gelo" constituído por moléculas de metano, cada uma
delas rodeada por uma "gaiola" de moléculas de água,
cuja estabilidade só se mantém a baixas temperaturas e a
pressões extremas, características das profundezas marinhas
superiores a 300 metros. Representam recursos energéticos eventualmente
recuperáveis, mas com importantes reservas. Uma delas tem a ver com o
facto de os hidratos de metano serem muito difíceis de recuperar:
são dispendiosos, ou seja, exigem mais energia do que produzirão
depois de recuperados isto é, por outras palavras, não
são rendíveis. Com efeito, ainda não foi possível
recuperar comercialmente nenhum hidrato de metano.
O hidrato de metano também é perigoso. Até ao momento, as
tentativas de "mineração" submarina têm provocado
explosões, incluindo a destruição de plataformas de
perfuração e de navios. As propriedades físicas do hidrato
de metano são tais que qualquer tentativa de recuperação
tende a desestabilizar o material, dissociando a água do metano. De
seguida, o gás altamente inflamável que se liberta sobe à
superfície. A perfuração em zonas onde existe metano
preocupa a indústria, porque a operação pode
desestabilizar as fundações das plataformas. As
perturbações causadas no leito oceânico também
poderão provocar afundamentos ou falhas, pondo em perigo as equipas de
trabalho e o ambiente. Além de representar um perigo para os homens que
tentam extraí-lo, o metano libertado na atmosfera é um gás
de estufa dez vezes mais eficaz que o dióxido de carbono. Qualquer que
seja a quantidade, acelerará o problema das alterações
climáticas. As tentativas de recuperar hidratos de metano têm
resultado em libertações de gás na atmosfera em
quantidades muito superiores à do gás que se recupera durante o
processo.
ENERGIA DE PONTO ZERO (ZPE)
Trata-se de um processo obscuro formulado teoricamente por físicos
quânticos, que tem vindo a ser chamado "a derradeira
refeição grátis do
quantum
". Pretende ser uma teoria sobre a exploração do potencial
energético da "matéria escura" do universo. A
física densa e abstrusa que cerca a ZPE parece defender que é
possível aceder às forças cósmicas
responsáveis pela gravidade para obter reservas ilimitadas de energia
barata e não-poluente no planeta. Estas especulações
ultrapassam as competências do autor, razão pela qual me limito a
apresentar apenas duas questões acerca deste assunto. 1) Segundo uma
máxima muito útil em engenharia, qualquer coisa que pareça
boa demais para ser verdadeira, geralmente não é verdadeira.
É o que se tem verificado com os dispositivos de movimento
perpétuo e outras invenções fantásticas, como os
motores de combustão interna que podem funcionar a água e os
carburadores especiais que permitem que um automóvel normal gaste 1,5
litros aos 100 km. Neste momento, a ZPE parece incluir-se nesta categoria. Mas
quem sabe? Em 1893, ter-se-ia podido dizer o mesmo da energia atómica.
2) Mesmo que a ZPE venha a revelar-se útil, é pouco
provável que assistamos a desenvolvimentos práticos antes de o
mundo enfrentar graves problemas decorrentes do esgotamento dos recursos de
hidrocarbonetos. Por outro lado, também se impõe a questão
de saber se, à semelhança dos outros sistemas de energia
alternativa, será possível desenvolver algo como a ZPE na
ausência de uma plataforma tecnológica baseada nos
combustíveis fósseis.
ENERGIA NUCLEAR
Uma vez que as chamadas fontes de energia "alternativa" acima
descritas são todas, de uma maneira ou de outra, implausíveis a
longo prazo sem o apoio do petróleo, a única alternativa que se
mantém de pé é a energia nuclear. Hoje, cerca de 20% da
electricidade gerada nos Estados Unidos provém de fábricas
movidas por reactores nucleares. Em França, a proporção
aproxima-se mais dos 70% (dos 30% restantes, grande parte é energia
hidroeléctrica). Apesar de a sua utilização se ter tornado
quase rotineira, a energia nuclear levanta imensos problemas a longo prazo
por razões que ultrapassam muito a mera economia
energética, embora a incluam e tem uma carga política
potencialmente pesada. Porém, a curto e médio prazo, talvez seja
a única energia a que poderemos recorrer.
A opção nuclear resume-se ao seguinte: se não quisermos
que, na ausência de petróleo e gás natural baratos, o
nível de vida nos Estados Unidos desça muito abaixo dos
níveis pré-modernos, teremos de usar a fissão nuclear como
método principal para gerar electricidade durante uma parte do
século XXI, enquanto lutamos para encontrar outras alternativas.
Contudo, mesmo que os Estados Unidos se empenhem numa política agressiva
de construção de uma nova geração de reactores
nucleares, a vida terá ainda de mudar drasticamente. Na verdade,
trata-se de saber se queremos que essas mudanças ocorram enquanto
estamos com a luz acesa ou apagada. O que distingue a vida moderna da vida
pré-moderna é o acesso à electricidade e a reservas
abundantes e regulares dessa energia.
Teremos certamente de reformar os nossos hábitos em matéria de
utilização da terra e do sistema de transportes baseado no
petróleo que nos têm permitido viver no nosso ambiente suburbano
dependente de automóveis. Teremos de alterar drasticamente o nosso modo
de produzir os alimentos e os locais onde os produzimos. Nas próximas
décadas, a organização social poderá ser bastante
diferente. Aspectos da nossa vida contemporânea que tomámos como
certos, como a aviação comercial e as diversões
"enlatadas", poderão passar à história.
Políticas adequadas ao festim dos combustíveis fósseis,
que se desenvolveram tanto à direita como à esquerda,
poderão transmutar-se em novas formas, padrões e valores, a ponto
de deixarem de ser reconhecidas. No entanto, se queremos que a
civilização prossiga em geral, teremos de manter as luzes acesas,
e a única maneira de o fazermos em meados do século XXI
implicará o recurso a reactores nucleares para gerar electricidade.
Não estou inteiramente convencido de que o possamos fazer durante muito
tempo sem o apoio da plataforma de combustíveis fósseis na
construção, produção, manutenção,
mineração e outras actividades necessárias à
criação e funcionamento dos reactores nucleares. Porém, a
energia obtida a partir da fissão nuclear é tão maior do
que a gerada pela energia solar, eólica, da biomassa e por todos os
outros combustíveis fósseis que um investimento de quaisquer
combustíveis fósseis remanescentes no desenvolvimento da energia
nuclear poderia representar uma proposta minimamente rendível,
proporcionando à espécie humana mais tempo para concretizar
outras soluções mais sustentáveis. Dentro de trinta anos,
poderemos ter de recorrer ao carvão para manter em funcionamento os
reactores nucleares, ou talvez ao petróleo sintético derivado do
carvão. Contudo, a equação básica em matéria
de energia é muito simples: um único átomo de urânio
físsil produzirá uma quantidade de energia dez milhões de
vezes superior à da combustão de um único átomo de
carbono. Por unidade de massa, o urânio produzirá uma quantidade
de energia dois milhões de vezes superior à do petróleo.
Com base na tecnologia actual, a quantidade de urânio convencional que
existe na natureza é suficiente para gerar electricidade provavelmente
durante cerca de cem anos. O urânio que existe na natureza é
composto por dois isótopos: U-238, na proporção de 99,3%,
e U-235, na proporção de 0,7%. O U-235 é o mais
físsil. Actualmente, a maior parte das centrais nucleares usa
urânio enriquecido, em que a concentração de U-235 é
aumentada de 0,7% para cerca de 4 ou 5%. O urânio é relativamente
barato, custando cerca de 30 dólares o quilo. A quantidade de
urânio necessária ao fornecimento de electricidade a uma
família de quatro pessoas durante toda a vida caberia numa lata de
cerveja.
Existem 109 reactores nucleares licenciados nos Estados Unidos e 400 no mundo.
Os reactores funcionam, produzindo calor a partir da fissão nuclear
controlada isto é, dos neutrões induzidos por uma massa
crítica de átomos de urânio, que bombardeiam os
núcleos adjacentes e que cindem mais neutrões, que, por sua vez,
fazem o mesmo. Com os neutrões a andarem de um lado para o outro, o
conteúdo dos átomos modifica-se, e os elementos originais
transformam-se noutros elementos. O processo gera enormes quantidades de calor.
O calor é usado para criar vapor, que movimenta turbinas
eléctricas. Por conseguinte, à excepção do
núcleo do reactor, o processo não é muito diferente dos
outros processos de gerar electricidade por meio de vapor. O processo
não produz quaisquer dos gases associados à
poluição atmosférica dióxido de carbono,
ozono, etc. Contudo, as actividades necessárias à
construção e manutenção de um reactor produzem
certamente muitos gases poluentes. Os próprios resíduos do
reactor contêm centenas de toxinas radioactivas exóticas e
venenosas, que não existiam na Terra antes do advento da fissão
nuclear artificial.
Nos reactores mais comuns, as varetas de combustível contêm
pastilhas de urânio enriquecido. A massa crítica de matéria
físsil é ajustada quando se erguem e baixam essas varetas dentro
do núcleo do reactor. Cerca de dois em dois anos (para simplificar um
pouco), as varetas de combustível de um reactor "gastam-se" e
têm de ser substituídas. Trata-se de um processo que deve ser
realizado com todo o cuidado e que, frequentemente, leva muitos meses, embora
métodos aperfeiçoados tenham reduzido a duração, em
alguns casos para poucas semanas. As varetas de combustível gastas ainda
estão muito quentes e são perigosamente radioactivas. O problema
mais frustrante na gestão das centrais nucleares tem sido o destino a
dar ao combustível gasto,
que se tem revelado mais um
problema político do que um problema verdadeiramente logístico.
Ninguém pretende um depósito de lixo nuclear perto de si
(é evidente que também ninguém quer viver permanentemente
às escuras).
Até há pouco tempo, o local designado para acolher
resíduos nucleares a nível nacional uma série de
cavidades salinas na Montanha de Yucca, no Nevada não podia ser
usado porque se temia ofender grupos de eleitores ou vigilantes dos movimentos
de defesa do ambiente. O local situa-se por baixo do velho terreno utilizado
pelos Estados Unidos para testes atómicos. Um sismo ocorrido na
região em 1996 reforçou a oposição ao uso da
Montanha de Yucca, que fica a uma distância de apenas 160
quilómetros de Las Vegas. Temia-se, em particular, que o material
radioactivo invadisse as águas subterrâneas e se espalhasse por
toda a região. Por conseguinte, a maior parte das varetas de
combustível gastas dos reactores americanos têm sido armazenadas
nas próprias instalações dos reactores por todo o
país, em recipientes que se assemelham a piscinas, onde o material se
vai tornando menos radioactivo à medida que os isótopos, mais
instáveis, se desintegram e vão gerando menos calor. Apesar de
sempre ter sido considerado uma solução temporária, este
método de armazenamento no próprio local tornou-se uma rotina
enquanto se aguarda uma resolução de âmbito nacional em
matéria de armazenamento de resíduos nucleares. As varetas de
combustível gastas podem ser também recicladas de modo a que
possa recuperar-se material físsil suficiente para alimentar um
determinado reactor durante mais um ano. Contudo, como acabam por ter de ir
para algum lado, os resíduos têm-se vindo a acumular há
décadas por todo o país. Um reactor produz em média 1,5
tonelada de resíduos por ano. Se são incorporados numa matriz
estável de vidro, os resíduos constituem mais de 3,8 m
3
. Como a primeira central nuclear comercial começou a gerar
electricidade em 1957, os resíduos acumulados totalizam 9 000 toneladas,
que caberiam à vontade no espaço equivalente ao do ginásio
de uma escola secundária.
Em Julho de 2002, o presidente George W. Bush assinou uma
resolução conjunta (House Joint Resolution 87) que autoriza o
Departamento de Energia americano a dar o passo seguinte na
criação de um local seguro de armazenamento de resíduos na
Montanha de Yucca. O departamento está a ultimar um projecto destinado a
obter a autorização das autoridades competentes (Nuclear
Regulatory Commission) para dar início à construção
do local. Esta resolução pôs um ponto final no impasse
político mas não nas questões profundas relacionadas com a
segurança a longo prazo. Com efeito, os resíduos de um reactor
nuclear levam quinhentos anos a decompor-se, até atingirem o ponto em
que são tão pouco perigosos como o urânio que existe na
natureza.
Na realidade, é possível que só a segurança
relativa
exista. Contudo, vale a pena ter presente que se perderam muito mais vidas na
indústria do carvão do que na indústria nuclear das
últimas cinco décadas. Nos últimos quarenta anos,
não se registou qualquer acidente associado ao funcionamento de uma
central nuclear civil nos Estados Unidos, Europa Ocidental, Japão ou
Coreia do Sul. O acidente ocorrido em 26 de Abril de 1986 na central nuclear de
Chernobil, na ex-União Soviética, é outra questão.
Trinta e uma pessoas morreram em consequência directa da explosão
e do incêndio que se seguiu. As estimativas sobre a mortalidade por
cancro relacionado com o acidente de Chernobil rondam os poucos milhares, aos
quais se juntará um número desconhecido de casos que virão
ainda a surgir em pessoas que eram crianças na altura da
explosão. Mais de 50 km
2
de terra deixaram de poder ser habitados durante muito tempo. No acidente
ocorrido em 1979, em Three Mile Island, na Pensilvânia, não houve
mortos. Escaparam-se gases radioactivos, mas não há provas de
esta libertação ter afectado as pessoas.
O reactor de Chernobil era um modelo RMBK de concepção russa, mal
afamado pela sua falta de segurança. Concebido no espírito
oportunista dos Soviéticos, destinava-se a gerar electricidade e a
produzir, ao mesmo tempo, material para bombas. O reactor não
possuía um invólucro de contenção. Por outro lado,
se o reactor aquecesse demasiado, a velocidade de reacção, em vez
de diminuir, aumentaria automaticamente. Em resumo, era um acidente prestes a
concretizar-se. Construíram-se dezasseis reactores RMBK na
ex-União Soviética, muitos deles ainda em funcionamento. Os
reactores americanos e ocidentais, incluindo os do Japão e da Coreia do
Sul, são muito diferentes em termos de concepção.
Desde 1996 que nenhuma central nuclear nova começou a laborar
comercialmente nos Estados Unidos, e a maior parte das existentes remonta aos
anos 70 e 80. Desde os anos 90 que não se constrói nenhuma
central nuclear, e nenhuma das que foram propostas deu início ao
difícil processo de licenciamento e de aprovação. No
essencial, depois de Three Mile Island e de Chernobil, a energia nuclear
tornou-se um assunto politicamente tóxico, e o apogeu do festim dos
combustíveis fósseis que durou desde a queda dos
preços em 1986 até aos ataques de 11 de Setembro de 2001
permitiu ao povo americano e aos seus líderes não pensarem sequer
na energia nuclear. Esta situação está prestes a mudar,
sobretudo quando os Estados Unidos entrarem na difícil fase de escassez
de gás natural, que afectará grandemente a produção
de energia eléctrica.
O uso dos chamados reactores sobrerregeneradores poderá alargar o
horizonte futuro da electricidade gerada a partir da energia nuclear. Os
reactores sobrerregeneradores utilizam o isótopo de urânio U-238,
amplamente disponível, em conjunto com pequenas quantidades de U-235
físsil, para produzir um isótopo físsil de
plutónio, Pu-239. No entanto, o plutónio é tremendamente
perigoso, quer como veneno radioactivo persistente, quer como material para o
fabrico de bombas, motivo pelo qual as exigências de segurança
para a gestão de reactores deste tipo poderão estar fora do
alcance das possibilidades organizacionais da sociedade em que nos
transformaremos futuramente isto é, uma sociedade com uma
autoridade central muito mais fraca, com menos força policial e com
recursos financeiros reduzidos. Talvez esta seja outra maneira de afirmar que a
estabilidade social tem sido um benefício indirecto proporcionado pelo
petróleo barato e que, na ausência desse combustível,
não seremos capazes de assegurar a complexa organização
social necessária a uma utilização segura da energia
nuclear.
Seja como for, os Estados Unidos encerraram o seu único protótipo
de reactor sobrerregenerador, não dispondo, presentemente, de
investigação, desenvolvimento e demonstrações deste
equipamento. Os outros países também não progrediram muito
mais. Os trabalhos continuam no Japão e na Rússia, mas foram
interrompidos no Reino Unido e em França.
Desde o desenvolvimento da bomba de hidrogénio que se acalentam
esperanças quanto ao desenvolvimento de um processo comercial de
fusão
que possa ser usado para gerar energia eléctrica. Na fusão, o
objectivo é combinar núcleos atómicos em vez de os cindir
por outras palavras, ligar dois átomos de hidrogénio para
formar hélio. É este o processo que está presente no Sol e
que produz enormes quantidades de energia. Os seres humanos replicaram este
processo de fusão solar quando desenvolveram a bomba de
hidrogénio. No entanto, ao contrário do que se passou com a
fissão, ainda não desenvolvemos nenhum método
prático de controlar esta força tremenda. E não estamos
mais perto de realizá-lo do que estávamos há trinta anos,
durante a primeira crise petrolífera da OPEP, quando a fusão era
um dos muitos milagres de combustíveis alternativos prometidos para um
futuro sem petróleo. Há décadas que se persegue
perseverantemente, em laboratório, um processo relacionado chamado
"fusão a frio", à semelhança dos métodos
de transformação do chumbo em ouro tão caros aos
alquimistas de há uns séculos, e até agora com resultados
idênticos.
É possível que o aspecto menos óbvio do enigma nuclear
consista no seguinte: a fissão nuclear é útil para
produzir electricidade, mas a maior parte das necessidades energéticas
dos Estados Unidos dizem respeito a coisas que a electricidade não pode
fazer muito bem, se é que pode. Por exemplo, não é
possível mover aviões com energia eléctrica proveniente de
reactores nucleares.
[8]
O actual sistema de transportes americano, baseado nos camiões,
não poderia funcionar só a electricidade. No actual modo de vida
americano, só 36% da energia consumida é energia eléctrica
gerada por diversos meios: carvão, gás natural, energia
hidráulica e nuclear. Há décadas que esta
proporção se tem mantido bastante constante. O resto da nossa
energia provém da combustão de hidrocarbonetos, facto que
evidencia a tremenda versatilidade do petróleo e do gás natural.
Por conseguinte, é provável que, nos próximos anos,
aumente a quantidade de electricidade gerada pela energia nuclear, mas sem
compensar, necessariamente, as perdas motivadas pela depleção dos
combustíveis fósseis (e os conflitos dispendiosos em torno das
reservas remanescentes). Isto significa que podemos acender luzes à
noite e refrigerar os nossos alimentos, mas, sem a vantagem dos adubos
artificiais derivados do gás natural e da maquinaria agrícola
movida a gasóleo para trabalhar a terra a uma escala industrial, teremos
de reorganizar completamente a agricultura. Por conseguinte, é evidente
que teremos de reorganizar praticamente tudo no nosso modo de viver. No
entanto, é possível que a energia nuclear seja tudo o que nos
resta para mantermos aquilo que identificamos como civilização,
impedindo as suas alternativas.
NOTAS
1- No século XVIII, os Europeus começaram a chegar a essa parte
do mundo, levando consigo, em enormes barcos à vela, todos os tipos de
mercadorias maravilhosas telescópios, canhões,
chapéus de feltro, canivetes, panelas de metal, etc. e causando
espanto aos nativos. Quando os Europeus se ausentavam, o que acontecia
periodicamente durante muito tempo, os ilhéus faziam efígies dos
barcos com os materiais de que dispunham, na expectativa de atrair os grandes
barcos e as coisas fabulosas que transportavam. Este comportamento foi
observado novamente depois da Segunda Guerra Mundial. A campanha do
Pacífico tinha concentrado, nas ilhas dos Mares do Sul, uma enorme
quantidade de homens e de materiais cujo transporte se fazia muitas vezes por
avião. Quando a guerra terminou, os ilhéus desesperados
colocavam
no alto das montanhas efígies de B-28 feitas de cana, na expectativa de
atrair os aviões e todas as maravilhas que lhes tinham trazido. Os
ilhéus desenhavam no solo pretensas pistas, acendiam fogueiras ao longo
delas, construíam uma palhota para que um homem se sentasse lá
dentro, com auscultadores de madeira com folhas de palmeira espetadas à
laia de antenas, e esperavam que os aviões aterrassem. "Estavam a
fazer tudo como devia ser. A forma era perfeita. Tal e qual como
dantes. Mas não lhes servia de nada. Não chegava nenhum
avião." O
físico Richard Feynman descreveu este fenómeno com muito humor,
em 1974, num discurso de entrega de diplomas em CalTech. O culto dos
cargueiros também foi analisado em pormenor por Marvin Harris, na sua
excelente obra
Cows, Pigs, Wars and Witches: The Riddles of Culture,
Nova Iorque: Random House, 1974.
2- Apesar de se encontrar, tecnicamente, em depleção isto
é, com a produção a diminuir progressivamente o
Canadá ainda tem gás suficiente para exportar para os Estados
Unidos e satisfazer as suas necessidades internas, embora provavelmente
não por muito tempo.
3- David Pursell, U.S. Department of Energy, Energy Information Agency (Report
SR/OIAF/2000-04): "Accelerated Depletion: Impacts on Domestic Oil and
Natural Gas, Appendix G". "Vinte e três meses depois de
atingido o pico da produção, em Janeiro de 1997, a
produção média dos poços de gás natural que
começaram a produzir em 1996 era 69% inferior ao que tinha sido no seu
pico." Pursell refere a taxa de declínio da produção
de gás natural por poço, que terá aumentado de menos de
20% por ano em 1970 e 1971 para 49% por ano para poços terminados em
1996.
4- Ulf Bossel e Baldur Eliasson, "Energy and the Hydrogen Economy",
EVWorld (
http://evworld.com
)
, Janeiro de 2003.
5- Uma nova regra da Environmental Protection Agency, emitida em Agosto de
2003, altera o estabelecido na regulamentação de 1977, permitindo
que as centrais energéticas mais poluentes do país actualizem o
equipamento sem implementar novas medidas de controlo das emissões. Esta
regra foi criticada por cientistas e autoridades, que a consideram o maior
retrocesso na História da legislação em matéria de
atmosfera limpa (Clean Air Act).
6- Yergin, p. 328-329.
7- Brad Lemley, "Anything Into Oil",
Discover,
Vol.24, nº 5 (Maio de 2003).
8- Na verdade, em princípios dos anos 50, antes do desenvolvimento bem
sucedido do míssil balístico intercontinental, as forças
armadas americanas tiveram um programa destinado a conceber um bombardeiro
movido a energia nuclear e capaz de permanecer no ar indefinidamente. A ideia
era dispor de uma frota de bombardeiros permanentemente no ar, prontos para
prevenir um ataque soviético com bombas atómicas. Verificou-se
que a blindagem necessária a proteger a tripulação da
radiação fatal tornaria o avião demasiado pesado para
voar.
Notas da tradutora
NT1- De
not in my backyard:
no meu quintal, não.
NT2- Figura de uma lengalenga infantil que, tendo caído de um muro e
ficado desfeita, nunca mais teve arranjo.
NT3- De
locally undesirable land use:
uso localmente indesejável da terra.
NT4- Parede exterior de um edifício sem funções
estruturais.
[*]
James Howard Kunstler
nasceu em Nova York, em 1948. Autor de
The Geography of Nowhere, Home from Nowhere
de
The City in Mind: Notes on the Urban Condition,
do ensaio
A longa emergência
e de nove romances. O texto acima é a
transcrição do capítulo 4 de
O fim do petróleo: O grande desafio do Século XXI,
tradução de Maria Carvalho,
Editorial Bizâncio
, Lisboa, 2006, 348 pgs., ISBN 972-53-0298-2
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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