O negócio do hidrogénio
Quando, finalmente, poderia haver uma sensível e notória
baixa regulatória nas tarifas, poderá instalar-se um novo ciclo de
financiamento aos privados a propósito do hidrogénio e da
transição em geral.
O governo aprovou e fez publicar no dia 14 de agosto 2020 a
Estratégia Nacional para o Hidrogénio EN-H2 (RCM 63/2020)
.
Muito antes, no início de 2020, já o ministro e o
secretário de Estado [da Energia] não tinham dúvidas sobre os aspetos
essenciais, o que é singular para uma equipa que está há
cerca de ano e meio para ter uma estratégia clara quanto às redes
de distribuição de electricidade
[1]
.
Dada a importância da matéria, surgiu uma acesa polémica
técnica, económica e política, que seria normal não
fora a desproporcionada reação do governo e, em particular, do
secretário de Estado.
As organizações sociais, económicas, científicas,
políticas, designadamente as locais e os governos, devem reflectir sobre
o aprovisionamento energético sustentável no futuro. Contudo, o
fundamentalismo polarizado em subjetividades, crenças, interesses
privados e modas politicamente correctas, são muito maus numa
questão estratégica.
O secretário de Estado veio tentar fundamentar as suas
posições em declarações públicas de
Timmermans
[2]
, dizendo que aquele comissário europeu teria falado em investimentos de
400 mil milhões de euros até 2030, portanto, sendo a
previsão portuguesa situada em 1,7 a 2,2% do total (7 a 9 mil
milhões), concluindo que a "estratégia portuguesa
está plenamente ancorada na estratégia europeia". Só
que as contas não podem ser feitas com base em simples
extrapolação aritmética, além de partirem de
pressuposto errado.
"Países com a dimensão da Alemanha, de França e da
Espanha apontam para investimentos da mesma ordem de grandeza. Será que
Portugal se pode equiparar, em termos económicos, financeiros,
energéticos e tecnológicos, àqueles gigantes europeus,
só porque o governo diz que o país está na
"vanguarda" e que "lidera a transição
energética?"
A Comissão Europeia (CE) apresentou, em 7 de julho passado, uma
"visão" para promover o hidrogénio renovável,
estimando que os investimentos poderiam vir a atingir "entre 180 e 470 mil
milhões de euros até 2050"! O que é muito diferente.
O governo português, sem qualquer fundamentação
credível, tomou como boa referência o cenário
máximo, ultrapassando-o mesmo em alguns parâmetros, como o de
empregos potenciais gerados.
Países com a dimensão da Alemanha, de França e da Espanha
apontam para investimentos da mesma ordem de grandeza. Será que Portugal
se pode equiparar, em termos económicos, financeiros, energéticos
e tecnológicos, àqueles gigantes europeus, só porque o
governo diz que o país está na "vanguarda" e que
"lidera a transição energética"?
Do que não haverá dúvida é do enorme interesse que
tais anúncios suscitaram nas corporações industriais,
energéticas e financeiras. Trata-se de um potencial negócio
politicamente correcto e financiável em boa parte com dinheiro
público.
A comprovar a atenção dos investidores privados no negócio
anunciado pelo governo, estão notícias recentes (25 a 27 de
julho) sobre a criação de um megaconsórcio que integra a
EDP, Galp e REN, para avançar com uma central de produção
de hidrogénio verde em Sines.
Pelo menos por duas vezes nos últimos 50 anos na década de
1970 e na década de 1990 houve discussões empolgantes
sobre a substituição de hidrocarbonetos por hidrogénio.
Contudo, isso não aconteceu, devido a vários factores objectivos.
Além da habitual evocação sobre "os interesses das
petrolíferas", haverá que ponderar nos enormes custos
imputáveis ao desmantelamento e substituição da
vastíssima infraestrutura mundial de combustíveis fósseis
numa fase em que ainda faltará muito tempo para o esgotamento. Tal
destruição não é fácil e rápida
porque a energia é indispensável, não apenas nos
países industrializados da Europa, nos EUA, na China, onde as novas
tecnologias são aplicáveis e lucrativas, mas, também, na
África, na Ásia, nas Américas do Sul e Central, onde
é necessária energia, ponto. Em muitas destas vastas
regiões não se trata de dar mais um salto qualitativo na
qualidade de vida e na amigabilidade quanto às questões
climáticas, mas, sim de conseguir que a vida se sobreponha à
morte.
As grandes petrolíferas, gasistas, carboníferas e
elétricas, não estão preocupadas com o tipo de energia
primária que exploram. Aquilo em que estão concentradas é
no lucro. Se fizerem melhores negócios com o sol e o hidrogénio,
adaptam-se e mudam de ramo. Até porque o ciclo levará
décadas.
O hidrogénio, um gás muito reativo e com elevada fugacidade, que
quase não existe livre na natureza, tem diversas desvantagens
quantificáveis: exige enormes cuidados na sua manipulação
por ser perigoso, armazena muito menos energia num dado volume do que os
combustíveis fósseis e, fundamental, não é um
combustível primário, ou seja, tem que ser produzido
através de processos que implicam consumo de diversas matérias
primas e consumo de energia. Nesses ciclos gasta-se muito dinheiro, muitos
recursos (minerais e água), e dissipa-se rendimento.
A EN-H2 surge, no fundamental, correlacionada com o facto de Portugal ter
assumido o objetivo de atingir a Neutralidade Carbónica até 2050,
tendo, nesse sentido, desenvolvido o Roteiro para a Neutralidade
Carbónica 2050 (RNC2050), apresentado no final de 2018, assumido como
antecipação/
draft
do Plano Nacional Energia e Clima 2030 (PNEC 2030).
Num contexto político-social europeu que hipervaloriza a
descarbonização, tudo depende da capacidade de produzir
hidrogénio barato, em larga escala, não libertando CO2 para a
atmosfera durante o processo. E isso é difícil, desde que se
ponha de lado a electricidade de proveniência nuclear.
A "descoberta" da via fotovoltaica, por si ou em mix com a
eólica, para produzir a eletricidade com a qual, depois, através
da eletrólise da água, se produz o hidrogénio, surgiu com
a onda de leilões para atribuição de novas potências
fotovoltaicas que, desde 2018, grassaram em vários continentes, fazendo
descer os preços propostos. Isto, porque as tecnologias produtivas
têm vindo a baixar de preço na actual fase de expansão e
por outras razões muito voláteis num mercado grossista cheio de
falhas e contradições. Veremos o que se passa quando os metais
necessários e o solo começarem a escassear.
O governo português, fascinado com a "solução",
vangloria-se com o "record mundial" atingido em 2019
[3]
, dando a entender que Portugal está numa mirífica vanguarda.
Há, porém, várias dúvidas e alçapões
a que é necessário ter em conta: muito dificilmente o
preço da electricidade de origem fotovoltaica paga os custos se for
inferior a 3 cts/kWh e, noutra perspetiva, a pressão sobre o solo
(ordenamento e preços) e sobre o recurso água, irá
determinar escaladas apreciáveis. Será que, daqui a algum tempo,
o lóbi das renováveis não virá exigir
"reequilíbrios contratuais"?
Depois, considerar que, mesmo a este hipotético baixo preço,
estaríamos a substituir uma energia (metano/gás natural) que
custa 1/kg, por outra (hidrogénio) que custaria 4 a 5 /kg,
tendo, aliás, um poder calorifico inferior ao do metano.
"Do que não haverá dúvida é do enorme
interesse que tais anúncios suscitaram nas corporações
industriais, energéticas e financeiras. Trata-se de um potencial
negócio politicamente correcto e financiável em boa parte com
dinheiro público. A comprovar a atenção dos investidores
privados no negócio anunciado pelo governo, estão notícias
recentes (25 a 27 de julho) sobre a criação de um
megaconsórcio que integra a EDP, Galp e REN, para avançar com uma
central de produção de hidrogénio verde em Sines"
Como esperam, a União Europeia (UE) e o governo português,
resolver o imbróglio? Simples: aumentam o "preço
simbólico" do carbono, onerando o gás natural (que poderia
passar para o dobro ou o triplo) e, por outro lado, entrariam no já
conhecido caminho da subsidiação pública aos investidores
privados, realizada através de receitas fiscais e/ou do acrescido
esforço dos consumidores de electricidade e gás natural, num
referencial em que uns, a maioria, se sacrifica, e outros, uma minoria,
vêem lucros e rendas engrossarem.
A UE já terá reservado milhares de milhões de euros para a
estratégia e, por cá, prevê-se que o Fundo Ambiental assuma
um papel financiador relevantíssimo.
De facto, segundo a perspetiva governamental, com o decréscimo das
necessidades financeiras no Sector Energético Nacional (SEN) por
desaparecimento, a prazo curto e médio, de alguns custos relevantes do
sistema eléctrico (Contratos de Aquisição de Energia/CAE,
Custos de Manutenção de Energia Contratual/CMEC, Dívida
Tarifária,
feed-in tariffs
), isto na eletricidade, torna-se possível redirecionar essas verbas
para "onde elas são mais necessárias e eficazes, de uma
forma gradual e sem agravar os preços de eletricidade e do gás
natural".
Ou seja, se bem se captou a ideia do governo, essas cargas que agora
desapareceriam, servirão para "apoiar a
descarbonização da rede de gás natural", de forma a
que isso seja feito "a um nível de preços que assegure
simultaneamente o escoamento da produção e a
remuneração adequada dos investimentos garantindo custos
energéticos competitivos para os consumidores".
Isto configura-se como uma séria ameaça para os consumidores:
após a época dos acima referidos custos
político-administrativos desviados para os privados (de facto,
não se trata de impostos ou taxas), e quando, finalmente, poderia haver
uma sensível e notória baixa regulatória nas tarifas,
instalar-se-á um novo ciclo de financiamento às grandes
energéticas privadas e monopolistas, agora a propósito do
hidrogénio e da transição em geral, que, de facto,
levará a que "mantenham os preços e tarifas"!
O governo esquece, se tal opção se confirmasse, o
insuportável custo socioeconómico da energia portuguesa e a
necessidade central de que os preços/tarifas baixem. Sem isso é
muito difícil criar condições para o desenvolvimento
socioeconómico e para o afastamento da pobreza energética ainda
muito presente em Portugal.
Temos assistido ao comportamento dos mercados grossistas: pode haver baixas no
preço para as operadoras que actuam no mercado grossista ou de grande
retalho, nomeadamente face ao excesso de injecção
obrigatória de eletricidade proveniente das fontes renováveis em
certos postos horários, mas isso não tem significado uma
diminuição sensível no preço da eletricidade para
os consumidores finais (há, no mercado português, apenas uma
comercializadora que, guiando-se pelos preços do mercado grossista, sob
indicação da sua casa mãe espanhola, consegue
interessantes ofertas aos consumidores).
É um verdadeiro paradoxo: à medida que mais electricidade
proveniente de fontes renováveis foi introduzida nas redes nas
últimas duas décadas, e cujos fluxos nos são oferecidos
pela natureza sem ter que os pagar (custos variáveis), mais os
consumidores pagaram por ela!
Bom, mas tem descido a taxa de emissão de CO2 para a atmosfera,
dirão os promotores da descarbonização.
Por acaso, nem isso se poderá dizer, porque a flutuação
tem sido muito mais função dos ciclos socioeconómicos do
que das produções de FER
[4]
(ver documento
Apreciação da Estratégia Nacional para o Hidrogénio
), mas admitamos que sim, que haveria uma diminuição sustentada
de emissões de GEE
[5]
(em toneladas de CO2eq), e que, na atmosfera mundial, o teor de CO2
não subia.
Atingir tal meta (incerta) não justifica, de um ponto de vista
holístico, concentrar biliões de euros e dólares na
subvenção e financiamento alavancado à
descarbonização mitigação, de facto,
maioritariamente canalizados para empresas privadas, retirando-os do apoio ao
desenvolvimento sustentável global, constituído pelos diversos
itens abaixo indicados
[6]
:
Erradicação da pobreza e da fome; Saúde e
educação de qualidade; Água potável e saneamento;
Trabalho digno e crescimento econômico; Redução das
desigualdades e descriminações; Combate à
corrupção e aos crimes públicos; Indústrias,
inovação e infraestruturas; Cidades e comunidades
sustentáveis; Vida na água e na terra; Consumo e
produção responsáveis; Igualdade de gênero; Paz,
justiça e instituições eficazes; e, obviamente, Energias
renováveis e acessíveis do ponto vista socioeconómico,
além, de acções contra, mas, também, de
adaptação e mitigação das consequências
derivadas da mudança global do clima.
Não pode falar-se em desenvolvimento sustentável com
políticas públicas que afunilam as ajudas públicas na
descarbonização, mitigação e
adaptação (desde 2006 cresceram cinco vezes os cêntimos por
cada euro ou dólar gastos na ajuda ao desenvolvimento)
[7]
, retirando-as às restantes vertentes fundamentais para o
desenvolvimento do planeta e das sociedades humanas.
26/Agosto/2020
1. A atribuição das novas concessões municipais das redes
de distribuição de electricidade em baixa tensão (BT), via
concurso, estava previsto formalmente para 2019, e continua pendente de uma
avaliação estratégica determinada pelo governo.
2. Frans Timmermans, vice-presidente executivo da Comissão
Europeia, com a responsabilidade do
Green Deal.
O secretário de Estado colocou isto numa resposta a um post no Linkdin.
3. Tarifa média ponderada atribuída no regime garantido foi de
20,33 /MWh, com um mínimo de 14,76 /MWh e máximo de
31,16 /MWh.
4. Acrónimo para Fontes de Energia Renovável (FER).
5. Acrónimo para Gases de Efeito de Estufa (GEE).
6. De acordo com os objetivos fixados pela ONU para o Desenvolvimento
Sustentável.
7. Hicks, 2008,
apud
Lomborg 2020, p. 145. Ver Lomborg, Bjørn.
False Alarm: How Climate Change Panic Costs Us Trillions, Hurts the Poor, and Fails to Fix the Planet
. Basic Books, New York (2020).
[*]
Engenheiro. O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990
(AE90)
O original encontra-se em
www.abrilabril.pt/nacional/o-negocio-do-hidrogenio
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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