Além do pico petrolífero
O começo do fim da civilização industrial
Discurso de encerramento da Primeira Conferência Americana sobre o Pico
Petrolífero e Soluções Comunitárias, Yellow
Springs, Ohio, 14/Nov/2004.
Primeiro quero aproveitar esta oportunidade para exprimir os meu agradecimentos
a Pat Murphy, Faith Morgan e Megan Quinn, do Community Service, que organizaram
esta conferência tão ponderadamente e com tanto êxito.
Já escutámos um bocado de palestras este fim de semana e
não quero maçar-vos com ainda mais informação.
Vejo no programa que sou suposto falar sobre "Esperança e
visão: Soluções para o planeta Terra". Parece-me
que vários outros apresentadores já nos deram muita
esperança e visão; não estou seguro de que tenha muito a
acrescentar a este respeito. Mas talvez eu possa aproveitar estes poucos
minutos para partilhar convosco alguns pensamentos filosóficos acerca do
grande quadro sobre a nossa dificuldade e a nossa oportunidade a partir
de uma perspectiva histórica.
Estamos, parece-me, a ver o princípio do fim da
civilização industrial.
Esta palavra
civilização
é ardilosa. Fomos treinados a pensar que ela implica tudo o que
é refinado, culto e seguro. A alternativa é barbárie,
não é?
Bem, não necessariamente não, pelo menos de uma
perspectiva histórica ou antropológica.
Durante vários anos, na década de 1990, fui membro de uma
organização académica chamada International Society for
the Comparative Study of Civilizations, a qual, tal como a maior parte destes
grupos, efectua reuniões anuais em que professores entretem-se uns aos
outros com as suas congeminações mais recentes de teorias subtis
por vezes indecifráveis. Os membros do ISCSC, ou "issy" como
é afectuosamente chamado, nunca conseguiram pôr-se de acordo
acerca de uma definição da palavra
civilização,
mas havia acordo geral em que as civilizações são boas e
muito merecedoras de estudo comparativo. Assim, o documento que eu li em
determinado ano, "Uma crítica primitivista da
civilização", não foi particularmente bem aceite.
Mas se a palavra
civilização
pode ser difícil de definir mesmo para peritos, a sua etimologia
é bastante clara: vem do latim
civis,
significando "cidade". Pessoas civilizadas são habitantes
de cidades. Mas isto está longe de ser uma explicação
completa ou mesmo útil; há certamente outros factores
envolvidos, incluindo a capacidade para a escrita, os números e um
sistema de classes sociais. Mesmo de acordo com estes poucos critérios,
houve cerca de 24 diferentes civilizações até então.
Agora, penso que todos nós temos o senso claro de que a nossa
civilização particular é qualitativamente diferente de
qualquer outra na história desde a chacoana
[1]
, ou a maia, ou a mesopotâmica, ou as clássicas romana ou grega.
A nossa é a primeira, e será a única,
civilização a combustíveis fósseis. É uma
civilização com esteróides, uma civilização
com base em múltiplas doses de cafés expressos, uma
civilização com base em combustíveis de foguete.
Nós superdimensionamos, queremos as coisas feitas para ontem.
Consequentemente, mastigámos e cuspimos mais dos recursos da Terra mais
rapidamente do que qualquer outro grupo de humanos já conseguiu
fazê-lo.
As civilizações, naturalmente, produzem maravilhosos artefactos
culturais: pirâmides, templos, literatura, música e assim por
diante. Talvez porque o império americano do petróleo tenha
crescido tão rapidamente e tão desenraizado, os seus produtos
culturais embora reconhecidamente impressionantes em alguns aspectos
(considerem o moderno cinema arrasador
(blockbuster)
de Hollywood com os seus efeitos especiais de muitos milhões de
dólares) muitas vezes têm uma qualidade efémera, uma
superficialidade e um utilitarismo comercial emocionalmente manipulativo, que
torna muitos de nós menos do que orgulhosos.
Nossos edifícios, vestuários, utensílios, recipientes e
ferramentas todos os aspectos do nosso ambiente programado
têm vindo a ser perfilados por máquinas alimentadas a
combustível ao invés de mãos humanas. Se pudermos
torná-las mais rápidas, ou se pudermos fabricar mais
máquinas de forma mais barata, a economia exige que assim
façamos. Em resultado disso, tornámo-nos desejosos de beleza
a beleza da natureza e a beleza da produção manual
cuidadosa, qualificada e individual enraizada numa paisagem particular. Talvez
soframos sem saber de uma doença em massa não reconhecida:
deficiência perniciosa de beleza, crónica.
Uma coisa interessante a notar sobre civilizações é que
elas têm o hábito indecente de entrarem em colapso. Muitas delas
chegaram a um fim por razões semelhantes, e muitas vezes o processo de
colapso começou apenas poucos anos depois de atingirem o seu
máximo de extensão geográfica, poder militar e riqueza
acumulada. Clive Ponting, no seu admirável livro
A Green History of the World
, apresenta uma explicação familiar: as sociedades antigas
tipicamente extraíram demasiado da sua base de recursos e
destruíram o seu habitat. Elas cortaram demasiadas árvores,
exauriram o seu solo fértil, esvaziaram os seus poços.
Joseph Tainter, em
The Collapse of Complex Societies,
apresenta um retrato mais subtil. Ele atribui o colapso aos retornos
declinantes sobre os investimentos em complexidade. E ele define o
próprio colapso como uma redução na complexidade social.
Um achatamento da estrutura de classe piramidal, um retrocesso do excesso de
extensão
(overreach)
imperial, uma ruptura de relações comerciais tudo isto
são sintomas da simplificação involuntária de uma
sociedade.
Entre parênteses, eu deveria notar que Tainter, que certamente respeita
as culturas indígenas, não está a dizer que sociedades
não civilizadas não são complexas em termos de rituais e
mitos, ou do entendimento ecológico. Ele define complexidade em termos
de elementos sociais quantificáveis como o número de ferramentas
diferentes e sistemas de ferramentas, ou o número de classes sociais e
ocupações presentes.
As sociedades tornam-se complexas a fim de resolver os seus problemas.
Adoptámos a agricultura para compensar o défice calórico
resultante do nosso excesso de caça da megafauna durante o final do
Pleistoceno. Irrigámos de modo a que pudéssemos praticar
agricultura em lugares sazonalmente áridos. Construímos
hierarquias sociais para dar os benefícios da irrigação de
um único rio a centenas ou milhares de agricultores individuais, ou para
armazenar e distribuir cereais das colheitas sazonalmente abundantes.
A princípio, tais investimentos em complexidade social e
tecnológica podem render retornos vertiginosos, e as sociedades que os
fazem muitas vezes crescem rapidamente e tendem a subjugar os seus vizinhos.
Um império pode desenvolver-se e continuar durante séculos.
Mas a estratégia de complexificação social impõe
custos escondidos que aumentam gradualmente. A população que a
suporta finalmente cansa-se sob este fardo.
Uma vez alcançado o ponto dos retornos declinantes, quase qualquer coisa
pode empurrar uma sociedade para o declínio. Mudanças
climáticas e outros desastres ambientais por vezes desempenham um papel.
Tipicamente, civilizações que estão próximas do
seu ponto de colapso ficam envolvidas em guerras sobre recursos, e elas
são muitas vezes atormentadas por uma liderança fraca que
é incapaz de entender a natureza do desafio ou propor respostas
efectivas.
Algo disto soa familiar?
Certamente uma civilização cuja base repousa inteiramente sobre a
extracção e uso e portanto o esgotamento de uns
poucos recursos não renováveis é a mais vulnerável
espécie de civilização que alguma vez existiu.
A maior parte dos cientistas que conheço a estudarem a estas coisas
chegaram à conclusão de que estamos a viver próximo do fim
do império actual, o primeiro império verdadeiramente global na
história da nossa espécie. Por "fim" não quero
dizer que toda a coisa virá abaixo amanhã ou no próximo
ano. Historicamente, os colapsos têm-se verificado ao longo de um
período de décadas ou séculos. No nosso caso os sinais da
diminuição de retorno, e da super-extensão, já
são inequívocos. E, perverso como possa ser o comentário,
não penso que o colapso, neste caso, fosse necessariamente uma coisa
má.
Como aponta Tainter, o colapso realmente significa apenas um retorno ao
padrão normal da vida humana vida, isto é, em tribos ou
aldeias: pequenas comunidades, se se quiser. O colapso é um processo
de economizar pelo qual uma sociedade reverte a um nível de complexidade
que é capaz de ser sustentado.
Isto tudo é fácil de entender a partir de uma perspectiva
academicamente distante. Mas naturalmente não somos antropólogos
marcianos a observarem os eventos por meio de um telescópio; estamos a
falar das circunstâncias das nossas vidas.
Assim, o que faz você se estiver a viver no fim de um império?
Suponho que uma resposta racional seria comer, beber e ser feliz. Por que
não? Certamente não vale a pena preocupar-se com eventos que
não se podem controlar, e assim desperdiçar quaisquer momentos de
normalidade e as oportunidades de felicidade que possa existir antes de chegar
o fim.
De certo modo, penso que vocês aqui têm outras ideias sobre o que
fazer. Suspeito que se tivessem sido passageiros do Titanic não
ficariam a beber num torpor no bar, vocês teriam estado a amarrar
cadeiras juntas no convés, a procurar um meio de aumentar a força
do sinal no rádio do navio, ou a inventar casacos boiantes a prova de
água que pudessem ser fabricados com cordas de cânhamo utilizando
equipamento expropriado da casa de máquinas do navio.
Provavelmente não posso dizer-lhes seja o que for que vocês
deveriam estar a fazer que já não o estejam tão bem como
podem nestas circunstâncias. Todos nós sabemos a
lição cultivar mais do seu próprio alimento,
conservar energia, tornar-se activo na sua comunidade local, aprender artes e
qualificações úteis, acumular ferramentas de mão.
Em suma: devemos plantar as sementes para os que puderem sobreviver, para um
modo de vida tão diferente do industrialismo como este último
é diferente do período medieval, um modo de vida cujo pleno
florescimento nós próprios nunca poderemos ver dentro dos nossos
breves períodos de vida.
Muitos de nós têm estado a ensinar isto durante décadas;
vocês não precisam de uma lição "como
fazer" da minha parte.
Entretanto,
pode
ser útil saber que há outros a pensarem o mesmo, a enfrentarem
os mesmos desafios e a descobrirem estratégias diferentes mas
complementares; e parece-me que esta conferência ajudou imensamente
quanto a isto. Conhecemo-nos uns aos outros agora, e sabemos que estamos
juntos nisto. Também sabemos que temos ultrapassado uns poucos sinais
recentes de eventos e que estamos a aproximar-nos de outro muito importante.
É útil comparar as notas.
Neste fim de semana ouvi em algum lugar o comentário inevitável
que estamos a pregar para o coro. Não é o modo como encaro isto.
Para adaptar-me àquela metáfora, sinto como se neste momento
estivesse a dirigir-me a um conselho de pregadores.
Temos apenas uma diminuta quantidade de tempo para construir botes salva-vidas
isto é, a necessária infraestrutura alternativa. A pelo
menos 30 anos ficou clara que características esta deveria ter
orgânica, pequena-escala, local, local, sociável, cooperativa,
ritmo mais lento, orientada para o humano e não para a máquina,
agrária, diversa, democrática, culturalmente rica e
ecologicamente sustentável. Soubemos por um longo tempo que o status
quo uma sociedade que é orientada para a máquina,
competitiva, injusta, de ritmo rápido, globalizada, monocultural e
dominada pelas corporações está a embotar o
espírito humano e é ecologicamente insustentável.
Sustentável. Insustentável. O que estas palavras realmente
significam?
Talvez o pico petrolífero pelo menos forneça à palavra
sustentabilidade
os dentes que necessita. As pessoas agora falam de "desenvolvimento
sustentável", "crescimento sustentável" e
"retornos sustentáveis sobre o investimento". Isto, meus
amigos, é
sustentabilidade light.
A palavra foi diluída e desnaturada quase para além de
qualquer reconhecimento.
O entendimento do pico petrolífero proporciona-nos uma
definiçaõ mínima da palavra: podemos nós fazer
isto, seja do que for que estejamos a falar,
sem combustíveis fósseis
? Se for possível, então isto pode ser uma actividade ou um
processo sustentável. Não há qualquer garantia:
há um bocado de actividades humanas que não envolvem
combustíveis fósseis e que
não
são sustentáveis como captura de baleias com navios
veleiros, ou agricultura de irrigação intensiva em solos que
não são drenados adequadamente.
Mas se você não puder fazer isto sem combustíveis
fósseis, por definição isto
não é sustentável.
E isto inclui a maior parte do que fazemos nestes dias na América do
Norte.
O que estamos a dizer é que uma transição para um
nível mais baixo de complexidade social-tecnológica não
precisa ser violento, não precisa ser caótico e não
precisa implicar a perda dos valores e realizações culturais de
que estamos orgulhosos como sociedade. E o resultado final poderia ser de
longo mais humano, agradável e satisfatória do que é a
vida actual para os cidadãos deste que é o maior dos
impérios.
Mesmo sabendo que esta conferência foi espectacularmente concorrida do
ponto de vista das expectativas dos organizadores, somos comparativamente
poucos. E a mensagem que estamos a comunicar não está a ser
ouvida pela grande maioria dos nossos companheiros cidadãos.
Provavelmente será optimista pensar que será entendida por mais
do que um ou dois por cento da população. Entretanto, se este
núcleo semente da cidadania total realmente conseguir, podemos ter uma
oportunidade. Todos nós sabemos do que as sementes são capazes.
Recordo-me do movimento rural Populista dos fins do século XIX, o qual
alterou a paisagem política da América e quase afastou os EUA do
seu destino imperial e corporatista em direcção ao ideal
agrário de Jefferson. Os populistas difundiram a sua palavra,
começando no Texas rural, a aproximadamente todo município no
Sul, Leste, Oeste e Meio-Oeste. O seu método? Eles treinaram 40 mil
oradores públicos. Então, nos pátios de granjas, feiras
de municípios e quermesses
(chautauquas),
eles educaram cuidadosamente os seus colegas cidadãos acerca dos
cartéis bancários, dos trusts, do sistema monetário e
acerca de como as comunidades locais podiam tomar conta outra vez das suas
próprias economias.
A eleição presidencial de 1898 demonstrou-se ser a ruína
do movimento: os populistas haviam decidido apostar a agricultura na
política eleitoral e apoiaram William Jennings Bryan, o qual foi batido
pelo arqui-imperialista William McKinley, o qual morreu logo após
às mãos de um assassino anarquista.
Acabámos de ter uma eleição agora. E, a menos que seja
contestada, ela pode bem marcar o fim inequívoco da República e
da democracia eleitoral nacional neste país.
Mas assim como está a tornar-se claro que estamos a viver num
império, estamos a ver sinais claros de que o próprio
império está a aproximar-se do seu destino.
Meus amigos, é tempo de ter esperança. É um bom tempo
para gostarmos uns dos outros, abraçarmos os jovens e
fortificá-los com as nossas experiências e visão, e de
confiar na sua capacidade para descobrir as suas próprias respostas
adequadas aos eventos que estão por vir.
Haverá culturas humanas sustentáveis sobre este planeta daqui a
um século. De facto, será a única espécie de
cultura que haverá. E penso que podemos razoavelmente esperar que pelo
menos algumas daquelas culturas venham a ser capazes de traçar
ascendência para os aparentemente marginalizados hippies, activistas,
peritos em energia, permaculturistas
[2]
, comunitarianistas, agricultores orgânicos, planeadores de eco-cidades e
simples cidadãos que começaram a educar os seus vizinhos sobre o
pico petrolífero no princípio deste século.
Já fizemos algum trabalho bom, mas temos um bocado mais a cumprir.
Talvez agora tenhamos um melhor domínio do contextos no qual o nosso
trabalho deve continuar, e da sua importância crucial para a
sobrevivência da nossa espécie.
Possamos nós dedicarmo-nos com renovada confiança, compromisso e
bom humor. Possamos criar beleza e viver na beleza. Possamos viver na
alegria, sabendo que dos nossos esforços brotarão raízes,
troncos, ramos, folhas, flores e frutos. Podemos residir em comunidade, pois
partilhamos uns com os outros as vidas e as visões, os talentos e os
recursos, as preocupações e as necessidades, e aprendemos a
apoiar uns aos outros e a trabalhar juntos.
Este é um tempo assustador para estar vivo, mas é também
um tempo
maravilhoso para viver. É bom saber que há tanta
inteligência e compaixão acumulada entre nós. Esta foi uma
conferência fabulosa com apresentadores e apresentações
extraordinários, e participantes até mais admiráveis.
Saímos daqui com prendas de conhecimento, encorajamento, perspectivas e
paixão. Obrigado.
[*]
Editor do
MuseLetter
,
boletim que explora a renovação cultural e autor de
Powerdown: Options and Actions for a Post-Carbon World
.
[Para mais informação acerca da conferência e
do Community Service ir a
www.communitysolution.org
.]
Do mesmo autor de
Uma carta do futuro
.
Notas
1- Localizava-se no actual estado americano do Novo México e partes
do Colorado, Arizona e Utah.
2- Defensores da agricultura sustentável.
O original encontra-se em
Alternative Press Review
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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