Administração pública central:
Apenas uma minoria teve direito a formação profissional

– 67 em cada 100 trabalhadores não tiveram acesso à formação do POAP

por Eugénio Rosa [*]

RESUMO DESTE ESTUDO

Uma das bandeiras do actual governo, pelo menos a nível de palavras, é a formação profissional. Mesmo no discurso de Natal, Sócrates não se esqueceu de se referir à formação profissional que é, sem dúvida, importante. No entanto, o governo infelizmente continua a dizer uma coisa mas a fazer outra bem diferente. A prova disso está na própria Administração Pública onde é directamente responsável. É o que se mostra neste estudo utilizando apenas dados oficiais

O Programa Operacional Administração Pública (POAP), que era o programa de formação profissional para Administração Pública Central mais importante financiado por fundos comunitários, apresentou, antes do Natal de 2009, na Comissão de Acompanhamento, em que participamos, o seu "Relatório Final de Execução". A leitura atenta deste relatório, que abrange o período 2004-2009, portanto seis anos, é bastante elucidativa sobre a política de formação profissional do governo para a Administração Pública.

Esse Relatório, por um lado, mostra a existência de uma grave distorção na formação realizada, com reflexos negativos quer para os trabalhadores, quer para modernização da Administração Pública; e, por outro lado, revela um esforço manifestamente insuficiente de formação e qualificação dos trabalhadores num sector fundamental para o desenvolvimento do País.

Assim, segundo os dados desse "Relatório", 51,5% do total de formandos do POAP tiveram como origem apenas as categorias profissionais de dirigentes e técnicos superiores, embora estas duas categorias de trabalhadores representem apenas 7,4% dos 390.000 trabalhadores da Administração Pública Central abrangidos por este programa comunitário de formação (este programa não abrangia nem a Saúde, nem a Educação, nem os militares). Portanto, uma politica de formação em que aqueles que têm menos qualificações, que constituem a maioria, e que mais precisam de formação, foram claramente marginalizados.

Esta politica de formação agravou desigualdades, a nível de qualificações, na Administração Pública. Para concluir basta ter presente seguinte: o numero total de dirigentes (superiores e intermédios) da Administração Pública era, em 2008, segundo o Boletim do Observatório do Emprego, de 5.868 e o numero de formandos que participaram em acções desta categoria foi de 9.226, o que significa que muitos dirigentes participaram em mais de uma acção de formação. O mesmo sucedeu em relação aos técnicos superiores. O seu número era, em 2008, segundo também o Boletim do Observatório do Emprego, de 22.985 mas os formandos com esta categoria profissional que participaram em acções de formação foram 77.008, ou seja, mais do triplo.

Segundo os "Complementos de Programação – POAP", pág. 21, o número de trabalhadores abrangidos por esta programa era de 390.000. Se cada trabalhador tivesse participado apenas numa acção de formação profissional teriam recebido formação 167.327 trabalhadores no período de seis anos (2004-2009), ou seja, 27.887 por ano, isto é, uma taxa de 7,2% por ano, o que já era muito pouco. No entanto, como 51,5% dos formandos eram apenas de duas categorias profissionais, ou seja, 28.853 trabalhadores, que representam somente 7,4% do total dos trabalhadores abrangidos pelo POAP, para os 92,6% restantes, ou seja, para 361.140 trabalhadores restaram apenas 80.333 vagas em acções de formação, o que corresponde a uma taxa anual de formação de 3,7% que é ridícula. Uma minoria (apenas 7,4%) puderam participar, em média, em três acções de formação, enquanto a maioria (92,6%) apenas 22 em cada 100 tiveram formação pelo POAP no período 2004-2009. Os restantes 78 em cada 100 não tiveram direito nem acesso a formação pelo POAP. Se somarmos os dirigentes e técnicos superiores, conclui-se que 67% não tiveram acesso a formação pelo POAP no período 2004-2009. Para colmatar a falta de formação para a maioria dos trabalhadores, os sindicatos da Administração Pública apresentaram ao POAP planos de formação, cuja esmagadora maioria não foi aceite.

Para o período 2007-2013, a situação não vai melhorar. Em primeiro lugar, deixou de existir qualquer programa de formação específico para a Administração Pública Central. Em segundo lugar, a verba atribuída do POPH para formação dos mesmos trabalhadores da Administração Pública Central (directa e indirecta) corresponde a cerca de 1,6% das verbas totais do programa do QREN (apenas 100 milhões € de 6117,4 milhões €, até 2017) que tem como objectivo a formação profissional (POPH). Eis, quantificada na linguagem fria e objectiva dos números oficiais, a politica de formação do governo, num sector em que ele é directamente responsável, de que Sócrates tanto fala.

A formação profissional dos trabalhadores da Função Pública é fundamental para se poder modernizar a Administração Pública e para que esta possa prestar serviços de qualidade à população e de uma forma eficiente. Por isso interessa analisar o que está a acontecer na Administração Pública até para compreender o significado real das palavras do 1º ministro sobre as necessidades de formação e qualificação em Portugal tantas vezes repetidas.

O Programa Operacional Administração Pública , também conhecido por POAP, apresentou o seu Relatório Final de Execução na reunião da Comissão de Acompanhamento em Dez/2009, em que participamos. A leitura deste relatório, que abrange o período 2004-2009, é bastante elucidativa sobre a política de formação e qualificação profissional na Administração Pública deste governo. Ele mostra bem a distância que existe entre as declarações e a prática do governo.

NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NÃO SE SABE SE OS OBJECTIVOS DA FORMAÇÃO FORAM ALCANÇADOS

O Eixo 2 - "Qualificação e Valorização dos Recursos Humanos" do POAP é o eixo onde é incluída toda a formação profissional cofinanciada feita a 390.000 trabalhadores da Administração Pública Central no período 2004-2009. As conclusões a que se chegam da sua análise não deixam de ser preocupantes.

E isto porque o relatório não contém a informação mínima para se poder fazer um acompanhamento e uma avaliação fundamentada e consistente dos resultados obtidos com as acções realizadas, tanto em termos de valorização e qualificação dos trabalhadores e seus efeitos na carreira como em relação ao impacto na melhoria dos serviços prestados à população. No Relatório consta o número de formandos abrangidos por acções de formação – 167.362 – no entanto não consta qualquer informação sobre horas de formação, áreas de formação, e resultados da formação, o que era minimamente necessário para se poder fazer um acompanhamento fundamentado e consistente da execução deste eixo. Também aqui houve apenas a preocupação de cumprir as metas financeiras e de apresentar valor globais que não permitem ficar a conhecer quais os resultados das acções de formação realizadas. Repete-se o erro que tem caracterizado a maior parte da formação realizada em Portugal financiada por Fundos Comunitários, que é o de não fazer qualquer esforço para avaliar de uma forma séria os resultados dessa formação.

APENAS UMA MINORIA DE TRABALHADORES TEVE DIREITO A FORMAÇÃO PROFISSIONAL

Os poucos dados que contém o Relatório Final revelam uma profunda distorção na execução da formação na Administração Pública. Em relação ao número de formandos abrangidos por acções de formação o Relatório indica que participaram em formação 167.362, ou seja, mais 59% do que a meta inicialmente prevista, que era 105.000, o que não deixa de ser positivo, embora ainda seja um numero claramente insuficiente para as necessidades de formação neste sector. Basta recordar seguinte: (1) Este programa abrangia os "serviços da administração directa e organismos da administração indirecta do Estado" (pág.33 do POAP); (2) O número de trabalhadores abrangidos por este programa era de 390.000 (pág. 21 dos Complementos de Programação -POAP) dos 529.000 trabalhadores da Administração Pública Central (este programa não abrangia os trabalhadores do sector da Saúde, nem da Educação, nem os militares). Apesar disso, logo à partida, apenas 42,9% tinham possibilidades de ter acesso à formação profissional. Mais de metade, precisamente 222.638, estavam excluídos logo à partida desta formação. E isto não era anualmente, mas durante um período de seis anos (2004-2009).

No entanto, se fizermos uma análise mais detalhada, utilizando os poucos dados que constam do Relatório, constata-se a existência de uma grave distorção na formação realizada, com reflexos negativos quer para os trabalhadores quer na modernização de toda a Administração Pública.

Assim, de acordo com os dados constantes da pág. 13 do projecto de Relatório do total 167.362 formandos abrangidos por acções de formação, " 86.234 pertencem às carreiras de Dirigentes e Técnicos Superiores, número que permitiu atingir claramente o objectivo de, pelo menos, 25% do total dos formandos previstos pertencerem àquelas carreiras, conforme estipulado nos documentos programáticos do POAP". Por outras palavras, a meta inicial era de que 26.250 (25% de 105.000) fossem das categorias de "Dirigentes e Técnicos Superiores", mas devido à politica seguida pelo POAP e pelos serviços 86.234 participaram em acções de formação, o que significou um aumento de 228,5% em relação à meta inicialmente fixada. É evidente que esta triplicação (foi mesmo superior em mais de três vezes) do objectivo inicial foi conseguida à custa da redução da formação destinada aos restantes trabalhadores da Administração Pública e da participação de dirigentes e de técnicos superiores, cada um deles, em média em três acções de formação.

O quadro seguinte construído com dados do Relatório do POAP (formandos) mostra de uma forma clara as distorções que se verificaram a nível da execução da formação.

QUADRO I – Repartição dos formandos por categorias profissionais na Administração Pública
Formação cofinanciada pelo POAP – Período 2004-2009
CATEGORIAS
Nº de Formandos que participaram em acções de formação
% do Total de Formandos
% Acumulada
Dirigentes 9.226 5,5% 5,5%
Técnicos Superiores 77.008 46,0% 51,5%
Chefias administrativas 5.425 3,2% 54,8%
Técnicos 19.742 11,8% 66,6%
Técnicos Profissionais 24.977 14,9% 81,5%
Administrativos 23.357 14,0% 95,4%
Operários 562 0,3% 95,8%
Auxiliares 5.443 3,3% 99,0%
Candidatos a funcionários 160 0,1% 99,1%
Estagiários 1.462 0,9% 100,0%
TOTAL 167.362 100,0%  
Fonte: Relatório Final do POAP, pág. 61

Como revelam os dados do Relatório Final do POAP os formandos que tinham a categoria profissional de dirigentes e técnicos representaram 51,5% do total dos formandos. No entanto estas duas categorias de trabalhadores – dirigentes e Técnicos Superiores – de acordo o Boletim do Observatório da Administração Pública do DGAEP do Ministério das Finanças e da Administração Pública correspondiam apenas a 7,4% dos 390.000 trabalhadores da Administração Pública abrangidos por este programa de formação profissional.

Para se poder ficar com uma ideia mais clara da politica de formação na Administração Pública do governo interessa ainda referir que o numero total de dirigentes da Administração Pública Central (inclui dirigentes superiores e intermédios) era, em 2008, segundo o Boletim do Observatório do Emprego, 5.868 e o numero de formandos que participaram em acções de formação desta categoria totalizaram 9.226, o que significa que muitos dirigentes participaram em mais de uma acção de formação.

O mesmo sucedeu em relação aos técnicos superiores. O seu número era, em 2008, segundo também o Boletim do Observatório do Emprego, de 22.985 mas os formandos com esta categoria profissional que participaram em acções de formação foram 77.008, ou seja, mais do triplo.

É evidente que para poucos poderem participar em várias acções de formação, muitos não tiveram qualquer formação. Para concluir isso, basta ter presente o seguinte. Segundo os "Complementos de Programação – POAP", pág. 21, o numero de trabalhadores que eram abrangidos por este programa de formação profissional era 390.000. Se cada trabalhador tivesse participado em apenas numa acção de formação profissional teriam recebido formação 167.362, ou seja, apenas 27.887 por ano, isto é uma taxa anual de formação de 7,2%.. Para além disso, como 51,5% dos formandos eram das categorias de dirigentes e técnicos superiores que representavam apenas 7,4% dos trabalhadores da Administração Pública abrangidos pelo POAP, isto significa que para os 92,6% restantes, ou seja, para 361.140 restaram apenas 80.333 vagas, o que significa que apenas 13.338 podiam ter formação por ano, ou seja, a uma taxa de 3,7%.

Assim, na Administração Pública Central (directa e indirecta) uma minoria de trabalhadores abrangidos pelo POAP (apenas 7,4%) puderam participar em varias acções de formação (em média, três), enquanto a maioria (92,6% dos trabalhadores da Administração Pública abrangidos pelo POAP) apenas 22 em cada 100 tiveram a possibilidade de frequentar formação. Dito de outra forma, em relação a 361.140 trabalhadores da Administração Pública, 78 em cada 100 trabalhadores não tiveram direito a formação profissional cofinancida no âmbito do POAP. E tenha presente que este programa de formação abrangeu o período 2004-2009, portanto seis anos.

A situação parece que não vai melhorar no futuro E isto porque no novo quadro comunitário, agora chamado QREN, que abrange o período 2007-2013, parece que foram afectos apenas cerca de 100 milhões de euros do total de 6.117,4 milhões de euros de fundos comunitários do Programa Operacional Potencial Humano para a formação dos mesmos trabalhadores da Administração Pública. Eis, na prática, a que se resumem as palavras de Sócrates sobre formação profissional num sector onde o governo é directamente responsável. É este também o exemplo dado a nível governamental.

03/Janeiro/2010
[*] Economista, edr2@netcabo.pt

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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