Respondendo a Ricardo Torres
por Richards Levins
[*]
Aurora Levins Morales
[**]
Entramos nesta discussão com alguma timidez. Para julgar as
decisões económicas da nova viragem é necessário um
conhecimento íntimo da realidade cubana, que não temos por haver
estado ausente durante quatro ano e porque mesmo com visitas frequentes
aprende-se apenas um esboço dela. E o que é mais importante,
nós, que somos solidários com Cuba, não somos cubanos; os
fenómenos da ilha que nos inspiraram não são os mesmos que
agora preocupam os seus cidadãos.
Neste caso, por que nos atrevemos a comentar? Porque cada comunidade olha a
realidade com lentes próprias e traz tanto visões acertadas como
erros. Todos nós, os cubanos e os aliados, entendemos essas
questões com a nossa própria perspicácia e a nossa
própria cegueira. Quando nos encontramos, cada parte traz seus erros
típicos e sua razão acertada. Para que uma discussão se
torne frutífera, um bom ponto de partida é que ambas as partes
indiquem que consideram seu próprio padrão de erros e os de seus
camaradas, arraigados nas suas condições de vida e de luta.
Na generalidade, Cuba enfrenta uma situação económica
urgente. E sabemos que a urgência reduz os horizontes não apenas
temporais, como também do âmbito dos problemas e das fronteiras
intelectuais. Quando os cubanos se vêem obrigados a envolver-se no
comércio internacional capitalista, são muito vulneráveis
aos vocabulários e aos conceitos da economia neoliberal que reinam neste
ambiente. Estudam o marxismo, mas comparados com as necessidades de
negociações no mundo capitalista, os princípios marxistas
ficam relegados aos cursos universitários, cada vez mais afastados da
experiência vivida, até que se desvanecem. Por isso, os erros
teóricos vão projectar-se na prática, pressionados pela
urgência. Nós os amigos de Cuba destacamos o longo prazo e por
vezes subestimamos as urgências actuais, a partir de uma perspectiva
utópica e um tanto ignorante. Como aliados estrangeiros, não
podemos julgar se uma decisão é ou não correcta. Mas
podemos, sim, notar os problemas colaterais, as consequências nocivas,
que as melhorias políticas ainda acarretam.
Queremos esclarecer que não alegamos haver um abandono do socialismo com
os novos
lineamientos
. Afirmamos sim que podem debilitar as relações sociais e a
consciência de colectividade que inspiraram ao mundo e que podem reduzir
a resistência da sociedade cubana frente às pressões
múltiplas de um mundo hostil.
Nesta breve nota só podemos esboçar algumas das nossas
preocupações, não para oferecer soluções e
sim para abri-las ao debate.
1. Nos Lineamientos há uma ausência quase total de análise
de classe. Referem-se à população, a problemas de
administração, a temas que se encaixam bem dentro da
ciência gerencial burguesa. Mas o trabalho por conta própria
coloca uma diferenciação de classe em Cuba. Se se contrata
mão-de-obra, temos a exploração e a
extracção de mais-valia. Se ainda for necessário
permiti-lo, a mão-de-obra converte-se em mercadoria alienada e os
lucros em mais-valia. Além disso, não se especifica se as
empresas novas participam na produção simples de mercadorias,
para se manterem, ou na ampliada. Então, qual é o papel dos
sindicatos nesses negócios privados?
2. Os trabalhadores por conta própria têm
preocupações e interesses. Como irão exprimi-los? Podem
ter voz na Assembleia Nacional? Podem ser eleitos nas suas
circunscrições? Haverá um tipo de Partido informal para a
nova pequena burguesia?
3. Utiliza-se o vocabulário da economia burguesa. Por exemplo:
"distorções de preços". A expressão
implica que existem preços "naturais" aqueles fixados
no mercado , e que um desvio destes é uma distorção.
Mas não existe nenhuma relação entre o valor social, a
utilidade de um produto, e seu valor económico. Como se devem determinar
os preços socialistas? Por exemplo: a batata-doce é um produto
muito útil, nutritivo e saboroso, mas relativamente fácil de
produzir. Absorve pouco trabalho por hectare em comparação com a
produção de alho ou de carne. Então, com a crescente
desigualdade em Cuba, seria "natural" produzir carne e condimentos
para os ricos. Mas se se vender a batata-doce de acordo com o seu valor, ela
não proporciona ganho suficiente ao camponês com pouco terreno.
Pelo que faria falta algum tipo de subsídio ao produtor ou ao
consumidor. De qualquer modo, os preços socialistas hão de ser
"distorções" dos do mercado. Se os preços de
produtos dos que trabalham por contra própria vão se reger pela
lei da oferta e da procura, como podemos reconciliar essa
contradição? Os produtos mais necessários podem ser os
menos rentáveis. Preenchemos o vazio com subsídios?
4. Quando o Estado diz que algo é muito custoso, pensa-se que o
consumidor há de pagar os custos de produção. Mas para a
economia como um todo, passá-lo do Estado para o consumidor só
redistribui o gasto, não economiza. Junto a um incremento dos
preços no consumidor fará falta um aumento de salário.
Não está claro porque representa poupança para a sociedade.
5. O plano não considera categorias como a composição
orgânica do capital (crítica para criar emprego), ou a
divisão do investimento entre Departamento I (produção
para o consumo) e Departamento II (produção dos meios de
produção), ainda que esta diferenciação seja
essencial para sair da urgência.
6. Parece ser necessária uma maior autonomia da empresa para
flexibilizar a produção. Mas autonomia para quem? Os gerentes?
Vimos na URSS sob Kruschov uma descentralização com maior
autonomia para os dirigentes. Mas numa sociedade onde a corrupção
é tão endémica, a autonomia para os administradores
vislumbra uma privatização de facto.
Descentralização sim, mas com a autoridade descansando nos
trabalhadores.
7. A autonomia implica a liberdade de determinar os bens a produzir. Mas numa
sociedade com crescente desigualdade, seria exercida em favor das mercadorias
desejadas pelos ricos.
8. Uma empresa privada busca rentabilidade a curto prazo. Na agricultura seria
um incentivo para retornar os praguicidas e adubos químicos e retroceder
na agricultura ecológica.
9. Há uns poucos anos, o igualitarismo foi inscrito na bandeira do
socialismo, o que significava a solidariedade e o colectivismo de uma
população com uma meta comum. O seu sentido mudou. Como vai
afectar a sociedade cubana quando a solidariedade é o único
recurso que tem para prevalecer?
É possível que no passado se hajam imposto formas
organização que a base material não pôde sustentar e
que seja necessário dar alguns passos atrás para
reequilibrá-las. Há que reconhecê-lo. Todos destacam as
vias financeiras como as melhores para incentivar. Quando os Lineamientos falam
de diversas formas de organização da propriedade, sublinham as
capitalistas, à parte das cooperativas. Não existem em Cuba
quadros de jovens comunistas que queiram formar colectivos igualitários,
com alta consciência e compromisso? E não poderiam estes, de
maneira experimental, funcionar como modelos das vantagens do socialismo, ainda
não acessíveis à sociedade como um todo? Por que
não autorizam que um grupo de cidadãos solicitem, colectivamente,
terreno para experimentar novas formas de organização, uma vez
que as valhas formas falham muito?
Repetimos que estas são preocupações, não
denúncias. No passado, quando Cuba teve que fazer concessões a
formas alheias de actuar, inventaram maneira de lhes dar a volta para preservar
o importante. Esperamos que um dia palavras como "resolver"
refiram-se a meios mais revolucionários para lutar com os problemas de
um mundo global em decadência.
27/Dezembro/2011
Ver também:
[*] Professor, Universidade de Harvard,
humaneco@hsph.harvard.edu
[**] Escritora.
O original encontra-se em
http://www.temas.cult.cu/catalejo/economia/Levins.pdf
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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